O “Legionário”, no 313, 11 de setembro de 1938

E a política?

Ninguém supôs, certamente, que o Sr. Getúlio Vargas, o político mais sinuoso e subtil do País, fosse matar a política. No entanto, ao que parece, foi isto que aconteceu.

Até 1937, S. Ex.a era tido como perito em matéria política, por ter conseguido alijar sucessivamente os demiurgos com que queria o Clube 3 de Outubro, ou o elemento civil da revolução de 30, limitar sua autoridade. Todos se lembram das proporções gigantescas com que a personalidade do Sr. Juarez Távora assomou no cenário da política nacional. O Sr. Getúlio Vargas docilmente, cedeu às injunções do Clube 3 de Outubro que queria elevar aos píncaros o jovem oficial. Por isto, sentou-o no trono do vice-reinado do Norte. Mais tarde, enquanto o Sr. Juarez Távora fazia discursos, o Sr. Getúlio Vargas serrou os pés de seu trono de vice-rei. Fê-lo com uma serrinha tão macia e tão fina, que o Sr. Távora nada percebeu. Só começou a desconfiar quando, prostrado no chão, sofria as dores das contusões do tombo. O mesmo deu-se com o Sr. João Alberto. Esse tenente queria ser interventor em São Paulo, o que é uma outra espécie de vice-reinado. O Partido Democrático também queria. O Sr. Getúlio Vargas, docilmente, deu o Governo a ambos. Era o melhor meio de ser obediente. O Sr. João Alberto desembaraçou o Sr. Getúlio Vargas dos Democráticos, e depois os democráticos e perrepistas, unidos, desembaraçaram o Sr. Getúlio Vargas do Sr. João Alberto. Os Srs. Góes Monteiro e Miguel Costa também pertenciam ao Olimpo da Revolução de 30. O Sr. Getúlio Vargas lhes deu tudo quanto quiseram. Foram subindo, subindo, e subindo tão alto, que o seu equilíbrio já era precário. O Sr. Getúlio Vargas, com a pontinha dos dedos, no matreiro dos empurrões, os atirou pelo abismo. O Sr. Miguel Costa revoltou-se, mas foi preso. O General Góes Monteiro foi mais dócil. Deixou até de dar entrevistas. E continuou, no  fundo da vala comum para onde o atirara o peteleque presidencial, a ser bom amigo do Sr. Getúlio Vargas. Quanto aos Srs. Armando Salles, José Américo e Plinio Salgado, a historia é recente demais para que dela se fale. O certo, porém, é que nenhum dos três ocupa a curul presidencial para que se candidatou.

No entanto... a política tem destas! Parece que no largo necrotério político que abriu para uso especial de suas vitimas, o Sr. Getúlio Vargas tem poucos inimigos. Tão poucos, mesmo, que quando os assaltantes do Palácio Guanabara, no último golpe de Estado, tentaram a derrubada de S. Ex.a, o Sr. Getúlio Vargas, num requinte de ironia, serviu-se especialmente de cadáveres políticos. Lá estavam pressurosos, dispostos a dar até sua última gota de sangue pelo Presidente, os Srs. João Alberto, Tte. Cabanas, etc., ressuscitados expressamente para se exporem à morte - a uma morte de fato, desta vez - para conservar íntegra a pessoa do Sr. Presidente da República, contra as balas de seus inimigos.

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Muito subtil tudo isto, não há dúvida. Mas essas façanhas são simples folguedos de horas vagas, quando comparadas com essa obra máxima que foi, a 10 de Novembro, o sepultamento solene de toda a política brasileira.

Nunca vi, de um lado tamanha docilidade, e do outro tamanha habilidade.

A princípio, pensou-se que a política não tinha morrido. Nas ruas e nos clubes, era freqüente ouvir-se que “o P.R.P. vetou fulano”, o “PC vai reagir contra sicrano”, ou “integralismo não concorda com beltrano”. Elementos houve que realmente “não concordaram”, e que por isto fizeram o golpe de Maio. Quanto aos demais, acabaram se acomodando. E hoje em dia os remanescentes dos diretórios de ambos os partidos de São Paulo, seus ex-deputados, ex-senadores, ex-vereadores, etc., etc., se acomodaram tanto, que nem sequer se fala mais de política nas plagas de Piratininga. Quando muito, um ou outro boateiro impertinente ainda solta o boato de uma demissão estrondosa. Mas solta-o tão timidamente, tão sem convicção, tão sem eco, que se vê que é dos últimos frutos, temporões e secos, da florada liberal-democrática.

Os antigos “fãs” da política ainda não desanimaram de todo. Por isto, ainda fazem suas manobrinhas. Mas estas, no que consistem? Em tomar o Cruzeiro do Sul, o avião da VASP, ou mais economicamente o 2º [trem] noturno, e ir ao Rio a fim de distilar nos ouvidos subtis do Sr. Getúlio Vargas alguma informação sobre o que acontece em São Paulo, em Minas, ou no Rio Grande. E, depois, o manobrista volta importantíssimo para seus pagos natais, dizendo que traz no bolso uma promessa do Presidente... Mas o tempo se escoa sem novidades, as esperanças vão abandonando uma a uma o pombal melancólico do coração, e depois acabou-se tudo.

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A política, pois, francamente parece ter acabado. A julgar pelas aparências, ao menos, a impressão é esta. E, se bem que as aparências não sejam sempre fidedignas quando elaboradas pelos dados artificiosos do Sr. Getúlio Vargas, tudo leva a crer que assim continuaremos.

Isto significa, em outros termos, que a máquina política revelada ao país em 10 de Novembro vai entrar em funcionamento, o que se demonstra pelo pleno funcionamento em que se encontra, desde logo, a mais absolutamente essencial e vital de suas peças, que é o Poder Executivo. Porque aí está uma verdade que ninguém pode contestar: o Poder Executivo é de tal modo a medula do novo estado de coisas que, funcionando ele, está tudo em funcionamento e, paralisado ele, a Constituição estaria morta. Regime constitucional, na ordem concreta dos fatos, significa, hoje em dia, o pleno exercício do Poder Executivo. O resto é o “hors d'oeuvre” do menu, o molho do prato. E parece que certos manjares não se prestam mais a serem servidos hoje com qualquer molho.

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Segundo parece, o Sr. Getúlio Vargas atingiu agora, portanto, o apogeu de sua habilidade política. A princípio, matou à prestações. O 10 de Novembro, pelo contrário, foi uma chacina política sem exemplos na História. De um só golpe, foram mortos todos os políticos do Brasil, e se inaugurou um regime em cuja estrutura está que os interventores federais também não devem ser políticos, mas elementos dóceis ao Chefe da Nação, tanto quanto deve ser dócil qualquer burocrata que se ufane de sua disciplina administrativa.

É esse o panorama do momento. O futuro dirá como vai evoluir.