Legionário, n.º 336, 19 de fevereiro de 1939

A GLÓRIA DO "NÃO"

Plinio Corrêa de Oliveira

Foi tão extraordinária a grande figura de Pio XI que, no dia imediato ao de seu falecimento, ele penetrou a História. Foi tal e tão luminosa a nitidez de seus gestos, tão assombrosa a inflexível coerência de seus atos, tão intrépida a sobranceria de suas atitudes, que o historiador, para julgar o Papa, não precisa do famoso recuo de alguns anos, que em via de regra se exige para que a História pronuncie seu "veredictum" a respeito dos mortos ilustres. Hoje em dia, a obra de Pio XI se delineia com uma clareza definitiva aos olhos da humanidade, e, com esta clareza, ficou definitivamente fixada nas páginas da História.

Se entretanto a admiração pelo grande Papa é quase unânime - unânime, poderíamos dizer, porque as vergonhosas notas de dissonâncias procedentes da Rússia e da Alemanha constituem um elogio "au rebours", dado que ser elogiado por Hitler e Stalin é um vexame, e ser ultrajado por eles é uma honra - são poucos os que compreenderam sua obra maravilhosa.

É que ela se desenrolou em uma quadra tormentosa, de violência e de confusão, em que a arrogância desabrida da força e a astúcia cínica do maquiavelismo parecem ter entrado em combinação para alucinar e perverter as massas. E, no meio da tormenta e da confusão, foi só Pio XI quem soube falar ao mundo a linguagem clara, peremptória e altiva da Fé e da razão.

O pontificado de Pio XI se assinalou por um tríplice aspecto:

a) as doutrinas heterodoxas atingiram um radicalismo e se revestiram de uma violência desconhecida para a Igreja desde a época de Constantino;

b) a situação, tornada extremamente crítica para a Igreja por esse radicalismo doutrinário e por essa violência prática, agravou-se ainda mais pela confusão estabelecida em virtude da existência de duas grandes heresias, ostentando entre si um vivo antagonismo, enquanto cada qual, por seu lado, agride a Igreja com desabrido furor;

c) por outro lado, em todos os países, e a despeito de todas as perseguições, um renascimento católico maravilhoso se tem observado. Esse renascimento, que ainda não é bastante vigoroso para dar solução imediata aos problemas atuais, apresenta entretanto tais índices de vitalidade e de solidez, que deixa entrever claramente, como se estivéssemos na aurora de uma grande Pentecostes mundial, uma civilização futura, florescendo à face do mundo finalmente renovado pelo Espírito Santo.

À vista dessa tríplice situação, Pio XI foi:

a) contra o extremo de violência de seus inimigos, um paladino de um heroísmo que pode ser comparado ao das mais evangelicamente audaciosas figuras da História eclesiástica;

b) contra a confusão semeada pelo antagonismo entre o nazismo e o comunismo, um doutrinador de fulgurante clareza, cuja palavra, cortante como a palavra de Deus, talhou rijamente o nó górdio feito pelo príncipe das trevas;

c) para com o renascimento católico, um fomentador maravilhoso, um guia de longa visão e incomparável clarividência, que, enquanto fulminava com uma das mãos.................... [erro tipográfico, faltam algumas palavras] as bases de uma civilização futura, toda ela "instaurada em Cristo".

Como se vê, a intrepidez da Fé foi a nota característica de toda essa estupenda atividade.

Que o ardor das paixões sectárias e revolucionárias atingiu em nossos dias aspectos catastróficos e sinistros, como os da história da Igreja nas catacumbas, foi o próprio Pio XI que o afirmou, quando disse em uma de suas encíclicas que o mundo moderno se encontra às portas de um desabamento geral que o colocará em nível inferior àquele em que se encontrava a humanidade antes da vinda do Salvador.

Para se ter disto um idéia exata, basta olhar com reta intenção o panorama contemporâneo. Enquanto, na Alemanha, Hitler, com a hipocrisia de Judas, procura executar o programa de Juliano, o Apóstata, na Rússia, Stalin e sua caterva reproduzem as perseguições de Domiciano, Calígula e Nero, com todos os seus requintes de crueldade. As piores lutas que a Igreja teve de enfrentar desde Constantino e Juliano, nada são em comparação das de nossos dias. A própria Revolução Francesa, tão sinistra e tão sanguinária, parece-nos hoje uma avó tímida e acanhada da Revolução comunista, a tal ponto as cenas de sangue da Espanha e do México excedem em violência às de 1789, e a tal ponto a doutrinação dos comunistas ultrapassa, em furor destrutivo, a dos revolucionários franceses.

Se ao menos se pudesse dizer que a heresia nazista grassa apenas na Alemanha, e a comunista na Rússia, ainda a situação seria menos dolorosa. O que, entretanto, caracteriza a situação presente, é que tanto o nazismo quanto o comunismo se constituíram como verdadeiros pólos de atração de todas as doutrinas políticas, filosóficas e sociológicas de nosso século. Se fôssemos reduzir a um mapa hidrográfico o mundo contemporâneo, poderíamos dizer que ele apresenta - abstração feita da Igreja - apenas duas grandes bacias, a do comunismo e a do nazismo, para cujos rios centrais convergem todos os outros tributários.

Efetivamente, fora da Igreja não se nota uma única corrente de pensamento que, quer pela natureza de sua ideologia, quer pela orientação política de seus chefes, não tende para o comunismo ou para o nazismo, e não presta à expansão de um ou de outro um apoio efetivo e ardente.

Na realidade, se as heresias comunistas e nazistas subjugaram a Rússia e a Alemanha, seus tentáculos se espraiaram pelo mundo inteiro e ameaçam arrastar para o sorvedouro toda a civilização contemporânea.

Infelizmente, os males da situação não são apenas esses.

O nazismo e o comunismo lançaram uma incalculável confusão no mundo contemporâneo.

Os erros que eles sustentam são absolutamente opostos, e por isto mesmo grande parte de pessoas - inclusive católicos transviados - quando reage contra um, procura apoio no outro.

O comunismo afirma a liberdade individual, mas exalta a personalidade humana a um tal ponto que cai no mais diabólico anarquismo. O nazismo, pelo contrário, afirma a autoridade e a disciplina, e nesta afirmação chega às raias da mais criminosa negação da personalidade humana e de seus inalienáveis direitos. Entre esses dois pólos, a humanidade, cambaleante, vacila, sentindo que nem um nem outro apresentam o ponto de apoio suficiente. E por isso são inúmeros os que, horrorizados a justo título com os desmandos nazistas, refutam-no com princípios liberais errados, e os que se horrorizam com o comunismo, apelam, como antídoto, para os remédios altamente tóxicos do nazismo.

Não espanta, pois, que vejamos católicos esperarem de formas falsamente místicas, semi-laicas e totalitárias de Estado, a salvação para a humanidade contra o comunismo, enquanto outros católicos, não menos desvairados, apelam para a própria aliança dos comunistas, a fim de vencer o nazismo.

Disse-se que Pio IX foi o Papa do "não", que soube dizer a todos os erros de seu tempo uma das mais retumbantes e ousadas negativas que a História registra. Pio XI, entretanto, foi em grau talvez muito mais alto o Papa do "não".

A tarefa de Pio IX foi quebrar os tentáculos do inimigo que o agrediam. A de Pio XI foi a de quebrar os braços dos Judas que queriam abraçá-lo. Enquanto a primeira atitude é fácil e clara, a segunda se presta a incompreensões perigosas. O Papa, entretanto, não recuou perante estas.

Os primeiros a cortejarem o Papa foram os totalitários, que começaram por conceder à Igreja as maiores regalias - às quais Ela tinha, entretanto, pleno direito. Aos sete ventos, proclamaram eles a sua amizade à Igreja. Aos poucos, foram se colocando como seus protetores. E finalmente quiseram se transformar em seus donos e senhores, para escravizá-la ao Estado e dar como preço dessa servidão o esmagamento do comunismo. Tudo isso no meio de sorrisos e carícias que tornavam embaraçosa a situação.

Com uma implacável clarividência, Pio XI desfez o manejo, mostrou claramente que preço mínimo valiam a seus olhos os bens perecíveis com que procuravam aliciá-lo seus aparentes amigos.

Radiantes com a luta entre os totalitários e a Igreja, os esquerdistas começaram a se aproximar por sua vez. Alegavam eles a necessidade de uma aliança. Ofereciam ao Papado os louros de uma consagração retumbante, nos círculos liberais e democráticos. Até o comunismo calçou de pelica branca sua mão sangrenta, para estendê-la à Santa Sé. Também a essa política, Pio XI disse energicamente "não".

Para o Papa, mestre infalível da verdade, não era necessário ficar com um erro ou contra o outro. Num gesto de incomparável audácia, ele fulminou ambos os erros simultaneamente. O comunismo oferecia seu concurso ao Papa como único meio de exterminar o nazismo. Este fazia o mesmo com o comunismo. O Papa, entretanto, fulminando a ambos, mostrou que não precisava de ninguém, mas só de Cristo, podendo dizer altivo, como o nosso grande D. Duarte: "É Cristo minha firmeza e minha autoridade".

Um Papa assim era pouco feito para ser idolatrado pelas massas. E mesmo entre os círculos católicos, não faltou quem dissesse que ele, pela sua inflexível intransigência, impediu que os fascistas, nazistas, socialistas e comunistas se aproximassem da Igreja.

Realmente, esta censura se tornou tão insistente que não faltou quem chegasse a achar que, se o Episcopado alemão, evidentemente apoiado pelo Papa, não tivesse guerreado Hitler, este se teria transformado, com o tempo, em um branco anjinho de andor.

Pio XI, entretanto, quebrou resolutamente os braços traiçoeiros que lhe ofereciam um estéril apoio, e pôs em Deus toda a sua confiança.

Aconteceu, então o que sempre acontece aos que desprezam a popularidade e as glórias humanas. Quando o grande Papa fechou os olhos, o mundo inteiro sentiu um vácuo terrível. E os elogios à sua grande personalidade não brotaram apenas dos arraiais católicos, mas da boca daqueles mesmos cujos manejos pérfidos mais de uma vez ele desfez.

Se Pio XI tivesse adotado o estéril alvitre de silenciar ante seus adversários e aceitar a mão traiçoeiramente cordial que lhe estendiam, teria gozado talvez de uma popularidade transitória.

A popularidade é a glória dos demagogos. A glória é a popularidade dos Santos e dos heróis. Pio XI, que desprezou a popularidade, descansa hoje na glória de Deus, enquanto seus despojos são cobertos de glória pelos homens.