Legionário, N.º 344, 16 de abril de 1939

 

A PATAGÔNIA EM CHEQUE

Não faltará quem considere o rumoroso escândalo verificado em torno da propaganda alemã na Patagônia como um “bluff” destinado a encobrir manobras anti-alemãs na Argentina.

A demonstração dessa tese, conquanto por suas conseqüências diretas, interesse exclusivamente à Argentina, afeta também o Brasil, de modo muito sensível. Não podemos, pois, deixar de fazer alguns comentários em torno do caso.

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O que a imprensa alemã tem publicado, e certas agências telegráficas têm complacente e pachorrentamente retransmitido de Berlim, é que o documento atribuído aos elementos nazistas da Argentina é absolutamente apócrifo e constitui mero pretexto para desenvolver cada vez mais na América do Sul uma campanha anti-alemã dirigida, por detrás dos bastidores, pelas potências democráticas.

Um jornal, importante órgão nazista, chegou a afirmar que, com essa mistificação, a campanha antigermânica atingiu, em nosso continente, o auge de sua intensidade.

Como dissemos, essa tese interessa o Brasil. Efetivamente, ela deixa entrever que a repressão ao nazismo, a respeito do que existem leis entre nós, resulta não de uma real infiltração alemã, mas de pretextos forjados por nosso governo, em obediência às injunções das potências democráticas. De onde se deduziria que a obra da dissolução dos partidos políticos estrangeiros, iniciada pelo Estado Novo, é odiosa, pois que vem apenas atingir algumas sociedades estrangeiras inócuas, que tratavam placidamente de tudo, exceto de política, e máxime de política imperialista.

O assunto, como se vê, não poderia, para nós, ser mais interessante.

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Não pretendemos discutir diretamente o caso, expondo os argumentos que nos levam a aceitar como verídica a infiltração nazista na Argentina. A autenticidade do documento sobre o qual o governo argentino baseou suas investigações não pode, para nós, ser objeto de discussão. Efetivamente, a respeito dessa intrincada questão, só dispomos das informações prestadas pelas agências telegráficas, o que não pode constituir base para veredictum imparcial.

Considerada, porém, a questão à primeira vista, deve-se admitir como verídica, a infiltração nazista na Argentina.

A tese sustentada pela imprensa alemã esbarra com tantos e tais sinais de inverossimilhança, que seus autores não a deveriam sustentar sem exibir simultaneamente uma documentação esmagadora, que até agora não veio a lume.

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Sustenta a imprensa alemã que a Argentina está obedecendo a potências democráticas, na sua luta contra o nazismo.

Essas potências, evidentemente, só poderão ser a Inglaterra ou os Estados Unidos. Não é à república de Andorra, e nem à república de San Marino, evidentemente, que se referem as insinuações alemãs...

Ora, quanto à influência inglesa na Argentina, por maior que ela seja, não é fácil provar que ela se exerce em sentido anti-alemão. Quem observar a burla diplomática à qual Chamberlain se está consagrando atualmente na Europa, poderá facilmente certificar-se disso. Chamberlain, que tem verdadeiro pavor de descontentar à Alemanha, e que chega a sacrificar pontos de vital interesse para o Império Britânico a fim de não irritar o iracundíssimo Führer, irá agora fazer picuinhas à Alemanha a propósito da longínqua Patagônia? Quem não se mexeu com a anexação da Áustria e da Tchecoslováquia, quem não teve coragem de falar alto e grosso a propósito das tropas alemãs instaladas na Espanha, irá brigar por causa da Patagônia? Para não irritar Hitler, Chamberlain talvez não lhe cedesse apenas algumas vantagens inglesas na Patagônia, mas a Argentina inteira, vendo, com olhar complacente e tranqüilo, o Führer perder o seu tempo em tornar o país do Presidente Ortiz em algum campo de concentração, e esquecendo-se, assim, por alguns momentos, de Gibraltar, da Rumânia ou das ex-colônias alemãs da África.

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Obedecerá o Presidente Ortiz à América do Norte?

A diplomacia portenha foi, em Lima, simplesmente cismática. Escandalosamente, apostatou ela da doutrina de Monroe. E, depois dessa feia ação de indisciplina, ainda voltou-se para trás, no momento exato de se ir embora, e deitou impertinentemente a língua para Tio Sam ver. Nicarágua, Honduras, Costa Rica ficaram estupefatas: então era possível desobedecer aos Estados Unidos? Uma aura de esperança as animou, com esse mau exemplo no caminho da insubmissão. E, hoje em dia, não apenas o governo argentino, mas até as mais inofensivas republiquetas sul-americanas enfiam alfinetadas no couro velho e esticado de Tio Sam, sem medo nenhum. Há dias atrás, ainda, viu-se a Casa Branca discutir de igual a igual com Costa Rica, a respeito de uma questiúncula que, há dez anos atrás, teria sido soberanamente resolvida pelo governo “yankee” com uma boa palmada.

Foram estes os frutos da sobranceria portenha. Será admissível, à primeira vista, que tal gente obedeça incondicionalmente aos Estados Unidos?

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O mesmo se poderia dizer do Brasil. É certo que o Sr. Getúlio Vargas tem sido gentil e cordial para com os Estados Unidos. Mas o Sr. Getúlio Vargas é de um temperamento exuberantemente afetuoso. Nunca se contenta, em seus amores políticos, com um só objeto. Por isto, enquanto ele troca gentilezas com a Casa Branca, despeja-se sobre o eixo Roma-Berlim o “superávit” de sua afetividade. A viagem do Sr. General Góes Monteiro, entre outros muitos fatos, prova exuberantemente que o Presidente da República não tem a menor intenção de romper de fundo com o eixo Roma-Berlim. Categórico na repressão de alguns abusos evidentes e escandalosos da propaganda nazista, ele não levou, entretanto, seu sentido repressivo a ponto de se deixar monopolizar pela amizade norte-americana.

A meu ver, se há um homem no Brasil com o qual o eixo Roma-Berlim possa contar para o desenvolvimento de uma política cordial, esse homem é o Sr. Getúlio Dorneles Vargas.

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Isto posto, o que pensar do documento? Será autêntico?

Ou sim, ou não. Se sim, está provada a propaganda nazista na Argentina. Se não, devemos admitir que tenha sido forjada pelo Governo para justificar uma repressão a seu juízo inadiável.

Na carência de outras provas, sempre difíceis de serem colhidas, alguém, no Ministério da Justiça da Argentina, teria recorrido a isto. Conquanto não consideremos provada esta última hipótese, é a ela que nos conduziria a negação da autenticidade do documento ora tão discutido em Buenos Aires.

Mas, neste caso, se alguém em alta roda argentina se julgou obrigado a lançar mão desse abominável estratagema, deve ter sido para fazer face a um perigo muito grande. O estratagema denuncia um grande medo. O medo denuncia um grande perigo. E esse grande perigo, outra coisa não seria senão a infiltração nazista na Argentina.