Plinio Corrêa de Oliveira

 

O grande Dom Duarte

 

 

 

 

 

 

 

 

Legionário, 12 de novembro de 1939, N. 374

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“... Esse homem taciturno e bom, passou pela vida a trabalhar, a sofrer, a lutar, a orar, desconhecido da mór parte dos seus contemporâneos”.

Destaco esta frase expressiva, dentre as muitas que o Ex.mo e Rev.mo Sr. Arcebispo Metropolitano dedicou à memória do grande Dom Duarte, a fim de as comentar na triste vigília de hoje.

Tem toda a razão nosso atual Metropolita. Se é certo que os funerais de Dom Duarte provaram a admiração que o povo lhe tinha, muito certo também é que essa admiração se firmou e se desenvolveu principalmente nos últimos anos de seu Episcopado, tendo a maior parte de sua vida decorrido em um ambiente de geral incompreensão, em que constituíam exceções quase únicas os Sacerdotes que generosamente evangelizaram a Arquidiocese sob a sua direção. E mesmo quando a admiração pelas virtudes do grande Arcebispo chegou a ser geral e dominante em São Paulo, poucos foram os que souberam medir em toda a sua elevação e sua profundidade a personalidade riquíssima em dons naturais e sobrenaturais que durante 30 anos a Providência pôs à testa do governo da Arquidiocese (de São Paulo).

Em geral, tinha-se dele a impressão viva, porém confusa, de uma grandeza interior, misteriosa e incomensurável, envolta em um silêncio majestoso, que falava com mais eloquência do que tudo. Era ele, para os olhos dos que não o conheceram bem, como um destes montes que sabemos que são grandes, porque vemos que suas cumeadas imergem nas nuvens. Mas por isto mesmo, não podemos medir inteiramente a altura à que se elevam: as próprias nuvens no-lo proíbem.

* * *

Se se disser que Dom Duarte tinha um coração afetuoso e sensível, muito espírito trivial, ainda hoje, terá um sorriso de dúvida. Disse dele o Ex.mo Rev.mo Sr. Dom José Gaspar de Affonseca e Silva que foi “taciturno e bom”. Para quantos observadores sem acuidade de vistas, só o que aparecia era o “homem taciturno”. E como é verdade, entretanto, que se esse “homem taciturno” era tal, em grande parte se devia isto à sua mesma bondade!

Dom Duarte era, por excelência, uma alma nobre e delicada, de um feitio que, muito longe de uma frieza fleumática, chegava frequentemente a ser apaixonada. Aqueles que tiveram a ventura de merecer sua amizade sabem com segurança como ela era profunda, e por isso mesmo fiel e constante

Os que o viram lutar e sofrer observaram certamente como o feriam a fundo as desilusões às vezes infligidas por aqueles a quem havia franqueado as portas de seu coração. Aqueles que alguma vez lhe expuseram suas mágoas e suas lutas podem testemunhar que ele encontrava, nos tesouros de seu carinho de Bispo, carinhos especiais para ungir e para suavizar todas as feridas. E quando algum dever particularmente bem cumprido, ou algum ato de marcado amor à Igreja suscitava sua admiração, é sabido o calor ardente, repassado de acentos de voz quase maternais, que não raramente ele sabia ter para com o respectivo autor.

O que, porém, fez com que o conhecimento dessa grande virtude se difundisse pouco foi uma dupla circunstância. De um lado, o grande Arcebispo tinha, realmente, um temperamento difícil e irregular, que foi certamente para ele uma larga fonte de lutas interiores e de santificação. Por outro lado, Dom Duarte era de uma bondade eminentemente sobrenatural, em que a Fé tinha muito mais preponderância do que a natureza, e em que uma vontade indomável tinha estabelecido uma ordem e uma coerência que a muitos parecia incompreensível.

Realmente, nossa sensibilidade humana se comove sobretudo com os gestos de afeto espontâneos e profundamente sentidos. Parece mesmo que só a eles está reservado o direito no reconhecimento das almas superficiais e comuns. E, por um erro de psicologia muito comum, supõe-se que quando um ato de abnegação ou gesto de perdão são resultantes não do primeiro movimento da natureza, mas de uma árdua e profunda luta interior, eles são menos completos, e por isto mesmo menos dignos de admiração.

Tome-se, por exemplo, um Santo que receba uma bofetada e, placidamente ungido de paz interior e de alegria espiritual, se ajoelhe aos pés do agressor a esperar humildemente outra bofetada. A espontaneidade de seu gesto, a tranquilidade afetuosa de sua conduta, sua profunda cordura atestada pela visível inexistência de qualquer indignação interior, causará possivelmente no agressor uma grande comoção. Tome-se, entretanto, outro Santo que receba idêntica ofensa, e, vencendo mil resistências interiores decorrentes de um temperamento sempre ardente, se ajoelhe aos pés do agressor com um gesto heroico, enquanto seu semblante trai uma comoção sensível reprimida à custo pela vontade, ele comoverá muito menos a massa geral dos observadores. Entretanto, podem ambos ser igualmente Santos. De uma grande Santa conta-se que, tendo recebido de Deus um especial incentivo para a prática da virtude da obediência, conseguiu vencer todas as relutâncias da natureza, e se tornar modelar na dócil conformidade com todas as vontades dos superiores. Entretanto, nos últimos anos de sua vida, Deus, para acrisolar ainda mais sua virtude, permitiu que renascessem todas as dificuldades de temperamento de seus primeiros anos de vida de obediência. Essas dificuldades, entretanto, nas quais não havia qualquer consentimento da vontade da Santa, longe de a tornarem menos perfeita, foram para ela um poderoso meio de santificação.

O que há, no fundo desse erro de observação segundo o qual o afeto mais espontâneo é sempre o mais verdadeiro, é uma negação dos efeitos do pecado original. O pecado original produziu na natureza humana um tal desregramento que seus afetos, espontaneamente, dissentem muitas vezes da reta razão. Não há uma única pessoa na qual a afetividade não tenda a se dissociar da linha apontada pela razão, em alguns ou muitos pontos. De sorte que quanto maior for a afetividade natural de uma pessoa, tanto mais está ela sujeita a defeitos morais que chegam não raramente a assumir feições gravíssimas.

Grande parte da desgraça contemporânea vem do desgoverno da afetividade. Se tantos pais e tantas mães se não tivessem acumpliciado com os erros dos filhos, levados por um falso amor; se tantas autoridades constituídas não tivessem dado livre curso aos desregramentos dos súditos levadas por uma falsa compaixão; se tantas e tantas vezes não nos acovardássemos diante dos defeitos e escândalos do próximo, levados por um falso sentimento de caridade; se tantos e tantos daqueles a quem, nas universidades, nas oficinas, nas casernas, nos clubes, nos lares, e por toda a parte, incumbe reprimir severamente o mal, não tivessem capitulado diante dele por pena dos delinquentes, não é exato que o mundo hoje seria outro e muito outro?

Quem, com um livro de História na mão, poderá negar que, se Robespierre, Danton e Marat ensanguentaram a França, um dos grandes responsáveis por isto é Luiz XVI, que, por pena para com os revolucionários, não os quis atacar manu militari, quando tal medida ainda era eficaz e possível?

Ah! Os pecados daqueles que auxiliaram o mal por não terem sabido como, e em que termos, se deve ser efetivamente bom! Quem poderá jamais dizer que rios de lágrimas e de sangue eles verteram sobre a humanidade, e que torrentes de almas eles afastaram do Céu para precipitar no mais fundo do inferno?

* * *

Dom Duarte foi, na plena acepção da palavra, uma pessoa que soube cultivar, na sua vida interior, a virtude da bondade sem jamais perder de vista a noção do pecado original. Foi com uma humildade edificante que ele reconheceu as asperezas e singularidades de seu caráter. E de tal maneira se premunia contra estes senões que pôde dizer no seu formoso testamento, como o cântico de triunfo de uma longa luta espiritual, jamais haver consentido que elas assumissem papel preponderante no seu modo de governar a Arquidiocese.

Quem dele se acercasse sentia um ambiente de luta espiritual, de mortificação íntima e de incessante combate, que era um dos fulgores mais límpidos de sua majestade espiritual. E quem lê todos os escritos que deixou, principalmente os mais íntimos, nota sempre a lucidez da inteligência para discernir e a ação férrea do controle exercido por sua vontade santa, para vencer todas as misérias que o pecado original deitou em todas as criaturas, excetuada Nossa Senhora.

E essa mesma noção não apenas teórica, mas prática, concreta, vivaz da miséria humana fruto do pecado original é que presidia a todos os atos da vida externa do grande Arcebispo. É essa a razão profunda de seu amor à autoridade que não era apenas o amor à autoridade que ele tinha sobre os demais, mas também o amor que ele como Arcebispo tinha às autoridades colocadas acima de si, isto é o Pontífice Romano que sempre ele amou com ardentíssimo amor, e a Deus, de quem ele foi servo fidelíssimo. E se sua autoridade era distante e rigorosa, qual a razão disto, senão sua profunda persuasão de que só assim lhe seria possível exercê-la efetivamente, esmagando o espírito de revolta que o pecado original havia semeado no próximo? Finalmente.... [erro tipográfico do jornal, n.d.c.]

* * *

Foi assim a alma grande, santa e pura do nosso primeiro Arcebispo. Com muita razão disse o seu Sucessor que ele “se refugiou no Santuário”. Realmente, sentindo-se incompreendido, indiferente às consolações humanas e com a alma voltada exclusivamente para o Criador, acrisolou ele sua vida de piedade buscando em Deus, mais e mais, uma firmeza e uma autoridade que os homens não têm, não podem dar, e geralmente, em nossos dias, não sabem compreender.

Aí, aos poucos, como uma “grande lâmpada acesa que brilhou 30 anos no Santuário”, sua vida terrena se extinguiu, sempre clara, sempre pura, sempre serena. E quando ela se apagou completamente em seu corpo mortal, mais uma estrela se acendeu no firmamento de santidade da Igreja gloriosa.

Ele teve, como poucos, fome e sede de justiça. Bem-aventurado! Agora, está plenamente saciado.


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