Legionário, N.º 380, 24 de dezembro de 1939

A visita dos Reis da Itália

Ninguém ignora que, na política italiana, uma forte divisão se pronunciou ultimamente quanto à orientação a ser seguida pelo país, diante da atual conflagração européia.

De um lado, elementos radical e categoricamente ligados à ideologia do fascismo não se conformam com a perspectiva da ruptura do eixo ideológico Roma-Berlim em razão da qual a Itália iria assistir de braços cruzados a uma ofensiva geral das democracias contra a Alemanha nazista. Concorre para essa relutância a situação na Espanha, onde cada vez mais os falangistas (nazi-fascistas espanhóis) perdem terreno na opinião pública e o carlismo (partido monarquista e católico categoricamente anti-fascista) se apresenta a todos os espíritos retos como o melhor caminho para a ressurreição de uma Espanha autenticamente católica e autenticamente imperial. Assim, pois, seriamente comprometido o projeto da nazificação da Espanha, projeto este que a despeito de inúmeros esforços de membros do governo cada vez mais se torna inviável, e demolido o Estado totalitário na Alemanha, que restaria das famosas direitas que o “Legionário”, com exuberância de razão, sempre teimou em chamar pseudo-direitas? Estendendo seus olhos em redor de si, e alongando-os depois sobre o mundo inteiro, Mussolini só viria a sentir em torno de si o vazio. Evidentemente, o fracasso dos produtos congêneres ou sucedâneos do fascismo no mundo inteiro seria irremediável. E o Sr. Oswald Mosley, na Inglaterra, outro remédio não teria senão vender para alguma empresa colonial as camisas uniformizadas de seus partidários, a fim de servirem de traje de trabalho para turmas de operários expedicionários... (...) o que certamente já terá feito o Sr. Leon Degrelle na Bélgica.

Por outro lado, entretanto, o nazismo, aliando-se com a Rússia, baixou todas as barreiras de camuflagem que o separavam do comunismo. O povo italiano é fundamentalmente anticomunista por ser fundamentalmente católico. O anticomunismo foi a grande razão da popularidade do fascismo. Se agora este se pusesse a aplaudir a bolchevização da Polônia ou da Finlândia, o que lhe restaria de prestígio aos olhos da opinião italiana?

Foi o que parece ter compreendido muito bem o Rei Victor Emanuel, que, com aquela prudência macia e discreta que lhe tem permitido fazer a Coroa sobrenadar às mais profundas perturbações políticas e sociais, mansamente, gradualmente, jeitosamente, sem dizer uma palavra, constituiu em torno de si um ambiente tal que ninguém ignora hoje que o Rei-Imperador e seu herdeiro presuntivo são adversários declarados da efetivação militar das promessas consignadas pelos tratados do eixo Roma-Berlim.

De um Superior de Congregação Religiosa, recentemente vindo da Itália, tive a informação de que o Rei é hoje uma das figuras mais influentes e populares de seu país, entusiasticamente aclamado nas manifestações públicas porque o povo sente claramente que é ele, na ordem temporal, o mais sério baluarte em prol da preservação da neutralidade da Itália.

“Dentro da ordem temporal”, disse eu intencionalmente. Porque o Papa também tem colaborado ativamente para conservar os seus propósitos pacíficos à população italiana. Assim, as numerosas notas do “Osservatore Romano”, assinalando para o povo italiano o perigo que constitui a penetração bolchevista na Polônia e na Finlândia, tem contribuído de modo considerável para manter no espírito público a convicção de que o cumprimento das promessas do “eixo” por parte do governo fascista seria um desserviço prestado por este à causa do anticomunismo.

Assim, pois, as situações respectivas da casa Real e da Santa Sé são absolutamente claras. A primeira é detentora de veneráveis tradições políticas e administrativas que, máxime depois do Tratado de Latrão que purgou a Família Real da mácula contraída com a tomada de Roma aos Papas, nenhum católico pode deixar de venerar e de apreciar. Essas tradições, todas elas consistentes em imponderáveis muito objetivos mas difíceis de definir, respiram o mais autentico perfume católico. Quanto à Santa Sé, inútil é explicar as razões de sua atitude: só não as compreendeu ainda quem for absolutamente incapaz de as compreender.

Se, pois, o Papa representa Nosso Senhor Jesus Cristo, e o rei encarna as tradições de um passado histórico multissecular e impregnado do perfume de uma civilização católica, o que de mais normal e louvável do que a cooperação destes dois grandes poderes, um supremo na ordem espiritual, e outro supremo na hierarquia temporal?

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Foi essa colaboração que a visita dos Reis da Itália ao Vaticano veio consagrar de modo auspicioso e feliz. É certo que, protocolarmente considerada, ela constitui apenas a primeira visita que os Reis deviam naturalmente ao Pontífice. E que, de outro lado, o caráter extremamente afetuoso que o Pontífice deu à solenidade constituiu uma prova de paternal benevolência que a Santa Sé dedica a Itália. Mas, isto tudo posto e pesado, continua incontestável que a visita se cercou de um ambiente de amizade afetuosa que só se poderia explicar pela existência de uma larga zona de colaboração, atualmente aberta e trilhada em comum não apenas pelo Papa,  que é indefectível no caminho reto, mais ainda pela casa real.

Essa colaboração é o maior benefício que no momento presente a Santa Sé e a Casa de Saboia poderiam prestar à Itália. Ela assegurará, com a graça de Deus, a continuidade católica da história italiana, fazendo da Itália um baluarte da civilização pela sua política nitidamente divorciada de qualquer surto ateu ou pagão na Europa.

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Ninguém ignora que os documentos pontifícios devem, todos eles, ser meticulosamente examinados, e pesados palavra por palavra, se se quiser conhecer exatamente seu significado, porque a Santa Sé, que coloca rios de prudência inteligente e corajosa em cada um de seus gestos, ou em cada um de seus documentos oficiais, mede miligramicamente todas as palavras que emprega.

Assim, pois, se as felicitações do Papa pelo fato de “a Itália, se bem que vigilante e forte, sob a sábia direção de seu soberano e de seus governantes, continuar a usufruir os benefícios da paz” hão de ter irritado sumamente os elementos fascistas favoráveis à entrada da Itália na guerra ao lado da Alemanha e da Rússia, sua irritação há de ter crescido de ponto diante do período final, segundo o qual o Pontífice pede que “o Todo Poderoso guie os passos do povo italiano que lhe está tão próximo e os de seu chefe e inspirar as decisões de seus governantes para que lhes seja dada possibilidade de assegurar não somente a paz interior e exterior, mas também relações de paz honrosa e durável entre os povos que por elas clamem”.

Neste período, como em todo o discurso pontifício, o Santo Padre trata como Chefe Supremo do Estado o Rei, distinguindo claramente entre o Rei e os demais governantes, e reconhecendo assim a autoridade máxima do Rei sobre todos os outros órgãos do poder público.

Feita de passagem esta observação que está muito longe de ser supérflua para quem conhece a mentalidade de certos arraiais fascistas ultra-rubros, para os quais a conservação da monarquia na Itália é apenas um mal necessário ao qual a gente se sujeita por “tapeação”, passemos a outro ponto.

O Papa fala em “relações de paz”, e não simplesmente em paz; fala em “paz honrosa” e não em uma paz qualquer; e finalmente entende que essa “paz honrosa” deve ser “durável” e não efêmera.

Cada uma destas palavras tem sua importância. Quando o Papa deseja que se estabeleça entre os povos a normalidade das “relações de paz”, fala evidentemente, não apenas de uma situação internacional na qual não haja lutas armadas, mas ainda em que as relações dos povos sejam realmente “pacíficas”, isto é tranqüilas e ordenadas conforme a justiça. A paz é a tranqüilidade da ordem. Segundo a linguagem corrente, há paz internacional quando o mais fraco se entrega sem luta cruenta aos mais fortes, premido pela extrema gravidade da ameaça, como aconteceu por exemplo com a Estônia. Mas não há “relações de paz”, embora a ordem material não tenha sido perturbada. Não basta, por outro lado, que estas relações sejam pacíficas. A paz, para ser real, deve ser “honrosa”. A formação, pois, de grandes blocos internacionais que suguem a soberania de pequenos povos que se conservam independentes apenas na aparência, a imposição de condições vexatórias e humilhantes a povos que de inferior só tem a extensão de seu território, é contrário à verdadeira paz desejada pelo Pontífice. Finalmente, a paz deve ser “durável”, o que quer dizer que o Pontífice não deseja apenas um rápido intermezzo róseo na tragédia contemporânea, mas uma radical transformação do atual estado de coisas internacional, que assegure durabilidade às relações pacíficas e decorosas que os povos civilizados devem manter entre si.

O que o Santo Padre mostrou querer foi, pois, que a Itália trabalhasse no cenário internacional de modo a assegurar este estado de coisas entre todos os povos. Não só que ela agisse assim, mas que ela colaborasse com aqueles povos que atualmente “clamam por esta paz”, para que eles a obtenham.

Em outros termos, a Itália se deverá constituir campeã da paz honrosa. E a paz honrosa tem dois inimigos: os que querem a guerra, e os que fazem propostas de paz desonrosas.

Queira Deus que do esforço da Santa Sé e da Casa real realmente resulte para a política internacional italiana uma tal diretriz que será mais uma glória na história brilhante e multissecular do povo italiano.