Legionário, N.º 394, 31 de março de 1940

O mais odioso dos despotismos

Sou obrigado a abrir um parêntesis na série de artigos que vinha escrevendo sobre a união dos católicos, a fim de comentar um acontecimento deplorável que enlutou milhões e milhões de católicos, nossos irmãos, exatamente quando, no mundo inteiro, o bimbalhar alegre dos sinos do sábado de aleluia anunciava à Cristandade o gáudio da Ressurreição do Senhor. Como ninguém ignora, na Alemanha nazista uma perseguição odiosa vem alvejando, há muitos anos, todas as igrejas que se dizem cristãs, e essa perseguição tem atingido de preferência o catolicismo, que é sempre o alvo verdadeiro de todos os que, “pour épater les bourgeois”, fingem perseguir também as seitas heréticas ou cismáticas. A perseguição dirigida pelos próceres nazistas é de uma perfídia satânica. Sua norma consiste em “não fazer mártires, mas apostatas”. Por isto, o III Reich não desencadeou, até agora, uma perseguição anticatólica em grande estilo neroniano, o que estaria muito dentro do espírito de truculência selvagem e pagã que constitui o substratum da sua mentalidade nazista - com o extermínio da Hierarquia Eclesiástica, saques e incêndios de estabelecimentos religiosos, e a profanação pública das imagens e objetos do culto. Preferiu o nazismo perseguir a Igreja por meios incruentos, provocando menor derramamento de sangue possível, disfarçando até o extremo seu rancor anticatólico, e editando uma legislação sapientemente adequada ao duplo escopo de privar a Igreja de todos os meios de atuar sobre as massas e de submeter as massas, o mais possível, à influência da propaganda neo-pagã do nacional-socialismo.

Veio daí o fechamento da imprensa católica, a extinção das associações religiosas, o confisco dos patrimônios eclesiásticos, o combate legislativo disfarçado às instituições beneficentes de inspiração católica, e o cerceamento compulsório de todas as atividades da Hierarquia ou do laicato que pudessem significar uma ação profunda da Igreja sobre as massas.

Os leaders nazistas, percorrendo as páginas da História, verificaram inúmeras vezes o poder insuperável da Igreja, quando, flagelada pelos açoites da perseguição, tinta de sangue pelo martírio de seus filhos, caluniada, ultrajada, crucificada, ela se ergue à face dos povos, reproduzindo com impressionante fidelidade a Paixão de seu Divino Instituidor. Este disse de si mesmo que “quando fosse elevado ao alto da Cruz atrairia a si todas as criaturas”. O mesmo se dá com a Santa Igreja. Sempre que seus algozes a pregam na Cruz, ela atrai a si todas as criaturas. Esta realidade se exprime, em outros termos, pela afirmação magnífica de que “o sangue dos mártires é semente de cristãos”. O III Reich, técnico em tudo, quis também ser técnico em seu modo de fazer a perseguição. E, por isto, em lugar de ferir cruentamente a Igreja, preferiu ele criar o espetáculo novo da Igreja moribunda, entregue exclusivamente à sua vida estritamente piedosa e litúrgica, com liberdade para desenvolver dentro das paredes do templo sua atividade exclusivamente litúrgica, mas sentindo os auditórios cada vez mais vazios, o público cada vez mais ralo, os fiéis cada vez menos numerosos, roubados pela propaganda nazista que ruge fora do templo, e contra a qual a Igreja não tem uma única arma para reagir.

É inútil dizer que o Sr. Hitler fracassará, como fracassou Juliano o Apóstata, e que a experiência por ele tentada servirá apenas para provar que a indestrutibilidade da Igreja não provém do sentimento humano de compaixão e admiração, suscitado pelo heroísmo de seus mártires, mas que independe inteiramente deste ou daquele meio humano, ela se estriba apenas na indefectibilidade dAquele que lhe prometeu que “as portas do inferno não prevalecerão contra Ela”. Enquanto, porém, o fracasso final do Sr. Hitler não se verifica, ferve na Alemanha a perseguição, e Nosso Senhor Jesus Cristo é novamente supliciado com uma perfídia e com um ódio que lembra perfeitamente todos os requintes de crueldade diabólica do sinédrio.

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Um dos aspectos mais odiosos - o mais odioso talvez - desta tirania anti-religiosa é o empenho sistemático por ela manifestado de roubar à Igreja a infância. Todos os católicos sabem perfeitamente com que amor ardentíssimo o Divino Salvador procurou atrair a Si as criancinhas, e as terríveis ameaças por Ele fulminadas contra os que quisessem afastar os inocentes do caminho da Verdade que só se encontra na Igreja Católica. Por isto, não há talvez meio mais certeiro de ferir o Sagrado Coração de Jesus do que fazer uma legislação contrária aos verdadeiros interesses da instrução e formação religiosa  da infância. Os cavaletes, as rodas, as espadas, as lanças, as fogueiras, as feras de Nero não eram, talvez, instrumentos de opressão mais eficazes contra a Igreja do que uma legislação de ensino que limite a liberdade de ensino exercida pelos católicos. Compreendeu-o perfeitamente o nazismo. Por isto, em matéria educacional, timbrou ele em fazer sentir sua ação maléfica. Em primeiro lugar, sobrecarregou de estudos as crianças nos ginásios. Em seguida por meio de formação especializada da juventude hitlerista, atraiu as crianças para fora da escola e da família, roubando ao convívio dessas longas horas de lazer, que por direito pertenceriam à Ação Católica e ao lar.

Assim, separadas as crianças do convívio com os ambientes que poderiam formar convenientemente seus espíritos, foram elas entregues à sanha anticristä dos educadores formados à moda dos Srs. Rosemberg e Baldur Von Sirach, que se incumbiram de lhes dar uma formação oposta à dos Evangelhos, formação esta que - repugna dizê-lo - apresenta Nosso Senhor Jesus Cristo como um judeu criminoso, digno de desprezo e de ódio, e não como o Salvador do gênero humano, digno de adoração e de obediência. E, assim, na alma de cada criança Nosso Senhor Jesus Cristo é novamente crucificado, dando-se o lugar que lhe pertence ao facinoroso Barrabás, representado hoje pelas doutrinas de força, que são o endeusamento sistemático do crime e da imoralidade. Mas havia ainda um refúgio. Eram os colégios particulares, pertencentes a Ordens e Congregações Religiosas, nos quais a ação do Estado era relativamente limitada, pois que tais estabelecimentos de ensino não lhes pertenciam. Estes colégios eram os únicos refúgios onde ainda se pudesse falar às crianças sobre o Bom Pastor que por elas derramou o Precioso Sangue. Eram eles a esperança de todos os católicos da Alemanha, e o asilo a que recorriam todas as famílias apavoradas diante da perspectiva de ver os respectivos filhos entregues sem defesa sobrenatural ou ideológica de qualquer espécie à propaganda neo-pagã.

Pois foi este último refúgio que se fechou no sábado de aleluia, quando os sinos bimbalhavam anunciando a Ressurreição do Senhor. Por um decreto de Hitler, nessa data, todos os colégios particulares se fecharam na Alemanha, e todas as crianças foram obrigadas a cursar exclusivamente as aulas dos estabelecimentos oficiais, que são verdadeiras escolas de paganismo, instrumentos de blasfêmias e de apostasia. Mas o que mais dói saber é que, em virtude deste decreto, até os Seminários Preparatórios e Menores foram fechados. Os próprios meninos nos quais a vocação de sacerdotes desponta, por  graça de Deus, na aurora da vida, são obrigados, d’ora avante, a expor sua mentalidade a todas as aberrações e blasfêmias da formação nazista, pois que são obrigados a cursar as escolas do Estado. O que isto significa - humanamente falando - não é necessário dizê-lo. A mais odiosa das perseguições pesa sobre a Alemanha, pois que não há perseguição pior do que aquela que atinge a educação e procura destruir ou corromper a própria vocação dos futuros Ministros do Senhor.

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Mas Deus sabe tirar o bem do mal, e triunfar de seus inimigos fazendo partir-se como teias de aranha as mais vigorosas cordas com que procuram manietar e supliciar a Santa Igreja Católica. Nesta semana de Ressurreição, o principal sentimento que devemos alimentar em nós, à vista de fatos destes, é uma ilimitada confiança em Deus. A Ressurreição de Nosso Senhor Jesus Cristo foi a prova mais fulminante de Sua Divindade. Pelo curso dos séculos afora, quis Ele também que a Igreja, reerguendo-se cada vez mais forte das terríveis perseguições contra ela desferidas, provasse assim a sua própria divindade.

Dentro de alguns anos - que serão mais ou menos numerosos, segundo os desígnios do Senhor - o nazismo não será mais do que uma reminiscência, uma mancha negra na História, mancha que a resistência heróica dos católicos alemães saberá por certo tornar muito pequenina...