Plinio Corrêa de Oliveira

 

Corporativismo

 

 

 

 

 

 

 

Legionário, 5 de maio de 1940, N. 399

  Bookmark and Share

 

Depois de uma interrupção imposta pela urgência de outros assuntos de atualidade, retomo hoje minhas considerações sobre o corporativismo. Em artigo anterior sobre o mesmo tema, mostrei a verdadeira natureza da oposição que o nazismo e seus “similes” espalhados pelo mundo inteiro movem contra a Igreja Católica. Sua luta contra a Religião não resulta de um aspeto extrínseco da ideologia totalitária, um capítulo logicamente separado dos demais que poderia ser a qualquer momento cancelado, convertendo-se em promissora bonança a tempestade que ameaça hoje o mundo inteiro. Pelo contrário, os totalitarismos das direitas não são senão acessoriamente correntes políticas. No fundo, elas são sobretudo doutrinas filosóficas extensas, complexas, coerentes dentro do erro de suas posições iniciais, e implicam por isto mesmo em uma concepção de Deus e do mundo que, sendo-lhes inteiramente peculiar, se opõe radicalmente ao pensamento da Igreja. Só acessoriamente é que se pode dizer que estes assim chamados “partidos” são agremiações políticas.

Sem forçar demais a analogia, eu poderia dizer que o partido nazista, por exemplo, está para o nazismo quase como a Liga Eleitoral Católica para o Catolicismo. Sei perfeitamente que grande número de meus leitores reputará ousadíssima esta afirmação, a tal ponto eles estão habituados, pelo noticiário dos jornais, a ver em Adolf Hitler sobretudo um chefe político. Peço-lhes simplesmente que não discutam o que ignoram, e não condenem uma afirmação cujo fundamento está longe de lhes ser inteiramente conhecido.

Minha opinião se baseia em fatos. Tomem eles mesmos o trabalho de conhecer Hitler e seus sósias espirituais mais diretamente, não pelo vidro fosco e suspeito das notícias telegráficas, mas através da documentação oficial do partido, e eles prontamente concordarão comigo.

* * *

Como disse em artigo anterior, a diferença entre a posição católica e a totalitária em matéria de corporativismo resulta muito mais de uma “weltanschauung”, uma concepção do mundo, do que de uma divergência sobre as excelências deste ou daquele tipo de corporativismo em face das necessidades práticas do momento. Se bem que travada em terreno econômico e social, a luta é filosófica.

A doutrina católica nos revela a existência de um Deus pessoal, nitidamente distinto de toda a criação. No homem, a Igreja vê uma criatura racional e livre, dotada de alma espiritual e imortal. Deus criou o homem para, amando-O, obedecendo-Lhe e louvando-O neste mundo, poder alcançar a graça de amá-Lo e glorificá-Lo eternamente no Céu. Assim, pois, nenhum dos homens que nascem neste mundo tem aqui mesmo sua razão de ser e seu fim último. Cada homem tem o seu fim em Deus, e atingirá tal fim depois da morte.

Não há, pois, associação, instituição ou grupo humano algum que, reputando-se o fim do homem, possa exigir deste o sacrifício total de todos os seus direitos. Família, associação política, recreativa, literária, corporativa, Estado, Sociedade das Nações, nada disto é suficientemente grande para se reputar o fim último de qualquer criatura humana, ainda mesmo da mais miserável e desvalida. O homem, e cada homem, tem direito a Deus. E Deus tem direito ao homem, e a cada homem. Qualquer pessoa ou grupo de pessoas que tente impedir ao homem o exercício dos direitos pelos quais ele se eleva até Deus, rouba ao mesmo tempo Deus e o homem.

* * *

Como vimos, a marcha do homem para seu fim último se desenrola sobre uma estrada de direitos incoercíveis. Especifiquemos mais claramente quais sejam estes direitos. Se o fim último do homem se encontra fora deste mundo, é vivendo neste mundo que os homens, um por um, singularmente tomados, hão de conseguir a graça de o atingir. E para que o homem possa viver no mundo, para a construção do seu fim último, o tempo marcado pela Providência, é que Deus criou toda esta imensidade de seres que são úteis ao homem.

Autor do homem e de toda a natureza, quis Deus dar ao homem necessidades para conservar sua vida e perpetuar a espécie humana, e ao mesmo tempo criou os seres com que o homem haveria de saciar tais necessidades. E como cada homem tem, pessoalmente em virtude de seu próprio fim, o direito de conservar sua existência, cada homem tem um direito personalíssimo e inalienável às coisas necessárias para tanto. Não é do Estado que o homem recebe este direito. O Estado, pois, não lhe pode tirar. Este direito vem de Deus, e roubá-lo a qualquer pessoa é roubar o homem e desobedecer a Deus. Antes mesmo que o Estado existisse, o homem tinha este direito. E, como veremos, o Estado só existe como meio mais eficaz de garantir tal direito.

* * *

Deus não se limitou a criar o homem com suas necessidades, e as coisas adequadas a saciá-las. Deus deu ainda ao homem a capacidade suficiente para, aplicando diligentemente seu talento intelectual e suas forças físicas, transformar e melhorar as coisas, tornando-as assim plenamente adequadas ao seu uso. Esta capacidade, Deus a deu ao homem relacionando-a tão intimamente com sua própria personalidade, que ninguém pode duvidar de que ela foi dada ao homem para que ele satisfizesse, antes de tudo, a suas próprias necessidades pessoais. Não existe somente um direito do homem ao alimento necessário à conservação de sua existência, mas ainda ao objeto que por ele transformado, em virtude de qualidade personalíssima que Deus [lhe concedeu], servirá de modo mais perfeito a suas necessidades.

Além do mais, o direito natural do homem não se estende apenas ao fruto da terra ou ao seu próprio trabalho. Deus deu ao homem necessidades que se renovam periodicamente, e com elas o direito de prover à sua existência, não apenas de modo transitório e precário, mas de modo estável e duradouro. Uma necessidade efêmera poderia gerar apenas ao direito do fruto. Uma necessidade constantemente renovada gera necessariamente direito à fonte de produção. Direito aos frutos e à sua fonte, direito ao trabalho pessoal e aos proveitos daí decorrentes, tudo isto foi dado ao homem pelo próprio Deus, e não pelo Estado. O direito de propriedade pode ser reconhecido ou garantido pela lei, nunca porém criado por ela. Porque o direito de propriedade é anterior à lei e não há uma única lei humana capaz de o extinguir sem praticar, “ipso facto”, uma injustiça monstruosa.

* * *

E o Estado? Sua própria razão de ser mostra sua posição em face do direito de propriedade. Criando o homem, quis Deus criá-lo de tal modo que qualquer sociedade humana, literária, científica, esportiva, recreativa ou de qualquer outra natureza não possa existir sem uma autoridade que a oriente. Principalmente depois do pecado original, tal necessidade se mostrou ainda mais inelutável. Se bem que todos os homens possam ter em vista um mesmo fim, suas opiniões variarão necessariamente sobre os modos de o atingir. De mais a mais, muito frequentemente as opiniões humanas, afetando embora a aparência exterior do zelo pelo bem comum, tendem na realidade a sacrificar este ao bem individual, concebido de modo exagerado ou injusto por esta ou aquela pessoa.

Para ordenar os esforços comuns na consecução do fim social é que cada sociedade humana possui uma autoridade. Exemplifiquemos. Um clube de tênis tem por fim promover entre seus membros a prática daquele esporte. Evidentemente, a realização de tal objetivo supõe a constituição de um fundo comum, a aquisição ou locação de instalações adequadas, a administração conveniente da sede etc.

Uma autoridade se mostra indispensável para um duplo objetivo: 1) determinar a orientação a ser seguida pelo clube nos assuntos sujeitos à controvérsia, como por exemplo a escolha deste bairro em vez daquele, desta sede em lugar daquela, a fixação deste emprego dos fundos sociais disponíveis, em lugar daquele, etc. 2) executar em nome da sociedade certos atos que evidentemente não podem ser praticados por todos os sócios em comum. Sem uma autoridade que providenciasse neste duplo sentido, o clube soçobraria na anarquia. Não haveria quem unificasse os esforços divergentes em torno de um programa comum. E, fixado tal programa, os esforços precisariam ter seus representantes. Imagine-se uma coorte de mil sócios atravessando a cidade para pagar em comum um imposto, depositar um cheque ou contratar um anúncio em algum jornal!

Acresce que, em virtude do pecado original, a vontade humana facilmente se inclina para o mal, e dificilmente se resolve ao bem. Por isto, os indivíduos facilmente desrespeitam, dentro da sociedade, os direitos de terceiros. Se uma sociedade de tênis não tivesse direção, em pouco tempo certos sócios deixariam de pagar suas cotas, outros se apossariam de peças do mobiliário social e outros enfim, abusando de certa preeminência conferida pela força ou pela situação social, abarcariam para si todas as vantagens, as melhores quadras, as melhores horas, as melhores bolas e raquetes, os melhores “grooms”, etc., etc. O resultado seria que em pouco tempo a sociedade privaria uns sócios de todos os direitos fundamentais, em benefício dos outros. E isto seria implicitamente a anarquia.

A necessidade de prevenir tais males impõe aos sócios a obrigação de aceitar uma autoridade comum, e de fazer certos sacrifícios, mensalidades, obediência etc., em benefício da sociedade.

A autoridade se apresentará, pois, sob dois aspectos: um, em que ela assegura os direitos e aparece como o elemento salvador; e outro em que ela exige sacrifícios, e aparece como elemento limitador.

A própria engrenagem deste estado de coisas mostra que:

1) constituída para a tutela de direitos, a autoridade só deve exigir sacrifícios na medida em que eles forem imprescindíveis;

2) sempre que a autoridade exorbita, por pouco que seja, deste limite que deve ser estritissimamente respeitado, ela se volta contra seu próprio fim, pois que se constitui em injusta transgressora de direitos cuja tutela constitui toda a sua razão de ser.

* * *

Ponto por ponto, estas reflexões se aplicam ao Estado. Ele foi instituído por vontade divina para garantir o respeito aos direitos que Deus conferiu à natureza humana. Desde que ele se arrogue o direito insolente e criminoso de ferir estes direitos sagrados e fundamentais, ele se volta contra seu próprio fim. E os guardas da lei passam a ser quiçá os criminosos públicos número 1.

No próximo artigo veremos em que sentido o corporativismo totalitário opera realmente, no Estado, esta deplorabilíssima transformação.


Bookmark and Share