Legionário, N.º 427, 17 de novembro de 1940

Previsões de sonhadores

Dois fatos dominam todo o noticiário desta semana, e, embora a importância deles seja muito desigual, são ambos suficientemente importantes para relegar para segundo plano na atenção pública quaisquer outros acontecimentos. Procuramos comentá-los com clareza.

O primeiro desses fatos é a visita que ao Reich alemão fez o “camarada” Molotov, comissário do povo para os negócios exteriores na Rússia.

Um diário desta Capital, em espirituosa nota, comentava o acontecimento dizendo que se há dois anos atrás alguém dissesse que em 1940 o “camarada” Molotov iria à Alemanha, imediatamente se perguntaria se na qualidade de prisioneiro, se na de vencedor. De fato, pela cabeça de ninguém poderia passar a hipótese que ora se converteu em realidade: o ditador da política externa russa transpôs o solo teutônico não como conquistador, nem como prisioneiro, mas como bom e leal amigo, recebido festivamente pelo chefe do protocolo nazista na pequena estação por onde se verificou seu ingresso em território nazista.

Aí, ou pouco mais adiante, não me lembro bem, autoridades nazistas e comunistas, que viajavam no mesmo trem especial, desembarcaram a fim de que o Sr. Molotov passasse em revista um pelotão nazista, que apresentava armas respeitosamente. Na estação, duas bandeiras tremulavam, entrelaçadas: uma era russa, e trazia os emblemas da foice e do martelo; a outra era alemã, e ostentava a cruz suástica.

Quando o trem que conduzia o Sr. Molotov deu entrada na estação de Berlim, esta se encontrava repleta de altos dignitários nazistas, que iam assim apresentar suas reverências ao chefe do ministério do exterior comunista. A este não faltaram, sequer, as homenagens dos diplomatas que, em Berlim, representam as potências anti-Komintern. Em outros termos, os embaixadores das nações que assinaram o pacto anti-Komintern concorreram para o mais autorizado representante do Komintern no mundo inteiro, isto é, para que o bolchevista Molotov tivesse uma recepção calorosa, que este retribuiu por meio de uma solenidade na embaixada soviética em Berlim. Acesas as luzes da embaixada, na escuridão da noite, os transeuntes, que do lado de fora pudessem saber o que a festa significava, ficaram certamente pensativos, lembrando-se dos longos, dos intermináveis discursos anti-nazistas ou anti-soviéticos, com que, há não muito tempo, reciprocamente se brindavam Molotov e Hitler. A medição dos transeuntes certamente, ia longe, quando uma brusca interrupção lhes cortou o fio: eram os aviões da Royal Air Force, possivelmente alguns dos famosos “hurricanes” ingleses, que começavam a despejar bombas sobre Berlim, e perturbavam assim a confraternização dos totalitários da cruz suástica, da foice e do martelo, e outros emblemas congêneres.

Realmente, teve razão o jornalista que referi, dizendo que ninguém poderia, há anos atrás, imaginar que o duelo nazi-soviético teria tal desfecho. Ninguém, certamente, mas com uma ressalva: os leitores do “Legionário”. Naquele tempo, os totalitários nos chamavam caluniadores e visionários, porque denunciávamos a cumplicidade oculta dos nazistas e de seus sequazes de outros países, com os sovietes. A “calúnia” passou a constituir a mais evidente das verdades. A “visão” converteu-se na mais objetiva das realidades. Mas ainda hoje, continuamos com a mesma pecha: “caluniadores”, “visionários”, “sonhadores”. Caluniadores que só dizem verdades. Visionários que só discernem realidades, sonhadores que sonhando vêem mais a fundo a realidade do que quantos críticos que temos encontrado pelo caminho. Assim Deus nos conserve...

* * *

Paralelamente a isto, enquanto se chocam fraternalmente os cristais das taças em que nazistas e comunistas celebram sua fraternidade, do outro lado dos Alpes não lhes faltam os aplausos.

Conta-nos um telegrama publicado pela “United Press” no “Estado de S. Paulo”, que o jornal fascista “Il Popolo di Roma” publicou uma entrevista concedida pelo embaixador russo em Roma, Sr. Nicolas Gorelkine, à imprensa búlgara, na qual  o representante soviético destaca a cordialidade de relações entre a União Soviética e o eixo Roma-Berlim, acrescentando que seu país estava muito interessado pela situação nos Balcãs. E o despacho telegráfico acrescenta que, em sua entrevista, disse o Sr. Gorelkine: “As relações da Rússia com a Itália entraram numa nova etapa de consciente aproximação política e econômica. No que diz respeito às relações entre a Rússia e a Alemanha, seu desenvolvimento é excelente e cheio de cordialidade, tanto no terreno político como no econômico. O setor balcânico continua atraindo a atenção da URSS de forma especial e me compraz poder declarar que a Rússia está também muito interessada nas aspirações nacionais búlgaras, tendo sido iniciado com felicidade um novo período nas relações russo-búlgaras, que continuará no futuro”.

Não foi outra a linguagem do órgão nazista “Deutsche Allgemaine Zeitung”, o qual disse que “todo o mundo compreenderá agora que quando Hitler enviou seu ministro do Exterior a Moscou, em 1939, não foi para fazer face às necessidades do momento, mas para a realização de uma grande concepção da política mundial. Esta concepção não se limitará às vantagens políticas, às garantias estratégicas, mas abrirá uma nova época para nosso hemisfério”. “Uma grande concepção da política mundial”, “uma nova época para nosso hemisfério”, que melhor confirmação para esses visionários do “Legionário”?

* * *

Vem agora o segundo fato.

Enquanto sob os aplausos da imprensa fascista e nazista, com a simpatia dos totalitários do mundo inteiro, a confraternização russo-germânica atinge seu auge, do outro lado do Reno, as coisas correm, na aparência, de modo bem diferente.

Na França ocupada, dominada, tutelada, o marechal Philippe Pétain revoga sucessivamente, uma após outra, as medidas anticlericais (...) na III República Francesa, e franqueia às iniciativas católicas um campo de ação que a iniquidade liberal lhes havia fechado inteiramente.

Isto não obstante, o Marechal inicia uma vistosa reaproximação com a Alemanha e com os países totalitários. Muito significativa foi a frase que pronunciou em um de seus discursos: a França precisa libertar-se de suas antigas amizades e de suas antigas inimizades. O que significa isto, senão que ela precisa romper totalmente com a Inglaterra, e colocar-se ao lado da Alemanha? E mais expressiva que suas frases tem sido seus atos. A reaproximação teuto-francesa, ou melhor, nazístico-petainista, não é apenas um estratagema do “herói de Verdun” para iludir os vencedores de sua Pátria. É uma política que o “homem de Vichy” segue deliberada, consciente, metodicamente, ainda mesmo que, a dar crédito aos telegramas, deva perder no caminho solidariedades como a de Weygand!

Assim, em outros termos, enquanto o velho estadista quebra os grilhões com que o liberalismo havia atado a Igreja na França, desenvolve ativa política de solidariedade com os dois homens em cujas mãos estão as pontas dos maiores e mais pesados grilhões com que, na Europa, esteja acorrentada a Igreja. Hitler e Stalin, pois que já agora não se pode falar em um sem se referir também ao outro.

Mais ainda: na reorganização do Estado francês, não é preciso ser profeta, para prever que o Marechal Pétain: “Nós, Philippe Pétain, Marechal de França é Chefe do Estado Francês”, como rezam bombasticamente os preâmbulos de suas leis adotará os mesmos princípios totalitários que, representando a supressão de toda e qualquer ordem jurídica, representam por força novos grilhões amarrados à Igreja.

Em outros termos, trocam-se os grilhões.

* * *

Trocam-se, sim, mas inutilmente. Dizia o Apóstolo que “verbum Dei nos est aligatum”. Dia virá em que Deus se rirá de todos os seus adversários, confundindo-os na mesma derrota que os colocará como escabelos aos pés da Igreja.

Enquanto isto não se der, deverá o mundo padecer as conseqüências de seus pecados. Mas Deus não tardará, pois que Sua Misericórdia é sempre maior do que nossos crimes, e certamente não está tão longe o dia em que Deus humilhará os inimigos da Igreja, e exaltará a Esposa de Cristo. “Deposuit potentes de sede, et exaltavit humiles”.