Legionário, N.º 429, 1º de dezembro de 1940

O “caso” da guarda de Ferro

O assassínio de 60 políticos romenos, levado a cabo por elementos exponenciais da “Guarda de Ferro“, não pode deixar de revoltar quantos ainda tenham no coração algumas fibras cristãs, e na inteligência alguns resíduos da noção de civilização.

Efetivamente, todas as circunstâncias de que o fato se cercou concorrem para agravar as notas de selvageria pelas quais o fato se destaca.

Não pretendo discutir, aqui, se a “Guarda de Ferro” é um partido animado de bons ou de maus propósitos, não me proponho a analisar sua ideologia nem o valor moral dos homens que ela elevou ao poder. Nenhuma destas considerações será necessária para qualificar com a maior severidade o fato que se passou. Pelo contrário, fundamentalmente anti-nazista que sou, quero entretanto argumentar como se a “Guarda de Ferro” representasse o partido da salvação pública na Rumânia: o fato é tão monstruoso que, partindo até das premissas dos totalitários rumenos, seremos forçados a lançar sobre ele a mais formal condenação.

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Anti-nazista, nem por isto deixo de ser também radicalmente anti-liberal. Por isso, jamais simpatizei com certas doutrinas que, sob o especioso pretexto de um exagerado humanitarismo, desarmam a vindicta do Estado contra os fautores de desordem e de anarquia. Assim, não tenho relutância em admitir que na época conturbada em que vivemos a salvação pública possa exigir o sacrifício de numerosas vidas de elementos perigosos, cuja simples existência constitui um perigo permanente para a civilização. Se a salvação da Pátria constitui um bem tão alto, que se justifica que no campo de batalha os homens de bem lhe sacrifiquem sua própria existência, por que não terá o Estado o direito de, quando imprescindível, condenar à morte agitadores e malfeitores públicos que constituam um risco fundamental para a coletividade? Evidentemente, só um humanitarismo que chegue às raias do pieguismo poderia não ver nisto a expressão do mais radical e sadio bom senso.

Entretanto, dessa desculpa não se podem servir os assassinos que, nesta semana, promoveram as execuções capitais ocorridas na Rumânia. Em primeiro lugar, nenhum deles encarnava a autoridade do Estado. Pelo contrário, agiram todos como meros particulares, e a prova disto está em que o governo romeno, longe de endossar oficialmente o ato, se julgou na obrigação de publicar um comunicado expressando, a respeito dele, toda a sua reprovação.

Destituídos dos cargos públicos e da autoridade que, só ela, poderia levar a cabo um golpe de tal envergadura, nem sequer podem os assassinos filiados à  Guarda de Ferro invocar, em seu proveito, a alegação de que, não providenciando o Governo no sentido da debelação daqueles inimigos públicos, a iniciativa particular se encontraria autorizada a agir subsidiariamente em nome do Estado. Sem entrar no exame desta alegação, basta-nos lembrar que os homens que governam a Rumânia são os próprios homens de confiança da Guarda de Ferro, elementos que ela sempre apoiou, e que a conduziram à vitoria política que ela desfruta. Como explicar que a Guarda de Ferro não confie nestes elementos? Como poderia ela honestamente proclamar a incompetência de homens que ela colocou no poder, para o que não hesitou em provocar a queda de um Rei, e uma profunda transformação moral, social e política em todo o país?

E desde que o governo não lhe mereça confiança, não seria melhor que ela se servisse de seu prestígio para obter a inclusão de elementos mais decididos no Gabinete, do que provocar um morticínio dessas proporções e deixar depois, tranqüilamente, que a totalidade das pastas ministeriais continue nas mãos de incompetentes?

Mas há outra razão, também ela do maior peso. Havia algum perigo imediato para a Rumânia, que sem justificar, ao menos explicasse o caráter fulminante do crime praticado? Não parece. Os prisioneiros estavam todos encarcerados. Não podiam, pois, conspirar contra a segurança do Estado e das instituições. Nenhum deles foi executado em sua própria casa, em alguma reunião política ou nas praças públicas de Bucareste. Todos estavam sob a custódia do Estado. E foi nesse lugar, quando nenhum indício percebemos de sua nocividade imediata, enquanto aguardavam juizes e advogados para, legalmente, se defenderem segundo as regras utilizadas entre os povos civilizados, foi aí, dizíamos, que os foi buscar a vingança inexorável de seus inimigos de ontem. Por mais candente que tivesse sido a luta, por mais amarga que fossem as queixas, por mais explicativas que fossem as paixões, quem poderia justificar este gesto?

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Todos os partidos políticos tem suas “nuances”. Há os rigoristas, os de meias tintas, ou seja, o centro, e aqueles que chegam a ser tão extremamente laxos que quase se confundem nos arraiais do partido adversário. O que a História nos ensina é que os partidos políticos que têm vitalidade são aqueles em que a ala radical tem preponderância sobre as demais. Não há sinal mais seguro da agonia de um programa do que ver que, entre seus defensores, a palma do prestígio cabe aos que são mais laxos perante a ideologia partidária. Pode a observação não agradar a muitos leitores que tenham o ridículo e acaciano fetichismo dos dolos de meias tintas. Nem por isto, entretanto, a verdade objetiva deixa de ser esta.

Muito frisante a este respeito é o que se passa nos três movimentos ideológicos mais fortes em nossa época.

Em primeiro lugar, volvamos os olhos para os arraiais católicos. Como a doutrina católica é a própria Verdade e o próprio Bem, não se pode amar exageradamente a Igreja. Mesmo porque quem a ama sem reservas deve amá-la como ela quer ser amada, isto é, com aquela ordenação sábia de caridade, que fazendo dela o centro de toda a vida e reconhecendo nela a fonte de todo o Bem, nem por isto, ou antes exatamente por isto, dá a cada qual o que é seu. De sorte que, quanto mais radicalmente católico se é, tanto mais se respeita, depois dos direitos de Deus, os direitos de todos os homens. Assim, não é possível que o amor entusiástico e sem limites à Igreja venha redundar em qualquer desordem. Este amor se confunde com a própria ordem.

Tal preliminar estabelecida, pode-se verificar que o sintoma mais característico do declínio do espírito católico em um povo é o declínio de seu ardor na defesa da pureza da doutrina. Quando, em um movimento católico, qualquer que ele seja, a preocupação dominante é de ceder, de transigir, de calar, de acomodar a todo o preço acomodações que entretanto não tem preço, a situação é clara: há um processo espiritual análogo à tuberculose que mina a fundo o espírito religioso. Pelo contrário, quando o movimento se destaca por seu radicalismo, isto é, por sua sede de ortodoxia completa e minuciosa, de perfeição autêntica e sem “maquillage”, de senso profundo do sobrenatural que há na Igreja, não há esperanças que não se possam nutrir a respeito de tal movimento.

Por isto mesmo, o grande renascimento religioso que ora se observa no Brasil nasceu da ruína do velho e falso (falso, acentuamos bem, pois que o autêntico espírito é outro) espírito de confraria, que o heroísmo de Dom Vital prostrou por terra. O falso espírito de confraria era um espírito de acomodação com o liberalismo. O repúdio radical do liberalismo e do naturalismo em todos os seus aspectos deveria ser, por força, o sinal do renascimento que Dom Vital fecundou com seu martírio.

Quanto aos outros dois movimentos, o nazista e o comunista, o mesmo se dá. Sua história não é senão a história das vitórias obtidas dentro dos arraiais do partido pelas alas mais radicais sobre as menos características da mentalidade coletiva. E no dia em que, quer em Berlim quer em Moscou, uma “ala” moderada se apoderasse da direção dos negócios públicos, todo o mundo sente que a ditadura totalitária estaria atingindo seus últimos dias de existência.

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O que são os homens que, na Rumânia, com seu assassinato, inspiraram tal horror à humanidade?

Exatamente os “jovens turcos” do partido, a ala ardida, a corrente extrema que marca assim, de modo flagrante, seu prestígio na Rumânia. Realmente, ou o governo romeno foi sincero, condenando os assassinos com algumas palavras de censura, o que constitui uma pena assaz leve, e nesse caso a própria ligeireza da pena prova a impotência das autoridades e a omnipotência adquirida pelos assassinos; ou então, pelo contrário, o governo estava de acordo com o fato que condenou só “pro forma”, e neste caso é a ala radical que já venceu.

Se tomarmos em conta que é a preço de atos como esse que o nazismo venceu na Rumânia, que é a custo destes sacrifícios que ele venceu em outros países, e que é esta a mentalidade das alas ardidas dos partidos nazificantes que mais ou menos por toda a parte fazem o jogo da Internacional hitlerista, compreender-se-á bem em que triste crepúsculo se está afundando o mundo de hoje.

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Eu não quereria, entretanto, por preço nenhum, que esta reflexão melancólica ficasse com uma nota de desânimo no espírito de nossos leitores. Desse crepúsculo, só o Catolicismo pode salvar o mundo. Sirva-nos esta reflexão para amarmos a Igreja mais do que nunca, apegarmo-nos a ela com um vigor maior do que jamais foi, a trabalhar, orar, sacrificar-nos para que Ela estenda finalmente sobre o mundo suas raízes de salvação e de vida.