Legionário, N.º 444, 16 de março de 1941

“O Papa não é neutro

A Agência “Havas” publicou no “Estado de São Paulo” da sexta-feira p.p. um telegrama cuja importância, para bem se poder aquilatar a posição da Igreja perante a atual tragédia européia, não podemos deixar de transcrever na íntegra. Diz aquela agência:

Cidade do Vaticano, 12(H) - O “Osservatore Romano” a propósito da cerimônia realizada ontem na Capela Sixtina, em honra do soberano Pontífice, consagra um estudo ao trabalho apostólico do Papa, esclarecendo certos princípios de atividade pontifical.

“O Papa não é neutro” - declara o editorial. “O Santo Padre não pode deixar de tomar partido. É também na luta que desempenha as funções de guardião do patrimônio da Revelação e da Redenção, do qual todos nós fazemos parte e que lhe foi confiado. Quanto mais forem entrelaçadas a justiça, a caridade, a fraternidade e o valor da vida adquirida ou criada, tanto mais estarão comprometidas a luz e a orientação das consciências e, em definitivo, a existência ou não-existência da própria consciência humana, e o Papa estará na luta. Ele combate com coragem pelo bem, pelo justo e pela verdade, quanto mais evidentes forem as infrações cometidas. Eis a sentença que ele profere como uma condenação. Somente essa sentença permanece em conformidade com a grandeza do Cristianismo”.

O artigo do “Osservatore Romano” é assim concluído: “Pastor angélico, sim, mas no qual a doçura é substituída pela força, quando as razões de Deus o exigem. Isto é atestado pelo Anjo da Guarda, empunhando uma espada de fogo à porta do Paraíso perdido”.

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Ninguém ignora que o “Osservatore Romano” é o órgão oficioso da Santa Sé, e que, em todas as chancelarias e cúrias do mundo, seus pronunciamentos costumam ser considerados como a expressão do pensamento do Vaticano. Assim, o texto que o telégrafo nos transmitiu merece ser analisado com todo o cuidado. Evidentemente, é possível que, destacado como nos chegou, o texto seja muito mais forte do que considerado em todo o artigo. Mas, a ser analisado como nos chegou, é ele da maior importância.

Sua primeira parte é de caráter estritamente doutrinário. Mostra ele que o Santo Padre é o guardião da Revelação, não apenas em tempos de paz, mais ainda em tempos de guerra, e que, quando a violência ameaça prejudicar a economia da Redenção, a neutralidade do Papa constitui para ele uma situação insustentável. Com efeito, depositário dos tesouros espirituais da Igreja de Cristo, suas próprias funções de guardião lhe impõem que entre em liça cada vez que o depósito a ele confiado seja posto em risco pela astúcia ou pela violência dos adversários da Religião.

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Mas há um tópico que sobretudo merece atenção. Afirma o órgão da Santa Sé que quanto mais estiverem afetadas por algum conflito internacional a justiça, a caridade, a fraternidade e o valor da vida adquirida ou criada, quanto mais estiverem comprometidas na guerra a luz e a orientação das consciências, e em suma a própria existência ou inexistência da consciência humana, tanto mais o Santo Padre estará empenhado em lutar contra tais perigos.

Em outros termos, desde que uma determinada ideologia ameace sobrepor-se a todos os povos da terra, conquistá-los, avassalá-los, aniquilá-los, quanto mais essa ideologia for diversa da da Igreja, tanto mais o Papa estará obrigado a lutar contra ela para manter intacto o depósito da Revelação e da Redenção.

Daqui se segue um corolário evidente. Se houver grupos em justa, defendendo cada qual uma posição ideológica diversa da da Igreja, esta deverá considerar o mal maior a vitória do grupo que representar a ideologia mais distante, o mal menor o triunfo da ideologia menos distante.

Efetivamente, combater pelo mal menor quando não se tem esperança de um triunfo completo e imediato do bem total, ainda é combater indiretamente por este. De fato, desde que vença o mal menor, será mais fácil chegar ao bem total do que se vencer o mal maior. Isto é tão evidente que só em uma época de geral confusão de idéias como a nossa se pode conceber a necessidade de expor coisas tais.

Assim, mesmo quando a Santa Sé prefere o mal menor, continua na realidade a “combater com coragem pelo bem, pelo justo, pela verdade”, e o que sobretudo cumpre notar é que “quanto mais evidentes forem as infrações cometidas”, tanto maior será seu desassombro na luta. E o jornal acrescenta ser essa a “sentença que ele profere como uma condenação”. Somente essa sentença permanece em conformidade com a grandeza do Cristianismo.

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Como explicar que o Vigário de Jesus Cristo, que é a encarnação da doçura, da mansidão, da bondade, aquele Vigário, que com tão unânime enlevo da Cristandade todos se comprazem em aclamar o “Pastor angélico”, entre assim, com a energia de um combatente vivaz, na grande luta contemporânea?

Explica-se facilmente o fato. O próprio órgão do Vaticano nos dá tal explicação. “Pastor angélico, sim, mas no qual a doçura é substituída pela força, quando as razões de Deus o exigem. Isto é atestado pelo Anjo da Guarda, empunhando uma espada de fogo à porta do Paraíso perdido”.

Assim, e sem querer exagerar a importância de um simples tópico telegráfico, quando só o texto completo pode exprimir com toda a fidelidade o que disse o “Osservatore Romano”, o “Legionário” vê no fato mais um valioso estímulo a sua orientação.