Legionário, N.º 486, 4 de janeiro de 1942

De pé, contra o inimigo

Interrompo hoje a série de artigos que vinha escrevendo sobre a última Pastoral do Venerando Episcopado, a fim de pôr em relevo alguns tópicos da belíssima Mensagem de Natal com que Sua Santidade, o Papa Pio XII, presenteou a Cristandade.

O mundo inteiro tem tido ocasião de observar que o atual Pontífice alia à infalível segurança de doutrina própria ao seu excelso cargo, belíssimos dotes de orador, já revelados quando o então Cardeal Pacelli tinha ocasião de falar em público. Infelizmente, é tal a densidade doutrinária da última mensagem, que um comentário exaustivo acerca de todos os tópicos importantes que ela contém exige muito mais uma opulenta monografia do que as dimensões exíguas de um artigo de jornal.

Assim, queremos focalizar apenas dois pontos mais importantes.

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O Legionário, mal compreendido muitas vezes por certos leitores eivados de liberalismo, tem combatido insistentemente o vezo de que ainda não estamos livres, que consiste em falar muito de "Cristianismo" e pouco de "Catolicismo".

Li, certa vez, um extenso rodapé de jornal, escrito por um prócer católico que, de início a fim, marcava uma omissão intencional da palavra Catolicismo, entretanto tão usual em nossa linguagem diária, e um emprego freqüente e insistente da palavra "cristianismo". A única forma autêntica de Cristianismo é o Catolicismo. Precisamente porque a noção que a palavra "Cristianismo" exprime é divinamente pura, verdadeira e bela, devemos mantê-la limpa das deformações e impurezas que a confusão da linguagem corrente tende a estabelecer em torno dela. Ora, o mal uso dessa divina palavra tem sido tal que a proteção do conceito que ela encerra se faz muito melhor pelo emprego da palavra "Catolicismo". Em abono de nossa tese, publicamos o seguinte tópico da Mensagem Pontifícia que melhor do que qualquer outro descreve a confusão diabólica estabelecida a este respeito pelos adversários da Igreja:

"Foi a Humanidade que se rebelou contra o verdadeiro Cristianismo e contra a verdadeira fé da doutrina divina. A Humanidade criou um novo Cristianismo, baseado em sua própria imagem, e um novo ídolo que não pode salvar e não pode fugir aos pecados da carne, e de cujos olhos o brilho da prata e do ouro não se afasta. A nova religião é sem alma e as novas almas que surgiram são sem religião. Elas são a própria máscara do Cristianismo sem o espírito de Cristo".

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Merece especialíssimo registro a conduta admiravelmente suave e firme que a Mensagem Pontifícia adotou com referencia ao problema da "nova ordem".

Como ninguém ignora, a propaganda nazista lançou o leit-motiv da necessidade de organizar, sob os tacões das botas dos gauleiters [chefes distritais nazistas], uma nova estrutura ideológica, política, social e econômica, que constituirá propriamente uma civilização pagã no sentido mais exato e completo do termo. Infelizmente, não são tais as circunstâncias para que possamos banir de nosso espírito as apreensões de uma possível vitória nazista na Europa. Os últimos acontecimentos lograram reduzir consideravelmente tais apreensões, sem, contudo, eliminar por completo.

Diante desta lúgubre perspectiva de uma nova ordem na Europa, que não seria senão o mais férreo e completo sistema de desordem organizada, isto é, que estabeleceria ou formaria com mão de carrasco um estado de coisas baseado na completa subversão de todos os valores, que atitude assumiu o Santo Padre?

O Vaticano já declarou expressamente que a Santa Sé não é neutra no presente conflito. Reafirma-o Pio XII em sua última Mensagem, acentuando embora que quer evitar qualquer atitude que possa ser apresentada às massas, pelos envenenadores da opinião pública, como a expressão da antipatia da Sé Romana para com qualquer povo. No mesmo tópico, o Santo Padre acentua ainda que as perseguições religiosas, em lugar de decrescer com a guerra, pelo contrário, tem tomado corpo. E de modo expresso o Santo Padre afirma que não quereria passar sob silêncio tal afirmação, a fim de evitar funestas ilusões na opinião pública.

Em outros termos, discreta embora, a atitude do Vaticano é de formal condenação às perseguições religiosas do nazismo, e de reprovação completa aos erros por este difundidos.

A mesma atitude, serenamente discreta, foi observada pelo Santo Padre quanto à diabólica "ordem nova". O Santo Padre não a atacou de frente. Mas descreveu pormenorizadamente o que se deve entender por uma verdadeira ordem entre as nações, e com isto traçou um quadro diametral e inexoravelmente oposto ao que os profetas do nazismo delineiam para a Europa de amanhã. A uma federação de estados escravos, governados na aparência pelos miseráveis fantoches que hoje dirigem 99,9% dos países da Europa Continental, e feitoriados na realidade pelos capatazes da clique de aventureiros de que se serve o Sr. Hitler, o Santo Padre opõe a visão grandiosa de uma Europa banhada no sol da caridade sobrenatural do Corpo Místico de Cristo, em que as nações grandes e pequenas, convivendo em família, sem opressões, sem armamentismo, sem perigo de injustiças, sangueira e "blitz-roubalheiras", fosse um conjunto de povos civilizados, e não um grupo de vítimas espavoridas, a viver sob o jugo sinistro do gangsterismo pardo.

Em outros termos, definindo o único estado de coisas, que por ser verdadeiramente "novo" e constituir autenticamente uma "ordem", poderia chamar-se uma "nova ordem", o Santo Padre se colocou intencionalmente, friamente, com uma serenidade que lembra os mártires do Coliseu, contra os desígnios do déspota onipotente que constitui hoje o opróbrio e desgraça da Europa Continental.

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A Santa Igreja é e deve ser sempre para nós a fonte de inspiração de todas as nossas atitudes. Diante deste gesto sublime em que o vulto branco do Pontífice se ergue tragicamente isolado em meio dos escombros da Europa totalitarizada, detendo com o heroísmo de seu anátema as hordas sombrias dos novos bárbaros, deve sentir singular estímulo qualquer católico.

Em sua recente Pastoral, nosso Episcopado se referiu ao revolucionário francês que apostrofou da seguinte maneira a aristocracia ceifada pela guilhotina: "Levantai-vos; vossos adversários só estão de pé porque vós estais de joelhos". Neste início de ano, o "Legionário" não teria melhor resolução a formar, nem melhor conselho a dar aos seus leitores.

O gesto heróico do Vigário de Cristo e a voz ardente de nossos Bispos nos chamam à luta. Já é tempo de deixarmos a situação de inglória prostração perante um inimigo por vezes irreal. Para l942, nossa senha deve ser esta:

Católicos, de pé contra o inimigo.