Legionário, N.º 505, 17 de maio de 1942

“Com Singular Complacência”

A Carta Apostólica dirigida por Sua Santidade o Papa Pio XII a Sua Eminência o Senhor Cardeal-Arcebispo do Rio de Janeiro marca uma era nova nos anais do laicato católico brasileiro, e merece por isso um exame atento e meticuloso. Com efeito, a palavra do Santo Padre é um tesouro do qual devemos analisar jóia por jóia, palavra por palavra, a fim de lhe dar o devido valor.

Preliminarmente, é digno de nota que o Sumo Pontífice tenha tratado um problema de envergadura mundial, qual seja o da situação jurídica das Congregações Marianas nos quadros do apostolado leigo depois da fundação dos atuais organismos da Ação Católica, por meio de um documento dirigido ao insigne Cardeal-Arcebispo do Rio de Janeiro. Este assunto é de interesse mundial, não só por que afeta todos os países católicos, mas ainda por que no mundo inteiro tem sido debatido. Assim, poderia ser resolvido como as questões da mesma importância, por meio de uma Encíclica dirigida a todo o Episcopado católico. O Santo Padre poderia, ainda, exprimir-se pela voz autorizada de seu eminente Secretário de Estado. Preferiu, entretanto, honrar o movimento mariano do Brasil, dirigindo-se pessoalmente e em português - o texto oficial é em nosso idioma - ao grande Cardeal D. Sebastião Leme, e mostrar, assim, toda a importância que as entidades religiosas do Brasil vão assumindo na vida da Igreja e no coração do Augusto Pontífice. Para testemunhar de modo todo especial o amor que vota ao movimento mariano no Brasil, o Santo Padre quis que sua Carta Apostólica fosse intitulada “Com Particular Complacência”, uma vez que os documentos pontifícios costumam ser designados pelas palavras com que começam. Ainda mais: quis o Santo Padre mencionar nominalmente a Confederação Nacional das Congregações Marianas no Brasil, e seu “dileto filho César Dainese, da Companhia de Jesus”, bem sabendo a gratíssima repercussão que esta honra teria no coração de todos os Congregados do Brasil. Que generosa e exuberante recompensa do Santo Padre a quantos concorreram para o ramalhete espiritual que de tal maneira O sensibilizou!

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A palavra augusta do Santo Padre vem por termo a uma era de confusão e insídias, em que o inimicus homo, invejoso das flores que desabrochavam no jardim de Maria, difundiu o joio de mil conjeturas infundadas, de mil doutrinas temerárias, de mil novidades perigosas, a fim de tornar inútil a obra dos bons semeadores. Diversas opiniões infundadas ruem por terra e se desfasem inteiramente com a carta do Santo Padre, e é para nós um dever, assinalar fortemente tal fato.

A despeito dos frutos incomparáveis que as Congregações Marianas produziram, não faltou quem lamentasse que elas tivessem florescido entre nós, porque suas numerosas e notáveis realizações no campo do apostolado prejudicavam a expansão da Ação Católica. Entendia-se que as Congregações Marianas tinham saído de seu papel ao dar origem a toda sorte de obras de atividade apostólica pelo Reinado de Cristo. Este terreno pertencia só à Ação Católica, que deveria enxotar dele as Congregações Marianas e as demais associações, como corpo estranho, velharia embaraçosa que melhor proveito poderia prestar à causa da Igreja senão confinando-se no mero campo das atividades estritamente piedosas e de mera formação espiritual. E eram estes ainda os mais generosos! De quantos elementos qualificados, ou soi-disant tais, ouvimos a afirmação de que segundo a mente da Santa Sé deveriam desaparecer gradualmente as Congregações Marianas e outras associações, para sobreviver apenas a A. C. Condenadas a uma morte lenta, deveriam fanar-se aos poucos, até que esse caridoso processo de pena capital por inanição, “paternalmente” aplicado pelos Pontífices, desse cabo delas! Utopias! Erros! Falsas visões de um messianismo heterodoxo! Finalmente, a palavra do Papa veio. E ela não tardou em restabelecer a verdade.

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Acentuando primeiramente os trechos em que o Santo Padre afirma taxativamente que deseja ver as Congregações Marianas entregues ao apostolado exterior e social, e não apenas ao campo da piedade e da formação.

Diz o Santo Padre que apreciou muito o ramalhete espiritual dos Congregados, mas que por maior que tivesse sido esse júbilo, “maior ainda foi Sua satisfação ao saber que as valorosas Falanges Marianas são cooperadoras eficazes na propagação do Reino de Jesus Cristo e que exercem um fecundo apostolado, por meio de múltiplas e variadas obras de zelo”. Assim, pois, as obras de apostolado externo a que presentemente as Congregações Marianas se entregam não são consideradas pelo Santo Padre um terreno em que elas sejam intrusas, em que se possam quando muito tolerar em falta de melhor: o Vigário de Cristo sobre a terra se rejubila com o fato, e implicitamente afirma que elas tem a isto pleno, amplo, total e irrestrito direito.

Comprova-o o período seguinte: “isto vem confirmar-nos, ainda mais uma vez, que estas Falanges Marianas ocupam, segundo suas gloriosas tradições, sob as ordens da Hierarquia, um conspícuo lugar no trabalho e na luta pela Maior Glória de Deus e bem das almas”. Em outros termos, fazendo tudo quanto fazem presentemente, estão apenas na situação “conspícua” que a tradição lhes indicou, e essa situação “conspícua” nenhuma alteração sofreu com fatos supervenientes como, por exemplo, a constituição da Ação Católica.

Houve quem sustentasse que as Congregações Marianas têm uma estrutura jurídica que as torna radical, e visceralmente incapaz de apostolado em nossos dias. É supérfluo acentuar até que ponto a Carta Apostólica pulveriza essa fantasiosa e inconsistente afirmação. Outros têm pretendido que as Congregações ocupam no Brasil um lugar por demais grande, roubam à A. C. o lugar que lhe é devido. De nenhum modo, já que o Pontífice se rejubila com a magnitude desse papel, e acrescenta a expressão de seu grande contentamento pelo fato de que elas “ocupam um lugar conspícuo, segundo está informado, no trabalho e na luta para a Maior Glória de Deus e bem das almas, e que são, como força espiritual de grande importância para a causa católica no Brasil”. Que informações teve o Sumo Pontífice para chegar a tal afirmação? Foram as mais autorizadas e imparciais, e é Ele mesmo que no-lo diz: “com tanto entusiasmo, publicamente o tem manifestado repetidas ocasiões, dileto Filho Nosso, bem como também o tem feito outros Veneráveis Irmãos no Episcopado”. Em outros termos é toda a Hierarquia Católica que o afirma, que o aplaude, que o sanciona. Quem ousará discrepar?

Mais adiante, o Santo Padre insiste: “uma sólida formação espiritual e uma intensa e fecunda atividade apostólica são elementos ambos essenciais à toda Congregação Mariana”. Como pretender, então, que as próprias Regras das Congregações confinam esses sodalícios no mero terreno da piedade?

Mas, dir-se-á, o Santo Padre, apreciando a situação atual, gostaria talvez que as Congregações Marianas não aumentassem seu raio de ação. Não é verdadeira essa conjetura, e menos verdade ainda é que o Santo Padre deseja que as Congregações morram a fogo lento: “Nossos mais vivos desejos são que estas associações de piedade e apostolado cristão cresçam cada dia mais, cada dia mais se robusteçam numa íntima e profunda vida sobrenatural, cooperem cada dia mais, com seu tradicional acatamento e humilde submissão às normas e direção da Hierarquia, na dilatação do Reino de Deus, e difundam cada vez mais abundantemente a vida cristã, nos indivíduos, nas famílias e na sociedade”. Não se trata aí de mero desejo do Sumo Pontífice, mas “de seu mais ardente desejo”.

 Finalmente, aos que entendiam que as Congregações Marianas eram produto de uma espiritualidade decrépita, isto é da espiritualidade ignaciana que, com seus Exercícios Espirituais saíra de moda inteiramente, o Santo Padre destina este trecho expressivo: “Com singular agrado vemos que os membros deste pacifico exército mariano... e temperam, constantemente, suas armas em freqüentes retiros espirituais, e na frágua dos Exercícios que cada ano praticam”. A distinção é clara: não é só os retiros em geral, mas os Exercícios de modo particular, que o Santo Padre Pio XII, como todos os seus antecessores, louva, abençoa, recomenda e inculca.

Assim se vê como foi acertada a orientação dada pela Ação Católica de São Paulo ao problema de suas relações com as associações preexistentes e particularmente com as Congregações Marianas. Enfrentando mil e mil dificuldades, críticas de toda ordem, incompreensões de todo o jaez, a Junta Arquidiocesana, sob a direção perspicaz e firme desse grande e benemérito paladino que é Monsenhor Antônio de Castro Mayer, e sob a augusta e alta autoridade de seu amadissímo Arcebispo - o “Arcebispo da Ação Católica” como tão justamente tem sido chamado desde seu tempo de Bispo Auxiliar - a Junta Arquidiocesana evitou atritos, incompreensões, dificuldades e ruínas que - como hoje se vê mais claramente que nunca - não corresponderiam aos propósitos da Santa Sé.