Legionário, N.o 565, 6 de junho de 1943

Clero Estrangeiro

Em um dos maiores matutinos desta capital, ilustre e conhecido jornalista acaba de lançar ao Clero um premente apelo de coadjuvação com outras classes sociais na tarefa de orientar o Brasil através das peripécias a que inevitavelmente nos arrastarão as transformações culturais e sociais da post-guerra. Ninguém deseja mais ardentemente esta colaboração do que o clero. Sua atitude é de permanente benevolência para com todos os esforços realmente bem intencionados, se bem que sua experiência já vinte vezes secular lhe ensine que os lobos falaciosos por vezes se vestem de cordeiros. Esta invariável benevolência é, por assim dizer, orgânica na Igreja Católica. Diz Santo Agostinho que Nosso Senhor Jesus Cristo instituiu a Igreja para a salvação eterna das almas, mas a fez tal, dotou-a de uma tão inextinguível pujança e capacidade de promover o bem-estar terreno, que, se ela tivesse sido fundada para tornar grandes e felizes os povos, não poderia ser, nem mais útil, nem mais fecunda. Ora, se é próprio da Igreja projetar sobre a ordem temporal uma influência tão soberanamente benéfica e eficaz, ela deve considerar suas cooperadoras natas todas as instituições que naturalmente se ordenem para o mesmo fim. Assim, a Igreja está perpetuamente aberta a todas as cooperações, e se estas não existem, ou é isto porque as potências temporais desdenharam a mão que a Igreja lhes estendia, ou porque lhe ofereceram, sob a especiosa aparência de cooperação, alvitres e soluções que custariam ao Catolicismo um preço que ele jamais pagará neste mundo: uma transigência, ainda que mínima, com seus intangíveis princípios, ou com sua missão sobrenatural.

Católicos, é com prazer, pois, que vemos proclamar-se mais uma vez, de público, a necessidade de uma cooperação das forças vivas da nacionalidade com o nosso Clero, para o bem do Brasil.

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Nem por isto, entretanto, podemos deixar sem reparos algumas das considerações feitas sobre o assunto pelo jornalista a que aludimos. Começa ele por fazer ressaltar a importância da cooperação do Clero. Tem toda a razão. Entretanto, não tem razão nenhuma no que diz respeito ao Clero estrangeiro.

Transcrevemos o tópico em que ele se refere aos sacerdotes provenientes de outros países, que aqui exercem seu ministério: “Somos visceralmente brasileiros. Não carecemos, aliás, de fazer profissão de fé nacionalista. Nestes quase quarenta anos de atividade jornalística deixamos e vamos deixando farta documentação do espírito que nos anima, e que sempre nos animou. As nossas palavras, pois, não devem ser agora consideradas como uma restrição ao exercício do sacerdócio por elementos que, embora enquadrados no Clero nacional, procedem de outras plagas. Ao púlpito e ao confessionário, deveriam ser admitidos, no nosso entender, exclusivamente sacerdotes brasileiros, inteligentes e cultos. Sem inteligência clara e lúcida, sem cultura e sem o fácil domínio do vernáculo, não poderá haver sermão ou conselho capaz de exercer influência no espírito daqueles que procuram o padre para juiz e orientador. Que autoridade poderá ter um pregador, quando fala em patriotismo, em ordem, em disciplina e no culto à família num linguajar andrajoso que com tudo se poderá parecer, menos com o nosso idioma?”

Evidentemente, estas linhas não podem passar sem algumas observações de nossa parte. E isto não só pela impressão que possam causar como, sobretudo, porque elas exprimem um pensamento que cada vez se vem externando com maior freqüência entre nós.

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Lembremos antes de tudo que segundo as intenções da Igreja o clero deve ser, normalmente, recrutado em cada país entre os próprios filhos do lugar. São por demais evidentes as razões desta disposição. Lembremos, simplesmente, que um sacerdote pertencente ao próprio povo que evangeliza, lhe conhece melhor do que ninguém os defeitos e as qualidades, as cordas sensíveis do coração e os pontos de resistência habitualmente mais renitentes à ação da graça, os costumes e as tradições, os hábitos e as convenções sociais, tudo aquilo enfim que se deve tomar em consideração para falar com eloquência e força persuasiva às massas e aos indivíduos. Tão longe vai a Igreja neste afã, que até nos países missionários, onde a hierarquia eclesiástica ainda não está organizada, o esforço da Santa Sé para recrutar entre os naturais do lugar os padres e os bispos é verdadeiramente insano. E a Santa Sé impõe aos missionários estrangeiros que estudem o melhor possível o idioma do país em que estão. Pensamos que nesta questão de clero indígena, o pontificado de Pio XI se assinalou de modo especialmente glorioso. E, certamente, o atual pontífice, logo que a agrura das circunstâncias presentes cessar, seguirá a orientação de seu antecessor.

Aliás, não seria supérfluo acrescentar que a carência de vocações nacionais representa, para qualquer povo, uma espécie de déficit espiritual que por sua vez denuncia um alarmante relaxamento do fervor religioso nas massas. O espírito católico é genuíno na medida em que os fiéis admirarem e respeitarem o sacerdócio, estimarem e ouvirem os sacerdotes. E quando, em um povo, se tornam menos densas as fileiras dos que, nos dias de ordenação, se apresentam diante dos altares para receber a honra inestimável do sacerdócio, pode-se ter certeza de que alguma crise profunda mina toda a mentalidade religiosa do país. A abundância de bons sacerdotes é e será sempre, em assuntos espirituais, padrão indiscutível de terra boa.

Como se vê, por todos os motivos deve a Igreja estimular e apoiar a formação do maior número dos sacerdotes nacionais.

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Tudo isto posto, imagine-se a desolação e a angústia da Hierarquia Católica no Brasil quando, por volta do fim do século XIX, verificou que as vocações decaiam inexoravelmente, que o número dos sacerdotes falecidos superavam o dos novos levitas, e que, ano a ano, a morte deixava nas fileiras do Clero lacunas que não podiam ser mais preenchidas. As ordens religiosas estavam quase extintas por força de uma legislação pombalina e draconiana. A formação dos sacerdotes seculares nos seminários fora embaraçada pelos mais variados tropeços. A tibieza se apoderara  da massa dos fiéis. E, nas cumeadas da organização social, os letrados e os elegantes liam Comte e seus congêneres, e proclamavam a quatro ventos a morte iminente da Igreja Católica.

Urgia remediar a tão catastrófica situação. E, entretanto, ela parecia não ter remédio. O número dos sacerdotes decaia porque o povo emergia na tibieza e as elites na incredulidade. E, como decaía o número dos sacerdotes, tornava-se cada vez mais difícil desenvolver uma ação capaz de remediar o mal.

Começou, então, a se generalizar em todas as Dioceses o costume de convidar sacerdotes estrangeiros, regulares e seculares, que aqui viessem coadjuvar o clero nacional, multiplicando com seus labores a efusão das graças sobrenaturais de que o ministro de Jesus Cristo é sempre portador.

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Fez bem ou fez mal a Hierarquia? A se ouvir as reflexões de nosso articulista, ela teria pelo menos andado com precipitação.

Entretanto, precisamente no momento em que os nossos bispos abriam os braços ao clero estrangeiro, nossos governos também abriam os nossos portos, com largueza maior do que nunca à imigração. Em inúmeras de nossas grandes cidades, ou de regiões de nosso sertão, os imigrantes dentro em pouco se fundiram com todas as camadas da população, e, por seu esforço, sua energia, sua economia, dentro em breve conquistaram entre nós invejáveis situações. Quantos deles conhecemos que rapidamente misturaram o português à sua língua de origem, falando em idioma misto com que toda a propriedade poderia ser chamado "linguajar andrajoso"? Nas fábricas, com os companheiros; na direção das indústrias, com os sócios; na vida social de todas as camadas, ricas ou pobres, esses elementos levavam consigo seu "linguajar andrajoso", concorrendo não pouco para por em circulação entre nós barbarismos de toda ordem, e, até mesclando algumas de nossas tradições com costumes alienígenas. Entretanto, ninguém se alarmou com o fato que tanta vantagem econômica nos trouxe. Creio, por exemplo, que mesmo nestes dias de guerra, noventa por cento dos brasileiros, para não dizer 100% dos brasileiros, bendizem a imigração italiana. Por que? Porque todos tivemos o bom senso de não nos abespinhar com os pequenos fatos que narramos, superados largamente pelas imensas vantagens que tal imigração nos trouxe como meio insubstituível de dar pleno e urgente aproveitamento às riquezas do país. E, hoje em dia, esses filhos de estrangeiros, brasileiros dos mais genuínos vivem como em família entre nós, amantes de nossas tradições, zeloso da glória de nossa pátria, briosos no seu civismo brasileiro, formados por quem? Por esse mesmo país de linguagem andrajosa que, a despeito da insuficiência de sua gramática, não tinham fechado nem seu espírito nem seu coração à doce influência da terra brasileira.

 

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Foi essa geração de imigrantes de "linguagem andrajosa" que preparou e educou no patriotismo brasileiro esta legião de brasileiros filhos de estrangeiros, que aqui vive. A "linguagem andrajosa" não prejudicou, nem seu patriotismo, nem sua plena identificação com o Brasil. Mesmo em "linguagem andrajosa" foi possível a esses imigrantes, em geral rústicos, formar admiravelmente o nacionalismo brasileiro de seus filhos. Não vemos, pois, porque há de concluir nosso articulista com estas palavras: "Que autoridade poderá ter um pregador, quando fala em patriotismo, em ordem, em disciplina, e no culto à família num linguajar andrajoso?" Pelo menos a autoridade dos pais imigrantes que souberam fazer de seus filhos bons brasileiros.

E se os conselhos de um pai ou de uma mãe estrangeira puderam calar tão fundo, como não se admitir a mesma eficácia na palavra do sacerdote? Como sobretudo desconfiar desta eficácia a ponto de procurar até excluir do confessionário o sacerdote estrangeiro, sob pretexto de que, falando o mau português, nenhuma autoridade poderá  ter sobre seus penitentes?

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Mas... e a "quinta coluna?" Não admitirá  o “Legionário” nem sequer em tese, que haja sacerdotes traidores, já que o próprio Judas Iscariotes foi traidor? Não seria possível afastar do ministério sagrado os sacerdotes de nações beligerantes, ao menos durante a guerra? Nosso articulista é por demais inteligente e culto para ter sequer insinuado semelhante argumento. Mas há quem já o tenha manejado. Não será portanto supérfluo que o enfrentemos.

Em tese, evidentemente, é possível que um sacerdote seja traidor. Certamente, porém, é nas fileiras do clero que a traição sempre será mais rara. O fato entra pelos olhos. A ação conjunta das autoridades eclesiásticas e civis – aquelas também ciosas no mais alto grau da grandeza do país – bastará plenamente para nos resguardar de qualquer remoto perigo existente neste ponto. É o que lembrou, em documento ainda recente, nosso saudoso Cardeal Dom Leme.

Mas, já que se trata de “quinta coluna”, ouçam nossos leitores uma verdade importante. Em todos os lugares em que ela se organizou, a quinta  coluna não se compôs tanto de estrangeiros, como ainda e sobretudo de nacionais perdidos pela crapulice, pelas ambições e pelo desregramento da vida. Não foi aos pés de sacerdotes estrangeiros, que em nenhum país do mundo a quinta coluna se recrutou, mas entre os que freqüentam maus ambientes, fazem más leituras, e se entregam à impiedade e à impureza. O melhor combate à possibilidade de uma quinta coluna se faria atraindo para junto dos sacerdotes nacionais ou estrangeiros as pessoas que as más diversões e as más leituras corrompem, e não deixando vazios os púlpitos e confessionários em que os sacerdotes estrangeiros pregam o reino de Cristo e abandonando sem pastor e sem assistência espiritual milhares e milhares de almas de que o vício faria ulteriormente suas presas.

É assim que a quinta coluna se combate...

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Estes os fatos. Cumpre agora relembrar os princípios. A Igreja não poder  aceitar jamais a tese de que um sacerdote que não fale convenientemente o idioma nacional não possa exercer com fruto seu ministério. Como vimos, mais do que ninguém deseja ela o clero nacional.

Mais do que ninguém, entretanto, deve ela condenar o exclusivismo nacionalista em matéria de ministério eclesiástico. A fecundidade do ministério sacerdotal é sobrenatural. O sacerdote estrangeiro deve procurar conhecer - na medida de suas forças - nosso idioma. Mas Nosso Senhor, que mandou aos Apóstolos pregarem a todos os povos, consagrou por isto mesmo o princípio de que, sendo universal a Igreja de Deus, nenhuma potência temporal poderia impedir ao ministro do Senhor pregar a boa nova de Jesus Cristo nos países em que o clero local fosse insuficiente ou totalmente inexistente. E, deste princípio, a Santa Igreja jamais abrirá  mão.

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São numerosos aqui os sacerdotes estrangeiros. Renunciando por vezes a vantagens e comodidades de toda ordem, para cá  vieram a fim de conservar e desenvolver no Brasil o dom inestimável da Fé. Nas Casas das Ordens ou Congregações Religiosas que pertencem, começam a florescer desde há vários anos as vocações nacionais que eles estimularam e ampararam com sacrifícios que só Deus conhece. Nas matrizes, santuários, e colégios que dirigem, são o centro da afeição geral. No púlpito pregam a palavra universal e eterna de Jesus Cristo, muitas e muitas vezes em um português perfeito, que não raramente alguns doutores recém-diplomados não conhecem: outras vezes com um acento estrangeiro e com incorreções gramaticais que denunciam a dificuldade e o esforço hercúleo com que se adaptam a uma língua tão diferente da sua. E, entretanto, as igrejas se enchem para os ouvir. Os confessionários em que estão são tão freqüentados como outros quaisquer. Por que? Senão porque nosso povo vê, sabe e sente que eles tem uma autoridade sobrenatural e moral que lhes vem do sacerdócio e de suas virtudes. E que por isto‚ com o máximo proveito que ouve suas palavras e lhes franqueia o segredo de seus corações?

O articulista cujo trabalho analisamos timbra em se afirmar católico. Por isto mesmo suas considerações indicam uma situação singular. É preciso que ao menos entre os filhos da Igreja se torne opinião incontroversa o que em sã doutrina católica é absolutamente incontroversível; o sacerdote estrangeiro‚ um verdadeiro benemérito porque auxilia de modo inestimável o clero nacional. O problema não consiste em o proscrever do púlpito e do confessionário - o que, seja dito de passagem, só e só a Hierarquia caberia  fazer - mas em lhe abrir, para o bem e glória da Igreja e do Brasil, novos campos de ação em nossa pátria e novos tesouros de reconhecimento em nosso coração.