Legionário, N.º 571, 19 de setembro de 1943

A situação do Papa

Sem um grande esforço do bom senso e do espírito de Fé, não é possível encontrar-se uma posição justa e razoável perante o que agora se passa em torno do Soberano Pontífice.

Há os que, alarmados pela susceptibilidade de seu zelo, ou movidos talvez pelo piedoso desejo de excitar os sentimentos filiais da Cristandade a respeito do Santo Padre, dão preferência às hipóteses mais negras, às versões mais terríveis, às possibilidades mais dramáticas. Há, infelizmente, por outro lado, os que, afetados por aquela mortal apatia dos homens tíbios, que fecham os olhos às situações difíceis e procuram absorver-se na áurea tranqüilidade  de suas preocupações imediatas, imitam os apóstolos no Horto das Oliveiras, e dormem sono pesado. Entre uns e outros, há, graças a Deus, os que procuram informar-se com precisão e objetividade, e viver a hora presente como Deus permitiu que ela fosse, nem pior nem melhor, animados sempre pela confiança na Providência que jamais abandonou a Santa Igreja Católica. E que procuram rezar. Porque é a oração, agora mais do que nunca, o grande dever dos católicos.

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O que há de certo a respeito do Papa? Tão grande é a confusão das noticias, que seria difícil dizê-lo. Há hipóteses, entretanto, que por muito improváveis podemos excluir. E uma delas é que o Santo Padre corra risco de vida iminente, que sofra privações ou necessidades físicas, que seja objeto de injúrias diretas, gravames pessoais explícitos.

Dá-nos esta impressão a política tradicional do nazismo. Aos nazistas, não falta ódio para cometerem contra o Sumo Pontífice os piores crimes. Eles, que perseguiram por todas as formas a Santa Igreja na Alemanha procurando expulsar de lá Nosso Senhor Jesus Cristo com uma tenacidade e um radicalismo completo, seriam perfeitamente capazes dos golpes mais atrozes contra o Vigário de Cristo. Mas o ódio nazista é maquiavélico. E ao maquiavelismo totalitário uma atitude de brutalidade pessoal contra o Papa não convém.

Na Alemanha, os nazistas, praticando contra a religião as piores,... [erro tipográfico] jamais atacaram diretamente, pessoalmente, fisicamente os Bispos. Em Berlim, a dois passos da Sede da Gestapo, o Bispo-Conde von Preysing faz do alto do púlpito tremendos sermões anti-nazistas, e sai depois à rua ileso e livre como nos melhores dias da democracia de Weimar. Esta política de aparente tolerância surtiu excelentes resultados para os nazistas! Na Alemanha e no mundo inteiro, estes frangalhos de liberdade que o nazismo deixa maquiavelicamente à Igreja servem à sua propaganda de argumento para demonstrar aos hipernacionalistas, aos tíbios, aos otimistas de todo jaez, que não é o ódio contra a Religião que move os nazistas, mas apenas o desejo de reprimir ''alguns abusos” dos “exagerados''. Um sacerdote católico alemão escreveu, sob o pseudônimo de ''Testis Fidelis'' uma obra monumental, toda feita de documentos irrepreensivelmente autênticos e concludentes, em que esta tática é denunciada com uma clareza irretorquível.

Ora, com o Vaticano se dá a mesma coisa. Convém aos nazistas criar em torno da Santa Sé o mais tremendo ambiente de ''guerra de nervos'', isolá-la do mundo, fazer diante dela as manifestações de força mais espetaculares e brutais, com intuito de a transformar em joguete de sua diplomacia enquanto a ocupação de Roma pelas forças alemãs durar. Mas tudo isto com um respeito absoluto a certas formas exteriores, a certos pormenores materiais, que lhes permitirão afirmar, mesmo depois da ocupação, que ''respeitaram'' na íntegra a soberania pontifícia, demonstrando assim que ''não são inimigos da Igreja''. Depois do que continuarão a martirizar os católicos de sua terra! São assim os nazistas. E, salva a hipótese de um desespero diante de uma derrota patente e inevitável, é assim que eles agirão.

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O ódio pode ser refreado quando espera conter-se um momento, para se saciar mais tarde. De ódio, os nazistas podem não fazer qualquer mal ao Santo Padre, no sentido material da palavra, para melhor poderem depois perseguir a Igreja, aureolados com o título hipócrita de ''protetores'' da Santa Sé. Mas se a derrota lhes aparecer inevitável, a ruína de seu sistema se manifestar iminente e completo, é possível que desabafem seu furor diabólico de modos que nem é bom imaginar.

Entretanto, ainda aí há uma reserva a fazer. No fundo, os chefes nazistas são muito mais ''sancho-panças'' do que ''quixotes''. ''Heróicos'', parlapatões, palradores, apoiam sobre a coragem do exército germânico. Mas os chefes nazistas, propriamente ditos, mal vistos aliás por grande parte do exército, são aventureiros e charlatões vulgares. A iminência de uma derrota lhes sugerirá a idéia para qual certamente muitos deles já se preparam de obter refúgio em nações neutras, contando com a cordura e benevolência dos aliados para escaparem à sanção da justiça internacional. Se fizerem contra o Papa algo de pior, este último e supremo crime, este sacrilégio terrível de tal maneira os maculará diante da consciência internacional, que até a esperança de uma fuga e um fim de vida tranqüilo se lhes dissipará ante os olhos cansados. Ousarão?

E se ousarem, o que poderão? O que são eles para a Providência Divina? Formigas, látegos dos homens, e nada mais. No fundo, quer como ''protetores'' quer como inimigos, eles são insignificantes figurinhas neste assunto em que, mais do que um qualquer outro, Deus tem sido misericordioso para com sua Igreja. Toda a Igreja está rezando para o Papa. A oração da Igreja já uma vez rompeu os grilhões de Pedro. E os romperá ainda hoje, se for perseverante, humilde, ardente, e se forem tais os desígnios de Deus.

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Tudo isto posto, o que podemos pensar da situação da Santa Sé, interpretados os dados que o noticiário nos dá?

De concreto, só temos um dado. É um comunicado alemão oficial, se não me engano, que informa que as tropas nazis penetraram na Praça de São Pedro, na zona outrora franqueada ao policiamento dos soldados italianos e ali instalaram-se vários carros de assalto e tropas em armas. Para quê? Para ''proteger'' o Vaticano. Ora, parece que regra mais elementar da proteção é que seja desejada pela pessoa que dela necessita. O Papa julgou precisar desta proteção? Não. Tanto é que não a pediu. Contra quem precisaria ele ser defendido? Contra a população romana, tão católica? Por quem? Pelos chefes nazistas, tão pagãos? Quem crerá nesta farsa?

E depois, por que carros de assalto? Por que o aparato de tantas forças? Por que entrar na própria praça de São Pedro? Contra o perigo comunista? Terá sido o fascismo tão inoperante, tão inútil, tão estéril, que ao cabo de vinte anos de uma ditadura em que tudo se imolou ao ''duce'' para salvar a Itália do comunismo, este é hoje tão forte, que pode ousar aos maiores crimes, os mais terríveis sacrilégios, sem perceber que se condenaria para todo sempre no espírito dos italianos e criaria uma reação no mundo inteiro? E depois, no momento em que também Stalin procura entabular relações amistosas com os cristãos, com o pérfido intuito de melhor os golpear daqui a alguns anos, no momento em que ele procura tornar-se benquisto diante do mundo inteiro apresentando-se de mãos dadas com o títere por ele posto como chefe da Igreja cismática russa, procurará Stalin atacar tão de frente o Papa?

Tudo se resume neste raciocínio: o Papa não pediu a proteção nazista, pelo que, ou não a julgou necessária, ou a julgou mais nociva do que o próprio perigo que o ameaçaria. Em um e outro caso, esta proteção espetacular imposta pelos nazistas é insolente. Insolente e suspeita. Quanto pequeno país europeu já desapareceu do mapa, estrangulado pelos dedos nazistas, sob o pretexto de uma ''proteção?'' Que o diga a desditosa Eslováquia!

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No caso presente, entretanto, o que mais interessa é precisamente o que o noticiário não diz. Reflitamos.

Junto ao Vaticano, estão acreditados vários embaixadores que representam potências em guerra com a Itália. Entre elas, figura o embaixador do Brasil. Muitos deles, ou todos, residiam ultimamente no próprio Vaticano. Suas famílias estarão certamente ansiosas pelo que lhes sucedeu. Mais ainda. Trezentos milhões de corações católicos sofrem, gemem e se angustiam no mundo pelo Santo Padre. Por que não mandam estes embaixadores dizer uma palavra de tranqüilidade a seus países? Por que não dizem que os ''protetores'' do Vaticano não violaram a independência deste e que o Chefe da Cristandade continua a ter a imprescritível liberdade de se comunicar com todos os embaixadores da terra, sejam ou não amigos do governo de Roma, do qual o Vaticano é inteiramente independente, e não um departamento qualquer? Ao menos, por que não se permite que o Vaticano mande por meio de embaixadores das potências neutras um comunicado ao mundo, sobre a integridade do território pontifício, a liberdade dos embaixadores acreditados junto ao Papa, e a segurança do Pontífice e de sua Corte?

Se daí não se deduzir que o Vaticano não é livre, francamente não sabemos que argumentos, a mais, haveremos de invocar.

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Falamos em embaixadores das potências neutras. Lembremo-nos dos da Espanha e de Portugal, tão católicas; do da Suíça, república neutra por excelência, que protege sempre a causa do Direito Internacional, e tem tantos filhos servindo de Guardas ao Papa, e que portanto estão agora ameaçados; do da Argentina, cujo atual governo é tão ''insuspeito'' quanto ao Reich. Estes embaixadores tentaram, como lhes cumpria, uma ''démarche'' coletiva junto ao Papa, para indagar de sua segurança, de sua independência, da integridade de seu território, e depois informar disto o mundo? Por que não? Evidentemente, porque a coação da liberdade do Vaticano é tal que os seus ''protetores'' não ousam mostrar aos neutros a realidade dos fatos, ou impedem que até os próprios neutros comuniquem ao mundo esta realidade.

Em uma ou outra hipótese, a própria confusão desfaz a confusão ao menos em um ponto: o Papa não está livre.

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Rezemos, pois. Em tempos normais para o Cristianismo, não bastaria rezar. Os católicos deveriam, como em 1870, estar formando no mundo inteiro batalhões para defender o Pontífice. Mas já que tal agora se faz impossível, rezemos dobradamente, oferecendo a Deus, pela exaltação da Santa Igreja, as preces ininterruptas de velhos e crianças, doutos e incultos, religiosos e leigos, numa ardente cruzada de orações pelo Vigário de Cristo.

Ofereçamos a Deus nossas preces. Mas as preces não bastam: mortifiquemo-nos. E entre estas mortificações ofereçamos a Deus o sacrifício amargo de nossa impotência para auxiliar o Pontífice em qualquer outro terreno. Só temos preces e mortificações para oferecer? Temos então o principal. E, com este principal, poderemos muito pela causa de Deus.

Apostos, pois, aos pés do Santíssimo Sacramento e de Nossa Senhora!