Legionário, N.º 589, 21 de novembro de 1943

"Com quem está o Papa?

Em artigo anterior, havíamos acentuado as várias contradições e perfídias do deão protestante de Canterbury contra a política do Vaticano. Poderíamos, naquela tecla, ter ido muito mais longe. Mas o espaço de vários artigos não seria suficiente para apontar  e desemaranhar os muitos sofismas do "deão". As amostras que demos a nossos leitores são suficientes. Vamos, pois, encerrar o assunto, analisando propriamente o fundo do artigo do famoso "deão".

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A pergunta "com quem está o Papa", formulada no sentido especial em que a fez o "deão", pressupõe a idéia de que o Papa deve estar necessariamente com alguém. E, precisamente porque considera indiscutível este pressuposto, o deão se entrega à mais afanosa investigação do assunto, acabando por confessar que nada entendeu. E não espanta. Para compreender a atitude do Vaticano na presente emergência, seria necessário conhecer e admitir toda uma série de princípios que o "deão" ou nega, ou ignora. Examinemos estes princípios.

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Antes de perguntar "com quem está o Papa", vejamos "quem é o Papa". O Papa é o Vigário de Nosso Senhor Jesus Cristo, mestre infalível da Verdade, dispensador de tesouros da Redenção, detentor das chaves que liga e que desligam; das chaves, portanto, que governam o mundo.

Mestre de uma Verdade imutável; soberano de um reino espiritual indestrutível; supremo hierarca de todo o Universo. O Santo Padre representa tudo quanto é divino, supra-terreno, imutável, eterno. Enquanto tudo muda, ele permanece estável. Enquanto tudo é contingente, só ele e as coisas que ele representa são inalteráveis. A respeito da Cruz, formou-se este axioma: "stat Crux dum volvitur orbis". O mesmo se poderia dizer do Pontífice Romano: “stat Petrus, dum volvitur orbis - só Pedro continua invariavelmente de pé, enquanto todo o mundo se agita e se transforma”.

Ora, se o Papa representa a Verdade essencial e imutável; se ele representa a eternidade, a verdadeira pergunta não é: "com quem está o Papa". Esta pergunta poderia aplicar-se para a análise da situação política de alguma igrejola nascida ontem, da impiedade e da luxúria de algum Henrique VIII - a Igreja do deão de Canterbury mais precisamente. É claro que, tripulante de nau tão recente e tão fraca, o deão pergunte que correntes a levam, e para onde a levam as correntes. O Papa é o rochedo imutável. Ele não pergunta que correntes seguirá.

Tratando-se do Soberano Pontífice, a pergunta só pode ser esta: "quem está com o Papa?" Foi porque não compreendeu esta verdade que o deão acusou de pérfida a diplomacia do Vaticano. Pérfida, porque ela se inspira em princípios que ele não conhece; desses princípios deduz uma sobriedade de gestos e de atitudes que ele não compreende; e arrogante, porque continuará a agir do mesmo modo, por mais que com isto se desagrade o deão.

E o Papa está só. Vê mais alto, mais fundo, mais limpo. Não tem aliados nem amigos, tem só adversários mais encarniçados ou menos. Por isto, esperando o curso dos acontecimentos tranqüilamente, declara que não está com ninguém. Dia virá em que as insígnias nazistas, fascistas, comunistas, estarão atirados ao mesmo pó em que jazem os outros adversários que tem investido contra a Igreja. Neste dia, o deão compreenderia com quem está o Papa que não está nem com Hitler nem Stalin. O Papa está com Jesus Cristo, com a indefectibilidade, com a eternidade. E é o Papa que vai vencer.

Hei-nos, pois, chegados ao nó da questão. Quem está com o Papa?

Do nazismo e do comunismo, nem é bom falar. Ambos representam erros vizinhos, entre si, irredutivelmente opostos à Igreja Católica. Vencesse só a Rússia, ou vencesse só a Alemanha, o grande derrotado (na medida em que se derrota o indestrutível) seria o Santo Padre. Com um mundo inteiramente obediente a Stalin, ou inteiramente obediente a Hitler, Nosso Senhor Jesus Cristo seria de qualquer forma proscrito da sociedade contemporânea.

O deão, comunista encoberto, não vê ou finge não ver isto. Ele dá à questão comunismo versus nazismo um alcance e uma importância que para o Papa, que representa Jesus Cristo, ela está longe de ter. É como a luta de Herodes versus Pilatos. Nesta luta com quem estava o Salvador? Pergunta ridícula. O Salvador não estava com ninguém. Nem ele era um chefete político a fazer liga com Pilatos contra Herodes ou com Herodes contra Pilatos. Herodes ou Pilatos, pouco importava ao Salvador. Ambos encarnavam um espírito oposto ao dEle. A vitória de qualquer dos dois seria antes de tudo a derrota (....) dEle. E tanto é que um e outro se reconciliaram contra Ele.

Vemos como o deão erra, pensando que o grande problema da Igreja em nossos dias consiste em optar contra Hitler ou contra Stalin. Ela quer mais: pela oração das Virgens e dos Monges que consagra ao Senhor; pelo labor dos missionários; pela evangelização de seus ministros; pelo apostolado da Ação Católica, o que o Papa pretende é construir um mundo que represente o contrário do que quer Hitler ou Stalin.

O Papa trairia sua missão se optasse por um ou por outro. Sua atitude só poderia ser esta: "nem um, nem outro".

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Mas nem Hitler nem Stalin estão sós. A vitória de ambos significaria a vitória de uma série de aliados mais "moderados". Com o comunismo, venceria o socialismo de todos os matizes, até o burguezismo pacato e familiar. Com o nazismo, venceria o fascismo, venceria o falangismo, venceria o "salazarismo". Não indaguemos das intenções: o certo é que nas mãos de muitos desses partidos há água benta... Assim, pelo menos se deve entender que a vitória de qualquer dos dois grupos beligerantes não representaria desde logo a vitória incontrastável, radical, completa, nem do comunismo nem do nazismo. A verdadeira opção não seria entre dois extremos, mas entre dois blocos dotados de extremos péssimos. Analisemos este novo aspecto do problema.

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Convenhamos, antes de tudo, em que essas correntes intermediárias correm para os respectivos extremos como as águas correm para o mar. Quem duvida de que o socialismo venha dar em última análise em comunismo? Quem duvida de que o burguezismo gera necessariamente o socialismo? Por outro lado, quem não percebe que, num mundo dirigido pelos satélites de Hitler, este seria para os "duces" de todas as latitudes o que Luiz XIV foi para os reis de seu tempo: o modelo completo, total, insuperável, o padrão segundo o qual todos os outros se deveriam configurar para ficar perfeitos?

Assim, essa vitória das correntes intermédias - como todas as vitórias das correntes intermédias - dará necessariamente em vitória dos extremos. E acabamos não saindo dos termos iniciais do problema: entre quem escolher, Hitler ou Stalin?

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Prossigamos. Dado que estamos entre dois extremos péssimos, é evidente que se deve responder: "nem um, nem outro". O problema que nos resta examinar é apenas este:  dos dois possíveis vencedores, qual o que mais facilmente se derrubará? É a vitória deste, que se deve desejar. Mas isto não é estar "com" este ou "com" aquele. É uma questão de se saber a quem o Papa é mais contrário, se a este, se àquele.

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Positivamente, se compararmos o comunismo ou o nazismo, acharemos que o primeiro - diabólico sob todos os sentidos, tanto quanto o nazismo - é entretanto menos nocivo. Ele é todo negativo e atrai menos que um edifício doutrinário positivo. É - ou ao menos tem procurado ser até há pouco - franco e declaradamente hostil. Sejam quais forem suas forças, contra ele estaremos todos unidos.

Com o nazismo e seus sucedâneos, não. Combatem-nos à socapa. Molham em água benta as mãos com que fiam as cordas em que seremos enforcados. Procuram apodrecer por dentro nossas fileiras, desuni-las, desorganizá-las antes de nos atacar. Com admirável habilidade, sabem encontrar o patrioteiro ingênuo, o sonhador inexperiente, o ambicioso vulgar que para eles  abrirão "alas", correntes, etc., dentro de nossas próprias fileiras. Só nos atacarão, quando estivermos inteiramente anestesiados. E saberão fazer-nos crer que o anestésico que procuram injetar em nossas veias não é um entorpecente mas um verdadeiro remédio. Quem o pior? O menos perigoso. Velho Stalin! Velho demônio de doutrina evidentemente repugnante, de reputação clamorosamente péssima, diante de cujo nome os homens limpos se indignam, as pessoas piedosas se persignam, e os moços católicos sentem comichão nas mãos [...]. Oh, velho demônio desmascarado e horripilante, como és menos temível do que o politiqueiro de estilo Von Papen, que mercadeja sua Fé junto aos Césares do dia, e recebe a ingrata incumbência de nos vencer com o ósculo de Judas.

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Tanto implica em afirmar que, consideradas as coisas pelo Vaticano de um ponto de vista inteiramente alheio às contendas nacionais, o mal menor para ele está ainda na vitória do bloco anti-totalitário. É o que o Papa de todo coração deseja.

Entretanto, o deão de nada disto entende. Ele não quer um mal menor. Ele aplaude... em Stalin, um bem. Ele se transforma em defensor do comunismo. Ele atola no lodaçal do comunismo os rebanhos que Henrique VIII cindiu da verdadeira Igreja. Ele já optou. Ele quer o bolchevismo. Ele trai miseravelmente o cristianismo. Bate palmas, está contente, tem aliados, tem amigos, tem poderosos auxiliares.