Legionário, N.º 595, 1º de janeiro de 1944

365 DIAS EM REVISTA

Quando as últimas badaladas da meia-noite encerraram o ano de 1943, o LEGIONÁRIO com o coração a transbordar de gratidão, e mal contendo um suspiro de alívio, dava por encerrado, aos pés de Deus, um dos anos mais tormentosos e mais fecundos de sua já não tão curta existência.

Um jornal é sempre uma grande família, família espiritual composta de quantos concorrem para formar seu pensamento, definir sua orientação, divulgar suas doutrinas, e preparar suas sucessivas edições. Nesta grande família, como no campo de que nos fala o Evangelho, não falta o joio. Ao lado do amigo fervoroso, do cooperador decidido e franco das boas e das más horas, há o leitor oportunista, o que aplaude por mera atitude, o que não ousa aplaudir nem criticar, o que critica e não quer aplaudir. Para o jornalista católico, são todos membros da família espiritual que é o jornal. Todos são almas que Deus Nosso Senhor quis que informássemos, esclarecessemos, visitássemos. Bons irmãos, maus irmãos, em qualquer hipótese são irmãos. Seus golpes podem ferir mais: mas quanto mais nos fazem sangrar, tanto mais entusiasticamente por eles oferecemos nossos sofrimentos. Nesta hora de comoção e de expectativa, que é o raiar de um ano novo, têm todos um lugar em nossas preces, em nosso afeto, em nosso reconhecimento ou em nosso perdão. E, assim, diante de todos, como diante de irmãos, o LEGIONÁRIO fará o balancete espiritual e moral do ano que se findou.

O resultado desse balancete, como dissemos, não poderia deixar de ser este: um ato de comovida gratidão à Providência, e um suspiro de alívio.

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Vamos, antes de tudo, aos grandes interesses da Santa Igreja. O católico deve ter uma visão universal. Interessa-o sobretudo o que pode afetar a glória de Deus. Os grandes problemas de que decorre a estruturação do futuro, de que pende a tremenda questão - será uma genuína Cristandade, um reino de Cristo, o mundo de amanhã? ou será o reino do demônio?  -  esses grandes problemas se decidem na confusão dos campos de batalha e no mistério das chancelarias. Ciosos, antes de tudo e acima de tudo, da salvação das almas, é para eles que convergiu de preferência, em 1943, nossa atenção.

Não faltaram os conselheiros que nos disseram que nos deveríamos ocupar exclusiva ou quase exclusivamente com questões religiosas "nossas", "brasileiras", em lugar de tratar de temas estrangeiros. O que nos interessa não é primordialmente o que nos diz respeito a "nós": não pertencemos à cidade do demônio, edificada sobre o amor de si mesmo no dizer de Santo Agostinho. Tratamos antes de tudo das questões que são  "de Jesus". Essas é que antes de tudo e acima de tudo são "nossas". Porque todos os católicos são de Jesus. Assim, a política internacional continuou a preocupar vivamente o LEGIONÁRIO em 1943.

Fiéis a nossa linha de conduta, continuamos a pugnar durante todo o ano findo, pela causa das democracias. Não que víssemos no regime democrático um bem em si, mas um mal muito menor do que o totalitarismo nazi-fascista que por mil modos se queria alastrar pelo mundo. Já muito antes desta guerra, havíamos assumido esta atitude inspirada essencialmente nos interesses da Santa Igreja. A estas razões, outras se vieram somar. Em 1943, o Brasil já estava alinhado entre as nações aliadas. Mais uma vez, os interesses da Igreja e da Pátria se confundiam no roteiros de nossa História. Inútil será dizer o que de satisfação este fato representou para nós.

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Neste terreno da política internacional, o ano de 1943 deu lugar a transformações consideráveis. Primeiramente, com uma nitidez, já agora irretorquível, o equilíbrio das forças se deslocou para as potências aliadas. Hitler, abandonado pelo povo italiano que sacudiu o jugo fascista, luta só. Não se sabe até quando durará sua louca resistência. Maior ou menor, será todavia inútil, e constituirá a última loucura de sua doida e sanguinária trajetória na política mundial. O curso dos acontecimentos projetou uma luz impiedosa sobre o regime fascista, seus homens e suas realizações. Redundou em uma cruel desilusão, e os últimos estertores da resistência mussoliniana estão a demonstrar com clareza meridiana, que o duce nunca passou de um dócil e espetacular satélite do fuhrer.

Ao mesmo tempo, nos demais países da Europa ocupada, os Quislings de todos os feitios caíram mais baixo do que nunca. Suas ligações com Berlim ficaram demonstradas à evidência. Mussert, Degrelle, Seys-Inquart, Hacha, ocupam todos na execração pública o mesmo lugar que Goebbels, Goering, von Papen, Himmler e os demais satélites de Hitler. Aguardam com terror a justiça dos homens se antes não os colher a justiça de Deus.

Pétain continua. Mas De Gaulle cresce a cada momento, e seu movimento, já agora triunfante, bem mostra que a opinião francesa não aceitará as desculpas que se articularem em favor do velho Marechal.

Isto no exterior. No Brasil, a opinião pública parece ter sofrido uma radical transformação nos setores outrora simpáticos ao totalitarismo. Todos "já eram", "sempre quiseram", "nunca duvidaram". A ouvi-los, se diria que urdiram vários complots para matar Hitler, e só não atiraram uma bomba em Mussolini porque este não veio ao Brasil.

O término do poderio totalitário, o desmascaramento completo das correntes totalitárias da Europa, tudo enfim confirma as previsões, a orientação, a política do LEGIONÁRIO. Um triunfo indiscutível, diante do qual alguns silenciam, outros batem palma, mas que ninguém ousaria negar.

Onde estão agora os "conselheiros" armados de uma "prudência" e de uma "caridade" evangélicas, que por mil meios, mil canais, mil artifícios, nos censuravam, nos guerreavam, e chegavam a dizer que "faltávamos com a caridade para com Hitler". Ouçamo-los agora; muitos deles se permitem contra a hidra moribunda um palavrório que o LEGIONÁRIO jamais empregou. Oh Phedro, porque não estais aqui para nos contar as proezas do asno com a fera agonizante?

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Depois de longa luta, um desafogo neste terreno. Mas o LEGIONÁRIO nasceu para lutar. E, por isto, ele já desensarilhou armas, e já pensa nos problemas do dia de amanhã.

Estes se apresentam terríveis. Antes de tudo, a influência soviética, expressa no ascendente cada vez maior da URSS na política internacional. Depois, os manejos que a "extinta" Internacional vai promovendo um pouco por toda parte do mundo. Finalmente, a tendência para o socialismo de Estado, acentuadíssima nos discursos, nos planos, nos programas de grande número de políticos britânicos e americanos. Os que queriam pactuar com o nazismo, o partido dos pseudo-caridosos e dos pseudo-prudentes, os que nos abominavam porque combatíamos as falsas direitas, já agora estão começando a nos fazer nova carranca. Eles abominavam o comunismo, temiam o socialismo, injuriavam as democracias. Contra estes adversários não tinham a menor caridade. Hoje, as coisas mudaram. Ei-los que, cheios de "caridade", de "prudência", de toda sorte de ungüentos ou de ranços deste estilo, procuram encontrar com o moloch do dia o "terreno comum" entre a verdade e o erro, que é bem o lusco-fusco indispensável para seus olhos de míopes, para seu temperamento de inertes. Por isto, detestam o LEGIONÁRIO. Contra este, nenhuma prudência, nenhuma caridade, nenhuma moderação.

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Do ponto de vista da política interna, o dever de todos os verdadeiros patriotas consistiu em 1943, e constituirá até o final, em facilitar de todos os modos o aprestamento dos recursos que devem ser mobilizados contra os inimigos da Igreja e da Pátria.

O LEGIONÁRIO cooperou eficientemente para esta finalidade, apontando à opinião católica perigosos germes de desunião que se procuraram introduzir entre os brasileiros, precisamente nesta quadra critica.

Primeiramente, a campanha do divórcio ensaiou nova ofensiva. Com a resposta do Sr. Ministro da Justiça, que adiou a solução do problema para depois da guerra, a questão entrou em estado de dormiência. O LEGIONÁRIO mostrou de todos os modos, quer o insuportável atentado contra o Brasil católico, que se contém no bojo da campanha divorcista, quer a inteira inoportunidade do assunto que atiraria brasileiros contra brasileiros, em irremediável e perpétuo conflito de opiniões.

Em segundo lugar, uma campanha não menos detestável, contra o clero estrangeiro. Preferimos, neste ponto, restringir nossas vistas, e fechar os olhos a algumas das figuras que foram arrastadas a esta campanha, não recuando, nem diante das calúnias vagas e por isto mesmo incapazes de ser demonstradas; nem diante de mentiras estampadas nas primeiras páginas de certa imprensa com o intuito evidente de desprestigiar o Clero, essa campanha magoou profundamente a alma sensível do Brasil católico e distraiu os espíritos de seu objetivo essencial no momento presente: a guerra. O LEGIONÁRIO esteve firme na estacada, contra esses manejos de nossos adversários.

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1943 foi um ano de luto para a Arquidiocese, que chorou com comovida saudade o seu falecido Arcebispo. Não é preciso dizer toda a intensidade da mágoa pública, que fielmente se refletiu nos artigos, reportagens e farto noticiário que o LEGIONÁRIO publicou. Até hoje, quando se abre a cripta da Catedral, grupos de fiéis se postam em oração junto a sepultura de seu finado Pastor. Rememora-se o passado, e não o presente. O luto de São Paulo por Dom José Gaspar não é passado; é presente, e não precisa ser rememorado.

Com ele, ao lado dele, pranteados com as mesmas lágrimas e unidos na saudade do povo como foram unidos na vida e na morte, lembramo-nos de Monsenhor Alberto Pequeno, e do Pe. Nelson Norberto de Souza Vieira. Um o mestre, outro o discípulo de Dom José. Deus os tenha em Sua glória.

São Paulo católico também tomou comovido conhecimento de outra morte, a do Revmo. Pe. Irineu Cursino de Moura. E, dias depois, a do Revmo. Pe. Eustachio van Lieshout. Foram duas figuras que fizeram vibrar intensamente a alma católica de São Paulo. Morreram pouco antes e pouco depois de Dom José. Continuam a viver nas saudades do povo. Também foi muito sentida a morte do Revmo. Pe. Lindolfo Esteves ocorrida em 1943. E este rápido registro funerário não seria completo se não mencionássemos a tristeza profunda que a morte de Manuel Lubambo causou em todo o país.

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Ao lado de tantas tristezas, uma alegria: o preenchimento da vaga deixada pelo grande Cardeal Dom Sebastião Leme. A alta reputação de virtude, de operosidade, de capacidade de governo do Exmo. Sr. Dom Jaime de Barros Câmara encheu de contentamento a quantos se inteiraram de sua nomeação. Seus atos no Rio de Janeiro, prudentes, firmes, serenos, inspirados em ardente espírito de Fé, tem causado geral e respeitosa satisfação. Sua bela pastoral, publicada pelo LEGIONÁRIO em edição extraordinária, causou nos espíritos funda impressão.

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O LEGIONÁRIO travou este ano mais uma grande luta, coroada também ela por dulcíssimas consolações. Foi a publicação do livro "Em Defesa da Ação Católica". Como seria de prever, aquela obra provocou imenso descontentamento naqueles cujas temerárias doutrinas refutou. Sua publicação correspondia a um imperativo de momento. Era preciso, absolutamente preciso, abrir os olhos de muitos incautos para a campanha sábia, gradual, artificiosa, empreendida de norte a sul do país para a disseminação de doutrinas errôneas. Era preciso que um brado de alarma se erguesse, e que se operasse o esforço convergente de quantos discerniam o mal, para o debelar de vez. Grito de alarma, toque de reunir, o livro "Em defesa da Ação Católica", distinguido por um antelóquio do Exmo. Sr. Núncio Apostólico recebeu os mais calorosos elogios, quer de muitos elementos de destaque do Episcopado Nacional, quer do Clero e laicato católicos. Publicamos a maior parte das cartas de aplausos que recebemos neste sentido. Todas elas atestam uma preocupação ardente pelos males que iam crescendo, e uma aprovação franca e irrestrita da doutrina que tivemos a ventura de sustentar.

Mais recentemente, publicamos, com inteira solidariedade desta folha, os brilhantes artigos do R. P. Arlindo Vieira sobre a obra de Jacques Maritain intitulada: "Les Droits de l'Homme". Mais outra campanha, seguida das respectivas incompreensões - sempre inevitáveis aliás - e de grande proveito para as almas.

Entre os múltiplos índices da confusão em que vivemos poderia mencionar-se um comentário feito sobre nossas publicações referentes à obra de Maritain: "o assunto seria da alçada exclusiva de Sacerdotes, pelo que sobre ele os leigos se deveriam calar". Maritain é um leigo. São leigos quase todos os que alimentam entre nós uma corrente inspirada em suas idéias. Por que motivo os leigos não podem então manifestar-se livremente sobre o assunto? A liberdade dos leigos só existe para aplaudir Maritain? Ou nem para isto? Neste caso, que é Maritain: um escritor leigo especializado em escrever para Padres?

E, no meio de toda esta luta, como raio de luz cristalino, a brotar do céu sobre a confusão do momento presente, a magnífica Encíclica Mystici Corporis Christi, que, confirmando plenamente a existência de erros graves a respeito de Liturgia, denunciados pelo LEGIONÁRIO, elucidou definitivamente os fiéis sobre a complexa e admirável doutrina do Corpo Místico, de que tanto e tanto abuso se fez.

Foi esta, talvez, a maior graça do ano de 1943.

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E agora, o indispensável ato de contrição. Diz a Sagrada Liturgia que Deus, coroando nossos méritos, coroa seus próprios dons. Vem de Deus o bem que fazemos. De nós, o mal.

A lógica, a coerência, o amor as atitudes definidas, leva-nos a assumir mais uma vez, de público, aqui, toda a responsabilidade por quanto publicamos ou escrevemos. Em nada encontramos erro. Poderia ter sido melhor? Certamente. O homem está sempre aquém das graças de Deus.

É com os olhos postos nas mãos dadivosas e virginais de Maria, Medianeira de todas as graças, que transpusemos o limiar de 1944. O que nos reserva durante ele a Divina Providência? Ignoramo-lo. Mas que seja um ano de serviço mais ardente, ortodoxia ainda mais plena e pujante, abnegação ainda maior. Em uma palavra: que tudo suceda para a maior glória de Deus.