Legionário, N.º 600, 6 de fevereiro de 1944

“Os Direitos do Homem” e o LEGIONÁRIO

Publicamos hoje, o texto integral da carta que o Sr. Jacques Maritain enviou a "O Diário", na qual responde ao artigo que o Revmo. Sr. Pe. Arlindo Vieira, S. J., escreveu para o "LEGIONÁRIO" acerca do livro Les Droits de l’Homme, de autoria daquele filósofo francês.

Não é hábito dessa Folha, publicar artigos que divergem de sua orientação: o "LEGIONÁRIO" não é uma tribuna livre e só se sente no direito de transmitir a seus leitores o que considera a doutrina verdadeira.

Entretanto, a discussão acerca do agora já famoso livro do Sr. Jacques Maritain assumiu um caráter tão absolutamente inédito que não seria possível continuarmos a tratar do assunto sem fornecer a nossos leitores o próprio texto integral da resposta do Sr. Jacques Maritain ao Revmo. Pe. Arlindo Vieira.

A esta altura, convém uma mise au point de toda a questão. Em 31 de outubro do ano p.p., o Revmo. Pe. Arlindo Vieira publicou um artigo nesta Folha, em que fazia o confronto de alguns textos do livro Les Droits de l´Homme do Sr. Jacques Maritain, com outros textos, extraídos estes de documentos pontifícios. Do confronto, concluiu S. Revma. por uma incompatibilidade entre a doutrina exposta nesse livro de Maritain, e a doutrina dos Sumos Pontífices.

O tema do artigo estava, assim, rigorosamente circunscrito: não versava sobre toda a obra de Jacques Maritain, e muito menos sobre sua pessoa, mas exclusivamente sobre um de seus livros. Pode-se ler todo o artigo do Revmo. Pe. Arlindo Vieira: não se encontrará um só trecho em que o autor generalize suas apreciações até o ponto de afirmar que também em outras obras Maritain sustentou o mesmo pensamento. Àqueles a quem a argumentação do Revmo. Pe. Arlindo Vieira não convencesse incumbia, pois, situar-se rigorosamente no mesmo terreno, e demonstrar:

a) que o Revmo. Pe. Arlindo Vieira citou mal os trechos do livro Les Droits de l´Homme, do Sr. Jacques Maritain;

b) ou que S. Revma. citou mal os textos de Encíclicas e outros documentos pontifícios que inseriu em seu artigo;

c) ou, finalmente, que a oposição entre os textos do Sr. Jacques Maritain e os dos documentos pontifícios era irreal.

Como se vê, toda a discussão deveria consistir em uma reconstituição de textos, ou em uma exegese de textos. De qualquer forma, tratando-se da apreciação de um pensamento fixado em um livro, tudo quanto não fosse a apreciação dos textos constituiria digressão inteiramente incapaz de refutar com segurança o trabalho do Revmo. Sr. Pe. Arlindo Vieira.

Infelizmente, todos os sentimentos podem despertar paixão, e nem mesmo as inclinações mais explicáveis e mais nobres escapam a esta regra. Como já publicamos, somos os primeiros a reconhecer que na obra do Sr. Jacques Maritain se encontra muito de admirável, ao lado de aspectos que não nos agradam e que em tempos já tivemos ocasião de apontar. É, pois, explicável que a simpatia, mais ainda, a gratidão e a fervorosa admiração de muitos católicos tenha de tal maneira radicado em seu afeto a figura do Sr. Jacques Maritain, que se tornassem propensos a ver em cada discrepância de algum escritor ou pensador uma injúria, em cada argumentação contrária às teses do Sr. Jacques Maritain uma irreverência que toca às raias do insulto.

*   *   *

A paixão tem destas coisas. Ainda agora, quando um dos órgãos católicos de maior difusão em Minas estampou a carta-resposta do Sr. Jacques Maritain, não tivemos a surpresa de notar no artigo de apresentação esta constatação enternecida e curiosa: “um homem como ele (o Sr. Maritain) se preocupar com uma pobre controvérsia entre canhestros habitantes do sertão do Brasil”? O Brasil é hoje, por um jogo inelutável e automático de circunstâncias, uma potência que já atua de modo muito sensível no cenário internacional. Na presente guerra, todas as chancelarias do Antigo e do Novo Mundo se interessaram ativamente pela fixação de nossa atitude. Não nos acharam "canhestros", nem o Foreing Office, nem a Wilhelmstrasse, nem a Casa Branca, nem o Quay d'Orsay. Pelo contrário, viram, sentiram, pensaram em toda a sua extensão a importância que o Brasil já possui no mundo de hoje. E essa importância cresce de minuto a minuto aos olhos de todos os povos. Aos olhos de todos os povos, sim, e o Sr. Jacques Maritain tem suficiente penetração e talento para o perceber com clareza. Ao preparar para o "Diário" a longa carta-resposta que hoje publicamos, o Sr. Jacques Maritain, filósofo mas também homem de ação, que quer pesar na orientação do mundo contemporâneo, pretendia consolidar a influência de seu pensamento em um dos países de cuja orientação ideológica depende indiscutivelmente o curso da história das idéias em todo o futuro do mundo. E o Sr. Jacques Maritain terá ainda visto mais alto e mais longe. De ciência certa, sabe esse escritor toda a influência que o Brasil tem particularmente no futuro da Cristandade. Já somos hoje um dos maiores blocos católicos do mundo. Quantos viajantes nos chegam do Vaticano são acordes em afirmar que as vistas da Santa Sé se voltam para nós com atenção cada vez maior. E disto temos tido no Pontificado de Pio XII manifestações muito especiais e não muito distantes... Filósofo que se preocupa especialmente em orientar a opinião católica, o Sr. Jacques Maritain agiu mui sabiamente procurando explicar-se perante o público brasileiro. E isto tanto mais quanto, por pouco que se tenha informado das coisas do Brasil - e não precisou informar-se de tal porque já sabia de tudo isto - teria podido notar que não eram canhestros os intelectuais que contendiam em torno das idéias expressas em seu livro Les Droits de l'Homme, e que também não era no sertão do Brasil, nas fímbrias da civilização em nosso território, que se discutia o problema. Os contendores eram - para mencionar os mais ilustres - de um lado o Revmo. Sr. Pe. Arlindo Vieira, membro dos mais conspícuos da Companhia de Jesus, sacerdote brasileiro de vasta cultura, jornalista brilhante, educador de reconhecidos e relevantes méritos, orador sacro distinto; do outro lado o Revmo. Sr. Pe. Frei Sebastião Tauzin, professor na Universidade Católica do Rio de Janeiro, também distinto orador sacro e jornalista, que traz o hábito ínclito e venerável dos filhos de São Domingos, e o Sr. Alceu Amoroso Lima, Tristão de Atayde, membro da Academia Brasileira de Letras, professor da Universidade Católica do Rio de Janeiro, comendador da Santa Sé. O teatro de discussão: um órgão católico de São Paulo, outro de Minas. Serão tão "canhestros", tão do "sertão do Brasil" as figuras que participaram da discussão, que a acompanharam, que por ela se interessaram? Insistimos longamente sobre este aspecto do problema, especialmente para demonstrar o que pode o entusiasmo, o afeto, quando chega a se transformar em paixão!

Ora, foi precisamente por esta paixão que, a nosso ver, toda a discussão em torno do assunto escapou completamente ao terreno em que se deveria ter conservado obstinadamente se quisessem os entusiastas totais de Maritain chegar a uma refutação triunfal das asserções do Revmo. Sr. Pe. Arlindo Vieira. Quando seria necessário tomar os textos, e citar no mesmo livro os outros textos que os completavam, esclareciam, que arrasassem, aniquilassem, destruíssem a ponto de não deixar pedra sobre pedra, linha sobre linha a argumentação do Revmo. Sr. Pe. Arlindo Vieira, a defesa tomou rumo inesperado. Já não se tratava de mostrar, ou que os trechos eram incompletos, ou falsos, ou mal interpretados no artigo do Revmo. Sr. Pe. Arlindo Vieira. Passando de um fato concreto e preciso - um artigo contra um livro - para uma generalização infundada e totalmente gratuita - uma refutação que se dirigiria, não contra um livro de Maritain, mas uma campanha contra toda a sua obra e, mais, contra a sua própria pessoa - os artigos em prol de Maritain feriram de preferência as seguintes teclas:

1 - Maritain não errou porque não poderia ter errado, porque é um grande filósofo, um profundo pensador;

2 - Em outros livros de Maritain ele disse o contrário do que lhe atribuiu o Revmo. Pe. Arlindo Vieira, pelo que em Les Droits de l´Homme não pode ter dito o que lhe foi atribuído;

3 - Os textos citados pelo Revmo. Sr. Pe. Arlindo Vieira, como em geral todos os textos de Maritain devem ser lidos com esprit de finesse, e portanto não podem ser interpretados em seu sentido literal.

Em último lugar, desacompanhada infelizmente de qualquer trabalho objetivo de recomposição ou de hermenêutica, vogando gratuita em meio de outras afirmações, vinha a asserção essencial, a única que importava demonstrar, e precisamente aquela em abono da qual nada se citou de concreto, de irretorquível: os textos produzidos eram incompletos ou unilaterais. Falou-se de tudo, ficou de lado o essencial.

Ora, os argumentos aduzidos de nada adiantaram. O primeiro supunha que todo grande homem fosse infalível. O segundo não era menos singular. Um livro é um livro, e um pensador de fibra não precisa de uma biblioteca inteira para se fazer compreender. O livro Les Droits de l´Hommme, se contém expressões capazes de induzir em erro um leitor - e isto ainda que involuntariamente - é um livro censurável, porque ninguém pode deixar de reconhecer que um leitor que leia só esse livro ficará mal orientado, o que é suficiente para tornar o livro mau. O terceiro argumento, do esprit de finesse é ainda mais curioso. Não vamos aqui terçar armas em torno da clássica distinção entre esprit geometrique e esprit de finesse, feita por Pascal. O que é indiscutível é que quando um filósofo escolástico fala, ele deve servir-se de termos adequados para remover qualquer dúvida, dizendo sempre clara e precisamente o que pensa. Se um filósofo não procede assim, não possui o bom método escolástico. Ora, Maritain não deve ser assim, e temos o direito, mais ainda, o dever de o interpretar tomando cada uma de suas palavras em seu sentido próprio.

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Publicamos as anteriores respostas do Revmo. Sr. Pe. Arlindo Vieira aos comentários que seu artigo suscitou em nossa imprensa. Nossos leitores tiveram ocasião de apreciar o brilho, a serenidade, a segurança com que defendeu sua posição. Hoje, publicamos mais um de seus esplêndidos e seguríssimos trabalhos. Mas fazemos mais. Damos o próprio texto da carta do Sr. Maritain, para que a ninguém fique dúvida sobre o verdadeiro alcance das palavras do filósofo em questão. À margem deste texto publicamos alguns comentários nossos. Textos, textos e mais textos, só e unicamente textos e hermenêutica de textos deveriam ser a base, a raiz, o fundamento de toda essa discussão. A tradução da carta do Sr. Maritain é extraída do "O Diário" de Belo Horizonte.

 

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- Maritain

Sr. Redator-chefe,

Acabo de ler a documentação que o Sr. teve a gentileza de enviar-me e lhe agradeço mui vivamente esse precioso conjunto de testemunhos que o Sr. reuniu em “O Diário” como resposta aos ataques de que fui alvo. Esses testemunhos são ao mesmo tempo tão honrosos para o meu pensamento e tão caros ao meu coração que quase me vejo tentado a agradecer também àqueles que os provocaram com seus ataques injustos. Sinto-me feliz por exprimir minha gratidão a seu excelente jornal e a seu diretor, bem como a todos cujos nomes o Sr. reuniu em suas colunas, a Fr. Tauzin, a Amoroso Lima, ao Padre Castellani...

 

LEGIONÁRIO - Engano curioso. “O Diário” publicou excertos da obra do Revmo. Pe. Castellani, sob a forma de entrevista jornalística, advertindo que se tratava de estratagema técnico para interessar melhor o leitor. O Sr. Maritain se informou muito bem dos vários artigos suscitados por sua obra, antes de responder!

 

- Maritain -  ... a Fábio Alves Ribeiro, a Luiz Santa Cruz,

Um filósofo vive resignado, de antemão, a ver seu pensamento exposto às deformações daqueles que o lêem de espírito prevenido ou com preconceito apaixonado, sobretudo quando trata ele de questões difíceis e controvertidas. Confesso, entretanto, que “esfreguei os olhos”, como se diz na França, quando li o artigo do Revmo. Pe. Arlindo Vieira, no "LEGIONÁRIO" de 31 de outubro, e que não compreendo como um Sacerdote, cuja boa fé não quero pôr em dúvida, pôde desviar-se tão completamente do sentido do que escrevi, e entregar-se a processos polêmicos tão afastados do espírito de sua Ordem quanto dos preceitos de Santo Inácio, em matéria de controvérsia.

A dissertação do Pe. Vieira desfigura inteiramente minhas posições e minhas idéias e calunia bastante gravemente, perante meus irmãos católicos, aquilo que me é mais caro que a pupila dos olhos – a fidelidade e a integridade de meu apego à doutrina da Igreja.

 

LEGIONÁRIO – “Dissertação”. O Sr. Jacques Maritain resvala para o mesmo terreno que seus defensores. Não viu que o trabalho do Revmo. Sr. Pe. Arlindo Vieira não era uma dissertação mas um mero confronto de textos, ligados entre si por uma ou outra consideração rápida, e que por isto deveria ser respondido, não por uma dissertação como agora faz o Sr. Jacques Maritain, mas principalmente pela citação e análise de textos. Infelizmente, como os leitores verão, todos os argumentos do Sr. Jacques Maritain caem fora do alvo, por esse engano fundamental.

O Sr. Jacques Maritain nada tem de mais caro do que sua fidelidade à Santa Igreja de Deus. Muito bem: esse deve ser o sentir comum de todos os fiéis. Mas S. . deveria lembrar-se de que um Religioso que é caluniador e mentiroso está a dois passos de abandonar a Fé. Com que fundamento S. . prova – não se trata de uma afirmação mas de uma prova – que foi caluniado? De que modo prova que o Pe. Vieira é um caluniador? Os leitores analisem até o fim a sua carta: esta prova não aparece.

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Jacques Maritain – Detesto as querelas de pessoas, mas sou no entanto obrigado a protestar abertamente contra essas calúnias, baseadas ora sobre mal-entendidos, pelos quais talvez seja responsável a dificuldade do assunto,...

 

LEGIONÁRIO – “Pelos quais seja responsável a dificuldade do assunto”. Agora, já se trata de um ignorante, um medíocre. Porque, realmente, se bem que o Sr. Jacques Maritain tenha escrito obras muito profundas, esta é precisamente uma das que menos o são. Para verificá-lo basta folhear o livro. Será que nesse rio tão facilmente vadeável soçobrou o Revmo. Pe. Arlindo Vieira? Aguardemos as provas, porque até aqui tivemos só injúrias, afirmações gratuitas: texto, nenhum.

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Maritain - ...ora sobre um processo de insinuação indireta, absolutamente falacioso, ora sobre asserções por si mesmas (reserva feita das intenções do autor) pura e simplesmente mentirosas.

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LEGIONÁRIO - “Insinuações indiretas” como? No seu artigo o Revmo. Sr. Pe. Arlindo Vieira faz, pelo contrário, afirmações muito peremptórias, peremptórias demais até, segundo o gosto de muitos dos hiper-admiradores do Sr. Maritain. Quais estas insinuações? Por que o Sr. Maritain não cita uma? Mais uma vez, registramos nosso desaponto: nada de textos em uma polêmica em que só os textos interessam!

“Reserva feita das intenções do autor.” Como assim? Todo homem equilibrado e medianamente culto não pode de boa fé fazer tantas e tais calúnias. Bom filósofo, o Sr. Maritain sabe disto. Como então concebe a possibilidade de “fazer reservas das intenções do autor?” Poderiam ser boas, se sua atitude fosse, como diz o Sr. Maritain, de um despudorado caluniador? Somente se o R. Pe. Arlindo Vieira fosse um incapaz para não dizer pior.

- O apaixonado filósofo, tão sensível para perceber injúrias que não existem, vai-se desmandando nas mais pesadas e gratuitas invectivas contra um ilustre sacerdote brasileiro. Lembramos o que lemos algures que uma pessoa sensível é aquele que por ter calos nos pés, vive a pisar nos pés dos outros.

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Jacques Maritain – Os escritores que me tomaram a defesa em “O Diário” restabeleceram claramente a verdade, e não tenho que retomar aqui os pormenores da discussão...

 

LEGIONÁRIO - O Sr. Jacques Maritain escusa-se textualmente de entrar “no pormenor da discussão”. Mas entrará no que ela tem de essencial? O que é essencial? A nosso ver os textos. Onde estão? Esperemo-los.

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Maritain - ... que eles – e principalmente Fr. Tauzin – magistralmente levaram a cabo. Faço questão, porém, de acentuar minha concordância com eles, e de sublinhar, de maneira especial, a importância das observações contidas na declaração de Amoroso Lima e no estudo, tão completo e tão decisivo de Fr. Tauzin.

Se o Revmo. Pe. Vieira houvesse tomado o trabalho de ler meus livros objetivamente e sem prevenção, teria compreendido que, desde minhas primeiras obras, não tenho cessado, quer criticando o erro, quer propondo idéias construtivas, de lutar por amor da verdadeira liberdade contra essa falsa noção da liberdade que a Igreja condenou sob o nome de liberalismo, e que ele me acusa caluniosamente de querer ressuscitar.

 

LEGIONÁRIO – Mais uma injúria. É um leigo que escreve, e sua injúria atinge um sacerdote, um membro da ínclita Companhia de Jesus. Perguntamos: Como demonstrar o Sr. Maritain a procedência desta sua injúria? Onde os textos, perguntamos mais uma vez?

- Mas, dir-se-á: os textos aqui não são necessários, já que o autor define, nesta carta, seu pensamento. Não é, porém, disto que se trata. O problema é saber se seu livro Les Droits de l´Homme expõe a Doutrina Católica, e se a expõe bem, com clareza e precisão. Em outros termos, trata-se de saber se o livro é bom ou mau, pode ou não pode ser recomendado. O que só com textos do próprio livro se pode discutir.

*  *  *

Jacques Maritain – Por que esta acusação? É porque sofro hoje no exílio, defendendo a causa da liberdade cristã e humana, contra a praga totalitária e contra os opressores de meu país? Pode-se defender a causa da liberdade sem cair em um erro que, invocando a liberdade, a destrói.

 

LEGIONÁRIO – Está aí mais uma insinuação. O Pe. Vieira teria atacado Maritain porque este é contra o totalitarismo. Quererá dizer que o Pe. Vieira é totalitário? Houve quem quisesse criar entre nós essa falsa equação: ser contra Maritain é ser a favor do totalitarismo. Dez anos de luta do LEGIONÁRIO contra o “eixo” e todos os totalitários aí estão para esfacelar no que nos diz respeito essa equação infantil. Quanto ao Revmo. Pe. Arlindo Vieira, não temos procuração para o defender neste ponto. Defende-o sua nomeada melhor do que poderíamos fazer nós. Defendem-no os muitos artigos que contra o totalitarismo escreveu. Mas é curioso que essa manobra parece ter certa consonância com este tópico do Sr. Maritain. Mera coincidência? É possível. Notemos, entretanto, esta mera, “merissima” coincidência...

*   *   *

Jacques Maritain – Na verdade quanto mais discernimos o erro do liberalismo teológico, tanto melhor avaliamos o preço da verdadeira liberdade cristã e humana. É dentro das perspectivas da filosofia da história dos tempos modernos e considerando o conflito trágico que opõe hoje o totalitarismo pagão e a civilização cristã, que tenho conduzido meus derradeiros trabalhos, em quem procuro precisamente quais são, para a idade histórica em que nos encontramos, as melhores condições de realização efetiva dos princípios que o Pe. Vieira me acusa de negar, e notadamente as melhores condições de realização efetiva duma cidade política cristã, dum Estado real e vitalmente cristão.

 

LEGIONÁRIO – Aí está um texto... não do artigo do Pe. Vieira, mas do Sr. Jacques Maritain que merece muita nota. Ele confirma de certo modo as asserções do Pe. Arlindo Vieira. O Sr. Jacques Maritain acha possível “realizar efetivamente” os princípios católicos a respeito da posição da Igreja e das seitas perante o Estado, acha possível a “realização efetiva de uma cidade política cristã, dum Estado real e vitalmente cristão” em uma ordem de coisas em que:

1) A Igreja não seja oficialmente reconhecida pelo Estado como única verdadeira;

2) mas pelo contrário seja tratada em posição de igualdade mais ou menos completa com outros cultos.

Analisemos os termos da asserção. Uma “cidade política cristã”, um “Estado real e vitalmente cristão” são uma cidade, um Estado organizados conforme os ensinamentos de Nosso Senhor Jesus Cristo e de sua Igreja. Ou é isto, ou a linguagem humana perdeu todo seu valor. Ora, considerar que uma tal cidade, um tal Estado estariam organizados conforme os ensinamentos de Cristo e de sua Igreja é um erro, porque esses ensinamentos preceituam exatamente o contrário, a saber:

1) a Igreja deve ser reconhecida oficialmente pelo Estado como a única verdadeira;

2) e não pode pois ser equiparada de modo algum aos cultos dissidentes.

O Estado que não reconhece a Igreja como verdadeira é oficialmente acatólico, oficialmente não professa a Fé católica, duvida oficialmente da divindade da Igreja Católica. Como então é um Estado organizado segundo a doutrina da Igreja? Como é um Estado “real e vitalmente cristão”? Mas, dir-se-á, o reconhecimento oficial da Igreja como única verdadeira é um rótulo. O rótulo não cria a vida nem a realidade. De acordo. Mas quando um Estado não reconhece oficialmente a Igreja como verdadeira, quando o rótulo não é católico, quando prefere para si um rótulo acatólico, quando oficialmente descrê, algo na sua realidade profunda é acatólico.

Repetimos. O rótulo não é a realidade. Nem a realidade é o rótulo. Mas quando o Estado é oficialmente sem Fé, algo existe nele que anda em funda desordem. Não pode ser realmente, vitalmente católico um homem que não professa publicamente a Fé católica. É o que diz o Catecismo. O mesmo se diz do Estado.

É certo que, posta uma situação de fato irregular, a Igreja, como ocorre em Portugal, pode consentir em uma situação jurídica de igualdade com outros cultos. A irregularidade da situação pode ser tal que a Igreja prefira até essa igualdade injusta e injuriosa, a uma união. Lamentável prova de que o Estado, dirigido embora por homens de intenção eventualmente boa, tem algo de visceral e profundamente irregular, que faz com que a própria Igreja, Mãe entretanto sempre extremosa e sequiosa de colaborar com seus filhos, fuja de qualquer colaboração com ele. A Igreja prefere descer de seu trono de Rainha, de uma situação de Mãe, a aceitar uma tão íntima união com o Estado. E isto seria um Estado “vital e realmente” amoroso de sua Mãe!?

 

Jacques Maritain – Meu livro sobre “Os Direitos do Homem e a Lei Natural” (que é um ensaio filosófico e onde discussões ideológicas não estariam em lugar devido)...

 

LEGIONÁRIO – “Onde discussões teológicas não estariam em lugar devido”. Outra afirmação curiosa. Trata-se de constituir um Estado “vital e realmente cristão”, ou seja um Estado conforme ao que a Sagrada Teologia nos ensina sobre a missão, as prerrogativas, os direitos de que por divina instituição a Igreja é senhora. Ora definir essa missão, essas prerrogativas, esses direitos é um capítulo da Teologia. Mas um filósofo do Estado “vital e realmente cristão” afasta num gesto solerte, entre dois parêntesis, a Teologia da discussão! A Teologia é o estudo da Revelação. Afirmar que a Teologia nada tem que ver com o “status” jurídico da Igreja na sociedade civil é afirmar que qualquer que seja a Revelação esse “status” será o mesmo. É afirmar, pois, que a Revelação não interessa à situação jurídica. É afirmar a igualdade de situação jurídica da Igreja que possui a Revelação e das seitas que não a possuem. Mas não uma igualdade consentida com pesar: uma igualdade, pelo contrário, de direito e decorrente da fonte cristalina dos princípios. Nexo profundo e forte dessa afirmação com a anterior!

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Jacques Maritain - ... tem por objetivo criticar a falsa filosofia (“liberal”) desses direitos, e estabelecer os direitos da pessoa humana, numa filosofia cristã do homem e do Estado. O Pe. Vieira extraiu desse livro um trecho em que falo desse tipo de “Estado cristão” (eu havia posto intencionalmente entre aspas essas duas palavras) de que se gabavam os governos menos realmente cristãos da era absolutista (e dos quais os mais belos exemplos, notemo-lo de passagem, são a Áustria de José II e a Prússia de Frederico Guilherme II), para fazer crer que eu atacava a própria concepção de Estado cristão ou de cidade política cristã, e que eu estava em desacordo com os ensinamentos pontifícios. Renuncio a dar um qualificativo a semelhante processo.

 

LEGIONÁRIO – Outra injúria, e até agora só afirmações gratuitas, desacompanhadas de qualquer prova que as fundamente.

 

Jacques Maritain – O que eu atacava – meu obrigado a Fr. Tausin por haver restabelecido a verdade a respeito deste ponto e de tantos outros, - era uma caricatura farisaica da cidade cristã. O que eu atacava era o clericalismo de Estado que engendra as paixões anti-clericais...

 

LEGIONÁRIO – Está aí uma curiosa e inexplicável associação de idéias. Pensamos como o Sr. Jacques Maritain: a política religiosa de José II era detestável, pela sua constante ingerência em assuntos reservados ao clero. “Meu primo sacristão”, dizia Frederico II de José II, ironicamente, por motivo das mil e mil incursões do Imperador em matéria de culto, revelando toda uma desconfiança mórbida contra o clero.

Por isto, no combate à Igreja, José II foi tão longe quanto podia. Ainda estavam vivas as tradições gloriosas do reinado da piissima Maria Teresa, sua mãe, e os hábitos de mil anos de civilização cristã. José II conservou pois ao clero algumas das exterioridades e honras oficiais que seria chocante tirar-lhe. Mas foi um anti-clerical convicto, simétrico com o que seria Pombal na História portuguesa. Falar de clericalismo de José II é pois tão singular quanto falar do clericalismo de Pombal. Que um comunista achasse que Pombal ainda foi muito clerical – ou José II – porque perseguiu a Igreja porém não a proscreveu inteiramente, concebe-se. Mas isto não se concebe na pena de um filósofo que prestou à Igreja tão grandes e incontestáveis serviços como Maritain.

Por isto, não compreendemos como Maritain acaba por dizer que é “clericalismo de Estado” o regime de José II. Seria clericalismo de Estado um regime em que o clero invadisse a esfera de ação própria ao Poder Temporal. No reinado de José II foi o contrário que se deu: o Estado legislou até sobre liturgia. Que clericalismo, pois, é este?

E não falemos em “estado clerical prussiano”, pois não conseguimos atinar como o Sr. Maritain, filósofo católico, poderia achar que um estado protestante pode ser clerical tal como um estado católico.

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Jacques Maritain - ... e que a Igreja condena e que nós não queremos a preço nenhum, dizia há dois anos D. Saliége, Arcebispo de Toulouse.

Como Amoroso Lima e Fr. Tauzin justamente lembraram, propor uma solução prática como a melhor em dadas circunstâncias, não é, de forma alguma, declarar (à maneira de muitas das proposições condenadas como teologicamente “liberais”) que esta solução é a única boa de direito e, absolutamente a única justa. Acusará o Pe. Vieira de liberalismo S. S. Pio XI porque resolveu a questão romana duma maneira – a melhor sem dúvida nas circunstâncias dadas – que, sem nada abandonar dos princípios enunciados por Pio IX, abandonava entretanto uma situação de fato na qual esses princípios tinham durante muito tempo encontrado aplicação?

 

LEGIONÁRIO – Sobre a questão estar aqui mal posta, como veremos ao criticar a exemplificação tomada ao Tratado de Latrão, o Sr. Maritain desvia o assunto. Ninguém nega que, em circunstâncias concretas, pode a prudência aconselhar uma tolerância, isto é uma inaplicação de princípios, para se evitar mal maior. O que Maritain precisaria demonstrar é que nos “Direitos do Homem” ele não sustentou que a separação da Igreja e do Estado já não se pode mais admitir, em virtude não de circunstâncias concretas de fato, mas de princípios que melhor se fixaram. Isto é que o Sr. Maritain deveria mostrar. E não só não mostrou, senão que, nesta mesma carta, pouco mais abaixo, ainda mantém a mesma tese que lhe atribui o R. Pe. Arlindo Vieira. E de fato, a razão porque já não se pode mais propugnar um estado católico com os privilégios próprios da Igreja, é, segundo diz o Sr. Maritain, nesta mesma carta, porque “a sociedade política tomou consciência na sua própria esfera, do princípio da igualdade dos direitos políticos e sociais”. Tomou consciência, isto é, antes não o possuía bem este princípio, agora o possui, porque aperfeiçoou-se, tomou dele consciência. Não vemos como se poderia expor de maneira mais clara a passagem de um momento histórico em que vigorava um princípio contrário, para este moderno em que começa a vigorar o princípio novo. Ora tudo isso nada mais é do que afirmar, em princípio, a necessidade da separação entre a Igreja e o Estado. De maneira que as ressalvas que o Sr. Maritain coloca neste tópico de sua carta, pouco o auxiliam. Certamente não são suficientes para nelas basear o enxurro de injúrias assacadas contra uma pessoa digna de todos os respeitos pelos serviços que presta à Santa Igreja, e passar-se por inocente nesta contenda.

Além do mais, a exemplificação tomada ao Tratado de Latrão não vem ao caso. Deve-se distinguir “melhor” e “menos má”. Uma solução pode não ser ótima, mas ser a “melhor” em determinadas circunstâncias, e, neste caso, será sempre “boa”. Uma solução que não satisfaça aos princípios nunca é “boa”, mas pode ser, em determinadas circunstâncias, a preferível porque viola menos o princípio, e então não é “melhor” mas “menos má”, isto é, é sempre “ruim”, mas, no caso, “menos ruim”. – Uma igualdade de direitos a todas as confissões religiosas viola sempre o princípio estabelecido pela Santa Igreja. É, pois, sempre “má”, mas pode ser “menos má”. No Tratado de Latrão, salvou-se o princípio, a solução, pois, foi “boa”, “menos boa”, porém, do que a que existia anteriormente à invasão das tropas garibaldinas.

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Jacques Maritain - Longe de negar ou de desdenhar qualquer dos princípios eternos invocados pela Igreja, apliquei-me ao mesmo tempo, a justificar os modos de realização que uma época “sacral” como a Idade Média, deu a esses princípios (e aqui alguns me acusaram de querer voltar aos tempos de Gregório VII) e a mostrar que nossa época exige outros modos de realização dos mesmos princípios; eu não digo (absit!) o abandono desses mesmos princípios...

 

LEGIONÁRIO – Ora, precisamente neste tópico a confusão perdura. “Dos mesmos princípios”. Os princípios da Igreja são claros: só a união é boa. Optar por uma situação que infringe esse único princípio não é “procurar para ele um outro modo de realização”. Em outros termos, quando a Igreja se equipara plenamente às seitas dissidentes perante a lei civil, não há nisto “um outro modo de realizar os princípios” que regem o assunto, mas uma infração a esses princípios.

Assim, a linguagem de Maritain – devemos dizer “fazendo abstração de sua intenções”? – dá azo ao equívoco. Lendo-o, dir-se-ia que essa situação, que “realiza de outro modo os princípios”, é conforme aos princípios. Porque uma situação que não realiza um princípio é contrária a ele; e uma situação que é contrária a um princípio não o realiza. Certamente, haveria situações que infringiriam ainda mais completamente esse princípio, pelo que a simples igualdade jurídica das seitas com liberdade para todas ainda pode ser um mal menor. Um mal, porém, uma infração de princípios. E nunca um bem módico mas genuíno, uma “outra realização” dos mesmos princípios.

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Jacques Maritain - ... abandono que se encontra na raiz dos erros do liberalismo! Eu digo justamente o contrário, pois aplicar um princípio é o contrário de abandoná-lo! Aí está toda a confusão de que a calúnia contra mim lança mão.

 

LEGIONÁRIO – “Aplicar um princípio é o contrário de abandoná-lo”, sim. Mas consentir na violação do princípio, dizendo-se que essa violação não é uma violação mas uma “realização diferente” do princípio, uma realização “diferente” e não uma “violação incompleta”, é coisa muito triste para um pensador católico.

Quanto à injúria, grifamo-la com o comentário anterior: até agora, o Sr. Jacques Maritain não aduziu um só texto que a fundamente.

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Jacques Maritain – A divisão entre os homens é uma grande desgraça. É fato, porém, que ela existe, e que as sociedades modernas abrangem cidadãos que, ao mesmo tempo que pertencem a famílias religiosas diversas, devem concorrer para o bem comum temporal do Estado.

 

LEGIONÁRIO – Indiscutivelmente, quando há essa divisão religiosa, essa “desgraça”, em certos casos o mal menor consiste na inteira igualdade das seitas heréticas com a Igreja de Deus, a igualdade entre as que se prostituíram e a Esposa fiel. Mas um Estado, uma “cidade” onde a divisão seja tão generalizada e tão funda que a “polis” já não pode professar oficialmente o Catolicismo, não é nem “real” nem “vitalmente” cristã. Poderá haver católicos na sociedade, e até muitos. Mas assim como o homem que não professa a Fé católica não é católico, o Estado leigo também não é um Estado católico. É o que ensina em expressos termos o insigne Taparelli, em seu "Tratado de Direito Natural”. Dizer que tal Estado é católico é dizer que um homem que oficialmente se diz a-católico pode ser católico.

Aliás, não exageremos a desgraça em que estamos. Nem no Brasil, nem em outros países contemporâneos, a divisão religiosa é tão profunda. Há talvez menos hereges no Brasil do que mouros e judeus na Espanha de Isabel, a Católica. Na maior parte dos países latinos, e em outros talvez, como por exemplo, na Bélgica, onde há um forte contingente de flamengos, na Áustria, na Polônia, a verdadeira crise religiosa não consiste em uma ruptura declarada de uma parte ponderável da população com a Igreja. As massas continuam católicas, mas o tesouro da Fé minguou nelas a tal ponto que justifica a dolorosa exclamação da Escritura: “Diminuíram-se as verdades entre os filhos dos homens”. Esse depauperamento da verdade, essa anemia religiosa, essa carência de vitalidade e autenticidade católicas atingiu especialmente as concepções da opinião pública sobre a preeminência e liberdade da Igreja. Precisamente por isto, única e exclusivamente por isto, o regime de união entre a Igreja e o Estado está exposto a degenerar em uma tirania disfarçada. É por isto, e só por isto, que, em Portugal e em outros países, a Igreja prefere a separação à união. Prefere-a não como um bem, jamais como a realização de uma sociedade “vital e realmente cristã”, mas precisamente como uma dolorosa contingência decorrente da carência de vitalidade, de realidade cristã, no corpo social.

Disse-se que Maritain deve ser interpretado, não ao pé da letra, mas com esprit de finesse. É realmente esta a impressão que se tem lendo-se algumas de suas frases. Essa por exemplo: “as famílias religiosas diversas devem concorrer para o bem comum do Estado” parece abstrair inteiramente de que se, como disse linhas acima, a divisão religiosa é uma mal imenso, essas “famílias religiosas” quando são religiões falsas, são de fato um vitriolo corrosivo a circular nas veias do Estado. Evidentemente, enquanto o Estado não tenha a dita de as ver abandonadas pelos súbditos, deve forçá-las a ser o menos possível nocivas, e o mais possível úteis na fraca medida das verdades que carreiam junto com seus erros, em sua doutrina. Mas a expressão “famílias religiosas”, empregada sem estas restrições, com toda a doçura e dignidade da expressão “família” na pena de um filósofo católico, sugere quase a idéia de que essas “famílias religiosas” devem viver “em família” umas com as outras, cooperando fraternalmente, esquecidas para todos os efeitos e em todos os terrenos suas dissidências, no bem temporal, tarefa comum a todos.

*  *  *

Jacques Maritain – É fato que no correr da história moderna a sociedade política tomou consciência, na sua própria esfera, do princípio de igualdade dos direitos políticos e sociais. Como se aplicarão, nestas condições, os princípios católicos? Pedindo ao Estado que rejeite os cidadãos não-católicos, ou fazer deles cidadãos de segunda zona, ou obrigá-los a se tornarem católicos pelo menos na aparência? Ou pedindo, como eu faço, ao próprio Estado temporal que se impregne dos princípios e do espírito católico, na sua vida social e política, ao mesmo tempo que reconhece a todos seus cidadãos, católicos e não-católicos, direitos políticos e sociais iguais?

 

LEGIONÁRIO – O problema focalizado neste parágrafo não é claro. A primeira frase parece afirmar, lida em conexão com as demais, que uma vez que hoje a sociedade é igualitária não é prudente nem conveniente “rejeitar os cidadãos não-católicos, ou fazer deles cidadãos de segunda zona, ou obrigá-los a se tornarem católicos pelo menos na aparência”. Ora, essas alternativas são muito diversas. A Igreja sempre condenou que se forçasse alguém a professar a Fé católica. Mas impõe gravemente aos Chefes de Estado que, na medida do possível, tendam a excluir das funções públicas e do exercício de direitos políticos ou de cargos de influência o herege. Porque considera o Sr. Maritain impossível isto? Por causa do igualitarismo moderno? Péssimo igualitarismo, que equipara a Igreja verdadeira à falsa, e acaba por exigir que o exercício das funções públicas seja confiado também a hereges, que disto se podem servir para propaganda da heresia.

Mas se esta falsa noção de igualdade é péssima, e produz efeitos religiosos tão importantes, será apenas “na sua própria esfera” como afirma o Sr. Maritain, que as sociedades modernas “tomaram consciência” do princípio de igualdade dos direitos políticos e sociais? “Na própria esfera”, não. Também na esfera religiosa.

Isto posto, o que significa aí a expressão “tomar consciência”? Cobrar noção de uma coisa verdadeira. Não se “toma consciência” do erro. Se as sociedades modernas “tomaram consciência” de um princípio igualitário, dir-se-ia que esse princípio é verdadeiro. Ora, esse princípio é errado. Logo, ou o Sr. Maritain se exprimiu mal, ou pensou mal.

Depois, não compreendemos a alternativa que o Sr. Maritain formula. A não agir assim, tornando “cidadãos de segunda zona” os hereges, seria preciso – e é o que lhe parece conveniente – “impregnar o Estado temporal dos princípios e espírito católicos, na sua vida social e política, ao mesmo tempo que reconhece a todos seus cidadãos católicos e não católicos, direitos políticos e sociais iguais”.

Por aí se vê como realmente o que o Sr. Maritain afirmava nos “Direitos do Homem”, na sua objetividade, estabelecia o princípio da igualdade, e não a tolerância da igualdade, como aliás já salientamos acima.

Pois, que pretenderá o Sr. Maritain quando deseja, num Estado oficialmente leigo, que se peça a este Estado que “se impregne dos princípios e do espírito católico na sua vida social e política, ao mesmo tempo que reconhece a todos os seus cidadãos católicos e não-católicos, direitos políticos e sociais iguais”?

De fato, como pretende o Sr. Maritain que um Estado em que todos os membros, católicos e não-católicos têm igual título para participar do governo do país se impregne dos princípios e espírito católicos? Só numa hipótese, e seria esta que todos os hereges estão de boa fé, de maneira que basta mostrar-lhes os princípios católicos e o espírito católico e eles imediatamente os abraçariam. Nesta hipótese, de fato, o Estado desde que difundisse os princípios católicos, terminaria impregnando-se de princípios e espírito católicos. Mas, quem não vê que essa é uma santa ingenuidade? Quem não vê que essa atitude não se coaduna com a praxe da Igreja que comina penas gravíssimas para os hereges, e supõe a possibilidade de contumácia? Também numa outra hipótese poderia o Estado oficialmente leigo impregnar-se dos princípios e espírito católicos. A saber os católicos estão com as rédeas do governo, e os hereges embora conservem os mesmo direitos políticos, e portanto a possibilidade de exercer no governo a mesma influência que os católicos, não percebem que o governo está impregnando o Estado dos princípios e do espírito católicos: de maneira que quando “esfregarem os olhos” perceberão que estão de fato num Estado vitalmente católico, sem que o tivessem percebido. Novamente é uma hipótese que ressuma ingenuidade e lançaria dúvidas sobre a boa fé com que os católicos ofereceriam sua colaboração aos dissidentes.

Há uma outra hipótese, e seria que um Estado “real e vitalmente católico” não seria o Estado oficialmente católico, mas um Estado pelo menos oficiosamente cristão em que todas as confissões cristãs vivessem em boa paz colaborando para o bem comum. Neste caso não vemos como a hipótese do Sr. Maritain se diversificaria do interconfessionalismo condenado pelo Santo Padre na Encíclica contra “Le Sillon”. Como se vê, novamente pretende o Sr. Maritain manter-se em terreno equívoco, o que não é próprio de um filósofo, bem como não é próprio de um católico firmar pé em terreno equívoco para lançar injúrias contra um Sacerdote digno por todos os títulos de respeito dos fiéis. Confessamos que não era este o sistema de polêmica, quando Maritain escreveu o Primauté du Spirituel. Talvez naquela época o Sr. Maritain estivesse mais habituado aos preceitos de Santo Inácio em matéria de controvérsia.

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Jacques Maritain – Não se pretende absolutamente com isso afirmar que a verdade e o erro têm os mesmos direitos, nem que as diversas confissões religiosas têm por si mesmas e em si mesmas os mesmos direitos, nem que o “progresso do tempo” deva fazer ver como abolidos os direitos supremos da Igreja, nem que fosse necessário rejeitar em princípio (como insinua mui falsamente que eu faço o Pe. Vieira) toda estrutura do Estado em que a religião católica tivesse uma situação jurídica privilegiada, e condenar assim o que existiu durante séculos de civilização cristã! Diz-se somente que, nas condições históricas de nossa época, é vantagem para o bem comum temporal e é vantagem para a Igreja consentir ela em não fazer uso do direito supremo que lhe pertence, e aceitar para os seus, como o fez na recente concordata portuguesa, uma condição jurídica de acordo com esta igualdade dos direitos entre cidadãos que o Estado reconhece na sua própria esfera temporal

 

LEGIONÁRIO – Este argumento já está refutado pelas notas acima.

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Jacques Maritain – A oposição que o Pe. Vieira crê ver neste ponto entre minhas posições e a Encíclica “Libertas”, é puramente ilusória. Além disso, o Revmo. Padre, que pretende ter lido e relido atentamente meu livro, não notou que nas páginas que ele incrimina, eu não falo do “direito comum” dum Estado neutro mas dos direitos iguais duma “cidade vitalmente cristã”.

 

LEGIONÁRIO – O mal está precisamente nisto. Maritain concebe uma “cidade vitalmente cristã”, mas que não é oficialmente católica, nem é neutra. O que será então? Ou o que ele concebe não tem sentido; ou é um Estado que não é neutro porque é cristão, mas é interconfessional porque não é católico oficialmente. E isto como único meio de realizar hoje em dia, na sociedade moderna, os princípios da Igreja, sem se esquecer que há em todos os países latinos – sem falar em outros como a Áustria – uma maioria católica esmagadora, à qual essa política jamais conviria. Que sentido teria um pan-cristianismo oficial no Brasil, por exemplo? Absit!

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Jacques Maritain – Escrevi expressamente, que neste caso, se não é uma situação jurídica privilegiada, entretanto “é um direito igual cristão, num direito igual inspirado por seu próprio espírito, e numa igual equidade cristã, que a Igreja Católica encontraria uma assistência apropriada à sua obra”(pg. 43).

 

LEGIONÁRIO – Mas como espera o Sr. Maritain essa situação inspirada pelo espírito católico, em uma organização política em que todos os cargos são franqueados promiscuamente a homens com e sem Fé? Não é esperar um efeito católico de uma causa eventualmente acatólica? As pgs. 42 e 43 de seu livro são as únicas que Maritain cita. Vemos nelas uma esplêndida confirmação da tese do Revmo. Sr. Pe. Arlindo Vieira: Maritain confia em que uma obra cristã genuína, que agrade a todos os credos (pan-cristã, pois), e que seja realizada pelos adeptos de todos eles. E entende que nesse pan-cristianismo se “realizam” os princípios da Igreja!

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Jacques Maritain - O Pe. Vieira não viu tampouco que, nas mesmas páginas, acentuei expressamente como, nas condições observadas, a sociedade civil poderia e deveria ainda auxiliar positivamente a obra da Igreja, de maneira que os direitos supremos desta possam ser exercidos por outro modo que não o de uma situação jurídica privilegiada, e que ela seja ajudada ainda mais na sua missão espiritual (pg. 42).

 

LEGIONÁRIO – É interessante esse pensamento do Sr. Maritain. Exige um Estado oficialmente neutro em que todos os credos religiosos tenham os mesmos direitos, e no entanto quer que a sociedade civil tenha como dever auxiliar a obra da Igreja. Não é isto violar o sacrossanto princípio da igualdade de todos os credos tão ardorosamente defendido pelo apaixonado filósofo cristão? Ou, acaso deve o Estado auxiliar a todos os credos, e neste caso, seria um propugnador de heresias?

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Jacques Maritain – As citações feitas por Fr. Tauzin remediaram felizmente esta omissão.

Quanto ao interconfessionalismo condenado por Pio X, não se referia evidentemente ao convívio dos cidadãos na sociedade política (O próprio Sillon teve autorização para retomar sua atividade, contanto que se transformasse numa organização puramente política). A aproximação feita pelo Pe. Vieira, entre este interconfessionalismo e minhas concepções, é simplesmente ridícula.

 

LEGIONÁRIO – Mais uma asserção gratuita do Sr. Maritain. Dizer que a aproximação que faz o R. Pe. Vieira de suas concepções e o interconfessionalismo do Sillon é simplesmente ridícula, é fácil. Demonstrá-lo já não o será tanto. Nossas notas acima o tem mostrado.

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Jacques Maritain - Será preciso acrescentar que, ao falar dos homens que “crêem na dignidade da pessoa humana, na justiça, na liberdade, no amor ao próximo”, apelava eu justamente para esse fundo cristão que subsiste em tantos homens que não professam, entretanto, o cristianismo, para esse fundo cristão, que é preciso revivificar e tornar consciente de suas origens?

Penso ter lido com tanto cuidado e reverência, quanto o Revmo. Pe., os documentos pontifícios de que ele faz praça, de modo particular a Carta de Sua Santidade Pio X, a respeito do Sillon. Não há nenhuma identidade entre as posições que sustento e as do Sillon. Foi, por oposição atenta aos erros do Sillon, como aos outros erros condenados pela Igreja, que propus a filosofia política que julgo de base na razão. Sou profundamente grato a Fr. Tauzin por haver mostrado o verdadeiro sentido dessa filosofia política, num estudo admiravelmente consciencioso e aprofundado, em que restabeleceu, no seu contexto, os trechos do “Direitos do Homem”, tão mal compreendidos pelo Pe. Vieira, e em que pôs em foco os pontos de doutrina enunciados em obras anteriores (especialmente em “Regime Temporal”), que contêm os fundamentos filosóficos e o comentário antecipado de meu Livrinho sobre os “Direitos do Homem e a Lei Natural”.

Condenou assim as interpretações errôneas em que se lançou o Pe. Vieira e as asserções fantásticas que pretendem que um filósofo, que tem constantemente afirmado a transcendência da Fé cristã com respeito a toda filosofia política e de toda forma de governo, proclamado tanto a necessidade duma política cristã como duma filosofia cristã, combatido o naturalismo e o laicismo e sustentado que a cidade temporal deve oferecer ajuda positiva à obra espiritual da Igreja e ser ela mesma ativada e sublimada pelas influências do Evangelho...

 

LEGIONÁRIO – Não basta à cidade temporal “oferecer ajuda positiva à obra espiritual da Igreja e ser ela mesma ativada e sublimada pelas influências do Evangelho”. Se foi só por isto que se bateu o Sr. Maritain, se é esse seu “programa máximo” em matéria de doutrina, ele se contenta com pouco. Em tese, repetimos, o Estado deve ser oficialmente católico pela mesma razão por que o homem deve ser oficialmente católico. Isto é, Estado e homem devem, um e outro, professar a Fé, como condição para se poderem dizer católicos. E foi o que em obras anteriores o Sr. Maritain sustentou. Por que agora parece ele contentar-se com tão pouco?

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Jacques Maritain - ... enfeuda a doutrina cristã à democracia, procura num Estado ateu o ideal numa cidade fraterna, prega abertamente a separação da Igreja e do Estado, nega os direitos supremos da Igreja e da verdade sobrenatural e professa os erros do liberalismo e do Sillon. Por mais insensatas que sejam tais asserções mentirosas e caluniadoras, foram, no entanto, assacadas contra mim por um Sacerdote.

 

LEGIONÁRIO – Depois de todas as nossas notas baseadas exclusivamente no texto que o leitor tem diante dos olhos em que procuramos por os pontos nos ii pode-se julgar de mais esta injúria, bem como destas lamentações.

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Jacques Maritain – O mesmo Sacerdote usou também contra mim um processo de insinuação indireta totalmente singular e verdadeiramente intolerável...

 

LEGIONÁRIO – Mais uma injúria. Vejamos a prova.

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Jacques Maritain - ... que consiste em citar longos trechos da Carta a respeito do Sillon e de várias Encíclicas pontifícias, declarando que elas são “uma resposta fulminante” a meus “sofismas”, os quais, em qualquer hipótese não haviam ainda nascido, e fazendo assim o cândido leitor acreditar que os erros de toda a natureza, denunciados nesses trechos, se referem a teses cuja sustentação me é atribuída. O processo é simples e hábil, embora um tanto precipitado. Não se recomenda pela sua honestidade intelectual.

 

LEGIONÁRIO – Há um ditado português que diz: “Quem usa cuida”. Vem-nos ele à memória ao ler este trecho da carta do Sr. Maritain. Não há no mundo leitor nenhum que seja levado a ler o artigo do Pe. Vieira que não saiba que Pio X, autor da carta contra Le Sillon viveu muito antes do Sr. Maritain publicar os “Direitos do Homem”, de maneira que ninguém – a não ser o Sr. Maritain – viu nas citações do Pe. Vieira uma refutação fulminante dada aos “sofismas” do apaixonado filósofo depois de ter ele escrito seu livro. Mas todos entendem que as respostas fulminantes já tinham sido dadas anteriormente e que o Revmo. Pe. Vieira aplicou apenas às doutrinas de Maritain, como poderá aplicá-las às de quaisquer outros filósofos que apareçam depois dele aos quais também se ajuste a carapuça.

* * *

Jacques Maritain – O Revmo. Pe. Vieira teria podido, numa discussão leal, analisar minhas posições e procurar mostrar em que, a seu ver, carecem elas de consistência lógica ou negligenciam um aspecto da verdade. Em lugar disto, contentou-se em falsificá-las e desfigurá-las, contra elas invocando, sem análise nem discussão, textos pontifícios que condenam erros que eu reprovo e que afirmam princípios que eu sustento.

 

LEGIONÁRIO – Idem, mais injúrias à guisa de argumentos.

* * *

Jacques Maritain – Boa parte de seu trabalho é incontestavelmente verdadeira: a que é constituída pelas citações das encíclicas dos Soberanos Pontífices. De parte estas citações (e de parte também, num plano todo humildemente humano, as páginas de meu livro que ele me fez a honra de citar igualmente, embora isolando-as do seu contexto, e que eu não teria escrito se não as considerasse verdadeiras) não encontra no seu artigo do “LEGIONÁRIO” e na sua resposta a “O Diário”, senão uma série de imputações falsas e “serenamente” contrárias à verdade, em que ele procura esmagar-me sob um dilúvio de erros condenados que outros que não eu sustentaram e dos quais não participo.

 

LEGIONÁRIO – Idem, novas injúrias.

* * *

Jacques Maritain – Os colaboradores de “O Diário” levantaram o inventário dessas imputações errôneas. Protesto, por minha vez, contra elas. Antes de lançar contra um homem que, há trinta anos trabalha pela verdade católica, acusações tão graves, dever-se-ia estar bem certo de não caluniar, com isso, um irmão na fé, e de não ser, por sua vez, vítima dessa miopia intelectual que, em linguagem filosófica, se chama “univocismo” ou incapacidade de apreender o valor analógico dos princípios transcendentes.

 

LEGIONÁRIO – Mais umas injúrias. A esta altura da carta do Sr. Maritain já não nos admira.

*   *   *

Jacques Maritain - Com uma caridosa soberba o Revmo. Padre convida-me a retratar-me dos erros que ele generosa e gratuitamente me atribuiu.

 

LEGIONÁRIO – Não foi caridade soberba, Sr. Maritain, mas fraternal correção, sobre o que tomamos a liberdade de insistir. Seria também conveniente que o Sr. Maritain, que humildemente se confessa com vanglória ser discípulo de Santo Tomás de Aquino, revise a maneira como este Santo Doutor tratava aqueles que se desviaram da reta doutrina.

* * *

Jacques Maritain – Tomo a liberdade de rogar-lhe humildemente que releia o que o Doutor Angélico escreveu a respeito da caridade fraternal e da correção fraternal assim como do que é devido em justiça à reputação do próximo, e que examine sua consciência perante Deus.

Gostaria de acrescentar, a propósito da página que parece tê-lo mais escandalizado, que, segundo a recente Concordata, concluída ente a Santa Sé e Portugal, o Estado português “admite a liberdade de cultos e não sustenta uma igreja oficial” e não obstante “não é neutro em matéria de doutrina e moral” pois “adota os princípios da doutrina e moral cristãs, católicas”. Fala dessa maneira S. E. o Cardeal Patriarca de Lisboa, no seu Discurso, de 18 de novembro de 1941, em que exalta magnificamente a “gloriosa pobreza” a que está dessa forma condenado o Clero.

“Portugal, diz ainda o Cardeal Cerejeira, é o único país concordatário da Europa, em que o Clero que exerce a mais alta função social não recebe do Estado (salvo o que trabalha nas missões do ultramar) qualquer subvenção”.

E acrescenta: “Outro aspecto do regime instituído pela Concordata é o da recíproca autonomia da Igreja e do Estado. Cada um é independente e livre na sua respectiva esfera de competência. Nem o Estado tutela a Igreja, nem a Igreja se intromete nas coisas do Estado.

“Os que falam na supremacia do Estado, devem logo acrescentar: escravização da Igreja, e portanto da consciência católica. A autoridade do Estado é absoluta segundo a própria doutrina católica – mas no domínio que lhe pertence.

“Foi o Cristianismo que introduziu no mundo esta separação do temporal e do espiritual, sobre que assenta toda a civilização cristã. É ela a fonte da liberdade da consciência.

“Só porque existe, a Igreja não só defende mas realiza-a. Por isso procuram dominá-la ou suprimi-la todos os que aspiram ao domínio totalitário, absoluto, do homem.

“O Estado português reconhece a Igreja como ela é e assegura-lhe a liberdade; mas não a sustenta, protegendo-a como religião do Estado.

“Devemos dizer, em nome dos princípios, que o apoio material do Estado não se opunha àquela autonomia. Significava apenas o reconhecimento da necessidade pública da ação da Igreja. Sem competência para satisfazer as necessidades religiosas e morais dos cidadãos, o Estado assegurava à Igreja os meios materiais de as atender.

Mas o fato é que o Estado português não sustenta a Igreja. Nem esta lho pediu, nem nas atuais circunstâncias ele o poderia talvez fazer. Deste fato resulta maior pureza na sua missão evangélica.

“O que a Igreja perde em proteção oficial, ganha-o em liberdade virginal de ação. Desligada de compromissos com o poder político, adquire a sua voz maior autoridade junto às consciências. Deixa a César inteiramente livre o campo, para melhor se ocupar do que pertence a Deus. Ela é o puro vaso de cristal donde se derrama o tesouro da Revelação cristã”.

É permitido pensar que, não pedindo que o catolicismo seja religião de Estado em Portugal e renunciando a qualquer “discriminação social e política a seu favor (cf. Os direitos do Homem e a Lei Natural, pg 41) não entrou a Igreja em contradição consigo mesma, nem com o “Syllabus”, nem com a Encíclica “Quanta Cura”, nem com a Encíclica “Immortale Dei”, nem com a Encíclica “Libertas”? É permitido encarar como boa e oportuna a solução nova que acaba de ser assim posta em prática? É permitido pensar que ela anuncia uma orientação prática, particularmente válida para nosso tempo, sem pensar evidentemente por isso que ela é a única solução possível de direito, nem lançar o descrédito às soluções por meio das quais os princípios supremos, a que esta solução permanece fiel, se realizaram antes, de outra forma?

Outra cousa não sustentei nas páginas em que o Pe. Vieira imagina que eu ressuscito o liberalismo.

Já que minha honra de filósofo católico foi posta em causa, não se julgará presunção que eu lembre que, no Discurso de 18 de novembro de 1941, de que citei trechos acima, S. E. o Cardeal Patriarca de Lisboa teve a bondade de, a propósito da luta do Cristianismo contra o naturalismo e o paganismo moderno, citar meu nome com palavras excepcionalmente benévolas. Não tenho a pretensão de merecer elogio algum. Mas afinal tal testemunho público, e emanado de tal autoridade, mostra que há na Igreja outras opiniões sobre a minha obra de filósofo que não as dos êmulos do Pe. Vieira.

Minha principal preocupação, porque amo acima de tudo a verdade, tem sido a de conduzir esta obra dentro de uma fidelidade integral aos ensinamentos da Igreja.

Que Deus me conceda a graça de me firmar sempre mais nessa fidelidade, a exemplo de meu mestre Santo Tomás de Aquino, que, no seu tempo, não se viu isento de ataques violentos e infundados, sem que tenham jamais podido abalar sua suma confiança na Providência e na Igreja de Jesus Cristo.

Protestando-lhe ainda uma vez, Sr. redator-chefe, minha profunda gratidão pessoal e meu vivo reconhecimento a seu jornal e aos escritores católicos que nele tomaram fraternalmente minha defesa, peço-lhe aceitar a expressão de meus sentimentos de devotamento e de amizade cordial”.

 

Jacques Maritain

 

LEGIONÁRIO – Aqui termina a quase interminável carta que o Sr. Maritain, ao lado de um acervo de injúrias, repisa afirmações, e não aduz uma só prova que realmente destrua os argumentos do R. Pe. Arlindo Vieira. Muito pelo contrário. Quem tiver a paciência de ler atentamente nossas notas verificará como esta mesma carta do Sr. Maritain confirma a suspeita contra ele levantada pelo ilustre jesuíta, que com seus artigos não há dúvida, prestou inestimável serviço à causa católica.