Legionário, N.º 605, 12 de março de 1944

“MISSIONÁRIOS JESUÍTAS NO BRASIL NO TEMPO DE POMBAL

Infelizmente, recebi com enorme atraso a obra do Revmo. Sr. Pe. Antônio Paulo Ciriaco Fernandes, S.J., sobre os "Missionários Jesuítas no Brasil, no Tempo de Pombal". Publicada por ocasião do IV Centenário da Companhia de Jesus em 1940, esse trabalho, que já está em 2ª edição, publicado pela Livraria do Globo de Porto Alegre, resulta da sistematização e ampliação de algumas conferências que o autor fez para a sua já histórica Congregação Mariana no Recife. A natureza do tema, o nome do autor, a qualidade do público especial para o qual fora inicialmente escrito, a ocasião festiva em que se publicou o trabalho, tudo teria concorrido para que os leitores do LEGIONÁRIO lessem com particular interesse uma notícia acerca dele. Todas essas circunstâncias dão entretanto ao livro do Pe. Fernandes uma importância permanente. Estamos pois certos de que algumas palavras que sobre ele escrevemos em nossa edição de hoje serão acolhidas por nossos leitores com igual interesse.

*  *  *

O Pe. Antônio Ciriaco Fernandes, que se apresenta em público com o livro sobre os "Missionários Jesuítas", é muito mais conhecido entre nós paulistas como  Pe. Antônio Fernandes "tout court", ou melhor ainda, se quisermos ser mais reais e exatos, como "o Pe. Fernandes do Recife". Foi pelo eco de suas relevantíssimas realizações no Norte do País que chegou até nós o nome do Padre Fernandes, indissoluvelmente ligado à reputação que sua valorosa Congregação Mariana adquiriu em todo o Brasil. "O Pe. Fernandes do Recife" é mais que um nome, é um título. É este o título com que o conhecemos, e esse simples título tem por si tanto valor no conceito geral que seria suficiente, como dissemos, para atrair a atenção de nosso público sobre o trabalho do ilustre sacerdote Jesuíta.

Com efeito, a Congregação Mariana que o Pe. Fernandes reuniu operou na mentalidade brasileira uma profunda transformação. Congregando em torno de si um grupo de rapazes de inteligência de escol, e de uma exuberante capacidade de realização quer na ordem das idéias quer na ordem da ação, o Pe. Fernandes os formou segundo os mais genuínos princípios católicos, evitando cuidadosamente qualquer infiltração do espírito liberal e latitudinário que, naquele tempo, infestava o Brasil, não com as máscaras novas com que procura reabilitar-se e reaparecer hoje, mas com sua fisionomia aberta e declarada, de verdadeiro e genuíno liberalismo. Ora, autêntico jesuíta, o Pe. Fernandes se apresentava à mocidade pernambucana como um genuíno anti-liberal. Em sua linguagem, não havia lugar para as diluições medrosas nem para as concessões mais ou menos sofísticas em que se comprazem os liberais. Para ele, já bastava de lusco-fusco espiritual. Ele queria que a verdade se manifestasse a jorros sobre o Brasil, e que a doutrina católica fosse difundida pelos leigos entre nós, com aquela integridade, aquela autenticidade, aquele desassombro com que a difundiram desde os primeiros dias os Apóstolos. Essa posição radical agradou profundamente o pugilo de moços que o Pe. Fernandes conseguira reunir em torno de si, graças a seu extraordinário poder de atração pessoal. A alma pernambucana é ágil, penetrante, combativa, e muito inclinada à comunicação. A serviço da Igreja, fecundada pela graça, ela produziu maravilhas nos congregados do Pe. Fernandes, suscitando uma verdadeira floração de intelectuais lúcidos, vigorosos, categóricos e arrojados, que se fizeram desde logo publicistas, escritores, jornalistas, conferencistas, e, em todas essas atividades lutadores exímios diante de cujo prestígio moço e saudável cedeu a velha influência dos figurões feitos, dos grandes homens postiços, dos princípios sonoros e inócuos que anestesiavam antigamente o Norte do País como o Brasil inteiro.

Especialmente através da revista "Fronteiras", que se transformou sob a direção de Manuel Lubambo em um dos órgãos de maior influência na vida intelectual do País, os "congregados do Pe. Fernandes" iniciaram e levaram a cabo com galhardia a transformação da mentalidade católica de Pernambuco, que também já se vinha alterando com êxito em outros pontos do país.

Por isto, o Pe. Fernandes se tornou das figuras clássicas do movimento católico de nossos dias, e será impossível fazer-se algum dia o histórico do que ocorreu, do que está ocorrendo em matéria religiosa no Brasil, no século XX, sem dar ao nome do Pe. Fernandes um realce verdadeiramente extraordinário.

*  *  *

O movimento católico em Pernambuco é tema que lembra invencivelmente as mais gloriosas recordações de nossa história religiosa e política. Foi um movimento católico, antes e acima de tudo, a reação pernambucana contra o domínio holandês. Melhor do que ninguém mostrou-o a própria Congregação do Pe. Fernandes, quando investiu desassombradamente contra as exageradas comemorações a Maurício de Nassau, que se pretendia fazer em Pernambuco, e de cujo programa se exalava, em conjunto, um certo pesar pelo fato de não se ter conservado no Brasil o domínio protestante dos holandeses. Já antes disto foi também um movimento católico, o trabalho de evangelização que integrou Pernambuco e o Norte na civilização luso-católica a que pertencemos. Em Pernambuco brilhou com especial fulgor a nota católica dessa bela civilização luso-brasileira, e o demonstraram também com grande brilho os Congregados do Pe. Fernandes em sua luta contra a obra do Sr. Gilberto Freire. Tudo isto concorria para que um livro do atual paladino do movimento católico em Pernambuco, sobre um episódio interessantíssimo de nossa vida colonial, qual seja a expulsão dos PP. Jesuítas ao tempo de Pombal, se recomendasse especialmente à atenção do público católico de todo o Brasil.

Ademais, esse livro vale por uma verdadeira doutrinação em favor da intransigência, da integridade, do desassombro e por aí se liga especialmente à obra do Pe. Fernandes. Ele foi publicado para comemorar o IV Centenário da Companhia de Jesus. De norte a sul do país, se ouviam os louvores da ínclita milícia inaciana. No mundo inteiro, se celebrava em todos os quadrantes da opinião a benemerência dos Jesuítas. Não seria demais que o Pe. Fernandes, rememorando precisamente naquela ocasião de fausta e jubilosa unanimidade os muitos sofrimentos que a Companhia de Jesus padeceu no cumprimento de sua missão, mostrasse a todos que o dever cumprido com integridade é o único título de verdadeira glória, mesmo entre os homens, e que a Companhia continuará sempre tranqüilamente em suas tradições em impertérrita pugnacidade, tão característica dos filhos de Santo Inácio. É no bom combate, travado com lealdade, denodo, espírito sobrenatural, que se encontram os grandes e verdadeiros êxitos. Essa linha de conduta pode acarretar certamente dissabores amargos, cruéis, injustos. Lembra-os o Pe. Fernandes em seu livro, acentuando-os mais ainda pelos nomes que intencionalmente omite, do que pelos tristíssimos fatos que pormenorizadamente narra. Mas essas perseguições são sempre estéreis, e dia virá em que os homens reconhecerão a santidade da sua causa. O sal não deve recear de salgar, com medo de ser posto de lado. Não é o sal ativo e saboroso, mas o sal insípido que é atirado fora e calcado aos pés... Essa a austera verdade que o livro do grande batalhador que é o Pe. Fernandes veio lembrar. Os dias gloriosos e os dias de pena se alternam na trajetória da Companhia através de séculos. Eles ainda serão muitos, tanto os luminosos quanto os tristes, talvez mais numerosos estes do que aqueles. Mas quando chegarmos ao grande Dia definitivo, sem noite, sem tempo, sem sombras, esses operários que trabalham expostos a todas as intempéries, recolherão certamente uma coroa dos louros incorruptíveis.

*  *  *

Pronunciando para seus Congregados algumas conferências, o Pe. Fernandes as ampliou depois, e formou o volume que atualmente comentamos. Ele traz duas notas biográficas sobre jesuítas brasileiros que se ilustraram no apostolado entre os gentios da Índia portuguesa, e assim exprime a comovedora homenagem desse jesuíta luso-hindu a nossos patrícios que espalharam em sua terra a semente de Jesus Cristo. Vem, depois, a narração de todas as injustiças, infâmias, baixezas que caracterizaram a expulsão dos missionários jesuítas do Brasil ao tempo de Pombal. E, contrastando com a tristeza desse acontecimento que não era senão o prelúdio do fechamento da Companhia em todo o mundo, o Pe. Fernandes dá uma notícia completa sobre as atividades da Companhia de Jesus no mundo inteiro em nossos dias. De um lado a investida do demônio, do outro o atestado da plena e miserável inutilidade dessa investida.

Esta leitura é de uma extraordinária oportunidade para os dias que correm. O anti-clericalismo, o anti-jesuitismo, iludindo a ingenuidade de uns, adormecendo a indiferença de outros, avivando o mau espírito de muitos, começa a renascer um pouco por toda a parte. O livro do Pe. Fernandes, chamando a atenção do leitor sobre o verdadeiro espírito do anti-jesuitismo, sobre a assistência providencial com que Deus protege a milícia inaciana, e reproduzindo a carta do Santo Padre ao Geral da Companhia de Jesus, que é mais um testemunho da afetuosa e altissonante aprovação da Igreja à obra dos jesuítas, constitui leitura interessante e proveitosa, que a todos recomendamos.