Legionário, N.º 611, 23 de abril de 1944

Terá sido desmilitarizada a capital da Cristandade?

O protesto irlandês – O silêncio das outras potências – Uma nota blandiciosa do governo nazista – o desmentido do governo norte-americano – Um passado de tratados violados – Não depositemos fé nas afirmações da Wilhelmstrasse

 

O Sr. Eamon de Valera, primeiro ministro da Irlanda, enviou ao Reich uma mensagem redigida nos seguintes termos:

"Como chefe do governo de um Estado cujos cidadãos pertencem na sua maioria à Santa Igreja Católica, Apostólica e Romana, considero meu dever expressar em nome do Eire a profunda preocupação da qual participam 300 milhões de católicos de todo o mundo, diante da ameaça que está pairando sobre Roma e da falta de precaução por parte das nações beligerantes para garantir sua segurança. Torna-se óbvio que se a cidade for militarmente defendida por um dos beligerantes e militarmente atacada por outro, a sua destruição será inevitável. Ora, a destruição da Cidade Eterna, que durante quase dois mil anos constituiu a sede da autoridade soberana da Igreja Católica, e na qual se encontram os grandes templos, os grandes Seminários e as grandes bibliotecas da fé cristã, constituiria uma catástrofe para a humanidade e a privaria para sempre das mais grandiosas obras religiosas e da fonte cultural, cuja raiz são os ensinamentos de Nosso Salvador Jesus Cristo. Milhões de católicos dariam alegremente sua vida para salvar esses tesouros, símbolos das coisas eternas, as únicas que dão sentido à vida. Peço que se escutem os milhões de seres que, em todos os países, imploram aos beligerantes, pedindo-lhes que procurem um meio de salvar Roma. As gerações futuras esquecerão as circunstâncias militares que no presente parecem tornar necessária a ocupação ou a conquista de Roma. Mas se a Cidade Eterna for destruída, a sua destruição nunca será esquecida. Enfim, se ela for salva por meio de um acordo, as gerações vindouras lembrarão esse fato com gratidão, assim como o nome dos Estados e dos homens que contribuíram para a sua salvação."

 

O silêncio das outras potências

Se bem que certos telegramas tenham noticiado com bastante precisão uma démarche do governo espanhol em favor de Roma, nada consta oficialmente a este respeito. Ao que parece, o Eire é até o presente a única potência que em caráter oficial e público se interessou pelo Soberano Pontífice. De um certo modo, a mensagem do Sr. De Valera parece confirmar esta impressão, já que o chefe do governo irlandês não fala só em nome dos seus concidadãos, mas de toda a Cristandade, quando pede "que se escutem os milhões de seres que, em todos os países, imploram aos beligerantes um meio de salvar Roma". Certamente ele não o faria se outros governos se tivessem expressado oficialmente no mesmo sentido, em nome de seus súditos. Só o silêncio de todos os governos poderia autorizar o Sr. De Valera a falar em nome dos católicos do mundo inteiro.

 

A nota do governo nazista

À mensagem irlandesa, onde para honra do Eire e do nome cristão se encontram tão belas e importantes afirmações, o Reich deu a seguinte resposta:

"A legação irlandesa transmitiu, juntamente com uma nota datada de 20 de março deste ano, o texto de uma mensagem na qual o primeiro ministro do Eire, Sr. De Valera, expressa ao governo do "Reich" a sua ansiedade pela sorte de Roma. Explica-se essa ansiedade pelo fato de que não foram adotadas as necessárias medidas para salvaguardar a cidade, sendo que a sua destruição será inevitável se for defendida militarmente por um beligerante e atacada militarmente por outro. A legação da Irlanda faz votos para que, por meio de um acordo adequado, a cidade de Roma seja salva.

"O ministro das Relações Exteriores da Alemanha tem a honra de responder da seguinte maneira à legação do Eire: "Se a mensagem do primeiro ministro se fundamenta na afirmação de que não foi tomada medida alguma pelas potências beligerantes para a segurança da cidade de Roma, isso não está de nenhum modo de acordo com os fatos, no que se refere à Alemanha. O governo do "Reich" deu, desde algum tempo, uma expressão prática ao seu desejo de preservar os valiosos monumentos e obras de arte de Roma para o mundo da cultura, pondo em aplicação medidas compreensivas que tiveram como resultado a completa desmilitarização da cidade. Desta forma, privou o alto comando anglo-americano de todo o pretexto para destruir indiscriminadamente casas, templos, monumentos, hospitais ou matar crianças, mulheres e outras pessoas. Eis aqui uma lista das medidas adotadas:

"1º) O comandante chefe do exército alemão proibiu o alojamento dentro da cidade de qualquer unidade do exército, de comandos ou de instalações de abastecimentos das forças armadas germânicas. A única exceção são os hospitais permanentes, nos quais são atendidos os soldados feridos e prisioneiros de guerra, assim como um pequeno contingente de polícia de segurança alemã que apoia a polícia italiana.

"2º) A rede ferroviária da zona da cidade de Roma, incluindo as estações das estradas de ferro, vêm desde há muito tempo, prestando serviços exclusivos à população civil, e especialmente ao seu abastecimento. Os postos de comando do exército alemão não fazem uso dessa rede. O tráfego de soldados em gozo de licença não passa pela cidade de Roma.

"3º) Todos os membros das forças armadas germânicas receberam instruções para não entrar em Roma. Somente têm permissão para penetrar na cidade - a título excepcional - aqueles que têm assunto a tratar com os postos do comando italiano e que desenvolvem as suas atividades em favor do seu bem estar e da segurança da população civil da cidade. O salvo conduto é fornecido pelas autoridades militares germânicas.

"Há várias semanas que as referidas medidas foram tornadas públicas na Itália pelo comando alemão e o Vaticano foi informado a respeito, por via diplomática. Portanto, Roma não está ocupada militarmente e não existem objetivos militares de nenhuma natureza na cidade. Se os bombardeadores anglo-americanos não atacam a capital italiana como o fizeram até agora, não há razão militar alguma que justifique o seu bombardeio, pois apenas objetivos civis seriam atingidos na cidade de Roma.

"A ansiedade do primeiro ministro da Irlanda carece de fundamento no que se relaciona com a Alemanha e a responsabilidade da destruição da Cidade Eterna cabe exclusivamente aos comandos anglo-americanos.

"Como foi manifestado anteriormente, a Alemanha tem-se ocupado sempre exclusivamente de livrar a cidade de Roma e os seus habitantes dos sofrimentos da guerra aérea e conservar as suas obras de arte, e deixa ao primeiro ministro da Irlanda a incumbência de dirigir-se aos governos da Grã-Bretanha e dos Estados Unidos, a fim de assinalar, mais uma vez, a esses governos, que a desmilitarização de Roma é fato público, procurando, outrossim, induzí-los a contribuir por sua parte para a preservação da Cidade Eterna. Se a atitude dos inimigos da Alemanha em relação a Roma não sofrer mudança, então a responsabilidade haverá de recair exclusivamente sobre eles, caso o comando alemão se veja obrigado mais cedo ou mais tarde a modificar o seu ponto de vista, por motivos de ordem militar. A questão da preservação de Roma também foi recentemente um motivo de discussão entre o embaixador alemão na Santa Sé e o Vaticano. Nessa ocasião, o embaixador germânico informou à Cúria da mesma maneira como foi informado o governo irlandês, sobre as medidas tomadas para resguardar Roma. O embaixador alemão declarou claramente ao Vaticano que as responsabilidades pelos danos causados ou que poderão ser causados a Roma recairão sobre os americanos e britânicos".

 

As "gaffes" desse documento

A impressão sugerida por este blandicioso documento é ambígua. Sua linguagem, seu tom, os fatos que ele enumera e descreve nos apresentam a diplomacia nazista com um aspecto de moderação, de lealdade e de doçura a que não estamos habituados. A primeira leitura da resposta da Wilhelmstrasse dá a impressão de que o nazismo, cheio de respeito e admiração para com a Roma clássica, cheio de boas intenções para com a Capital da Cristandade, agiu com uma correção modelar desde os primeiros dias da evacuação da cidade pelo governo italiano, e suporta agora, com discreta e estóica firmeza, as calúnias da propaganda anglo-americana. Todo o documento, do princípio ao fim, denota a preocupação de conquistar as simpatias da opinião católica.

Ora, a despeito de tudo isto, do ponto de vista católico, a resposta nazista apresenta duas "gaffes" consideráveis. Não obstante sua habilidade proverbial, e o supremo interesse que os nazistas têm, nesta hora de catástrofes, de impressionar bem a opinião católica, deixaram transparecer seu verdadeiro espírito em dois notáveis pormenores de sua resposta.

Primeiramente, bem pesados os termos deste documento, vê-se que a Wilhelmstrasse abstraiu inteiramente do caráter sagrado de Roma, insistentemente mencionado na mensagem do "premier" irlandês. Pelo contrário, os dois únicos motivos que o texto germânico menciona para explicar sua alegada brandura são "o desejo de preservar os valiosos monumentos e obras de arte de Roma para o mundo da cultura" [e] a preocupação [que] a Alemanha teve "sempre e exclusivamente" de "livrar a cidade de Roma e seus habitantes dos sofrimentos da guerra aérea e de conservar suas obras de arte". "Exclusivamente"... o advérbio é expressivo. Os dois propósitos "exclusivos" do governo nazista foram o de preservar as vidas humanas e monumentos "para o mundo da cultura". Em outros termos, Roma só merece ser poupada por dois títulos: o humanitário e o cultural. Título religioso, nenhum!

São os chifres do bode furando inopinadamente a postiça pele da ovelha!

*  *  *

Esta foi a primeira "gaffe". Vejamos a segunda.

Como dissemos, o documento do Reich foi destinado ao mundo inteiro, e redigido com o propósito evidente de captar as boas graças da opinião católica. No momento presente, a atitude germânica tem mesmo uma importância política transcendental. Como é notório, os irlandeses são geralmente católicos e ao mesmo tempo tradicionais inimigos da Inglaterra protestante. Não foi difícil à propaganda alemã persuadir os irlandeses de que a hostilidade nazista ao Catolicismo não passava de questão doméstica nascida da desinteligência pessoal dos chefes do Partido Católico com o Sr. Adolf Hitler, e não de uma incompatibilidade fundamental e visceral entre as ideologias de ambas as correntes. Assim, a vitória do nazismo não representava o menor perigo para a Igreja Católica fora das fronteiras germânicas. É lamentável que um grande povo católico se tenha deixado iludir grosseiramente por estas alegações, sobretudo depois da Encíclica de Pio XI contra o nazismo, que não deixava a menor sombra de dúvida sobre o propósito do Sr. Adolf Hitler de exterminar o Catolicismo da face da terra. Mas nós, católicos brasileiros, sabemos por uma triste experiência como o homem contemporâneo, viciado pelo sensacionalismo da imprensa, do rádio, do cinema, tem preguiça de ler na íntegra, de estudar e meditar os documentos emanados do supremo magistério da Igreja. E, por isto, os fatos aí estão: como muitos católicos brasileiros antes de nossa declaração de guerra ao “eixo”, também os católicos  irlandeses  se deixaram enganar.

Mas agora chegou o momento crítico desse regime de mistificação. Os nazistas ocuparam a Cidade Eterna. Se a perseguição contra o Catolicismo era pura questão doméstica, a conduta das autoridades germânicas para com a Santa Sé deveria ser modelar. É modelar de fato? Não o é? Deste problema, pende a simpatia irlandesa para com o "eixo". Ora, esta simpatia é preciosa para os germânicos. A atitude irlandesa constitui para os ingleses uma perpétua preocupação. Talvez se deva à diplomacia do Eire, ao menos em parte, o retardamento da invasão da Europa, que será para o Sr. Adolf Hitler não o "começo do fim", mas o "fim do fim". Assim, os germânicos têm o maior empenho em continuar bem vistos pela Irlanda.

 

A atitude do Vaticano desmente a nota nazista

Expostos estes dados preliminares do problema, examinemos outra questão, que o comunicado germânico procura ladear habilmente. Se a conduta dos teutônicos foi de tal maneira irrepreensível para com a Santa Sé, não se explica que o Santo Padre tenha, em seus discursos, adotado invariavelmente palavras que faziam recair, não apenas sobre os anglo-americanos, mas sobre todos os beligerantes a responsabilidade pelo bombardeio de Roma. Sentindo a ansiedade de toda a opinião católica pela incolumidade de sua augusta pessoa, pela integridade da capital pontifícia, o Sumo Pontífice nem uma só vez se dirigiu ao mundo dizendo-lhe que Roma já era uma cidade inteiramente desmilitarizada, e que os motivos alegados para seu bombardeio haviam deixado de existir. Pelo contrário, mesmo as autoridades eclesiásticas mais chegadas ao Vaticano, como os Cardeais norte-americanos e o do Canadá, os Bispos de potências neutras, continuaram a ordenar orações pela Santa Sé, afirmando em seus telegramas que Roma deveria ser poupada por uma providência bilateral, de ambos os grupos beligerantes, o que excluía expressamente a idéia de que a desmilitarização de Roma já houvesse sido feita pelos nazistas.

*  *  *

Ora, tudo isto posto, se de fato Roma foi desmilitarizada, o que deveria fazer o Reich? Em sua resposta para a Irlanda, deveria apelar para o testemunho do próprio Vaticano. Nada lhe seria mais conveniente nem mais fácil do que entender-se previamente com o Núncio em Berlim e o embaixador germânico em Roma, concertando por via diplomática uma nota de Mons. Orsenigo, representante do Sumo Pontífice junto à Wilhelmstrasse, em que este declarasse autorizadamente que a Santa Sé pode noticiar ao mundo inteiro que Roma de fato não está mais ocupada pelos germânicos. Essa declaração, ao mesmo tempo que consolidaria a popularidade germânica em Dublin, teria no mundo inteiro a repercussão mais desairosa para os Aliados. Não penso que a Santa Sé se recusasse a fazê-la. Que melhor meio teria ela para se defender de agressores que a todo custo, e sem nenhum motivo plausível,  persistem em bombardear a Cidade Eterna?

Ora, essa declaração não veio. Não veio e, para maior agravante, o comunicado germânico em resposta ao apelo irlandês afirma duas vezes que o Vaticano está inteirado por via oficial e diplomática da evacuação de Roma. Se o Vaticano está informado por via diplomática daquilo que lhe seria facílimo verificar até por via extra-diplomática, por que se cala? Que resposta deu o Vaticano à comunicação do Reich? Porque o Reich não publica esta resposta? O que significa esse silêncio sobre uma situação que inocenta inteiramente uma das partes e faz recair toda a culpabilidade sobre a outra? Involuntariamente, a nota germânica acabou pondo o Vaticano em má postura perante a opinião irlandesa o que, para católicos, eqüivale a raciocinar ao absurdo. Com efeito, como o Vaticano não pode estar em má postura, os fatos alegados são falsos.

Foi no que deu toda a filáucia nazista no presente caso.

 

A resposta do Sr. Roosevelt

Mas houve mais. No mesmo dia em que se divulgou a nota germânica, o presidente Roosevelt respondeu ao apelo que a S. Excia. enviou o Sr. Eamon De Valera. Eis o telegrama que sobre a atitude do chefe de Estado ianque se publicou na imprensa diária desta capital.

DUBLIN, 19 (R.) - Em resposta ao recente apelo ao governo norte-americano, por parte do Sr. De Valera, no sentido de evitar a destruição de Roma, o presidente Roosevelt assegurou que os Aliados continuarão evitando escrupulosamente causar a destruição de monumentos religiosos e culturais. Na resposta estadunidense, cujo texto foi tornado público hoje nesta capital, o presidente Roosevelt declara o seguinte:

"Isto se aplica tanto a Roma como a outras partes da Itália onde lutam as forças dos Estados Unidos. Temos tentado escrupulosamente, freqüentemente à custa de grandes sacrifícios, poupar da destruição os monumentos religiosos e culturais. E continuaremos procedendo assim. Não obstante, ao apelar para o governo dos Estados Unidos pedindo-lhe que Roma seja salva da destruição, V. Excia. se acha consciente, como é de se supor, que os alemães ocupam com força a capital italiana e estão empregando até o limite de sua capacidade a rede de comunicações e demais vantagens que Roma lhes oferece, no sentido de intensificar suas operações militares. Se as forças alemãs não se entrincheirassem em Roma, não se haveria criado o problema da preservação da cidade.

"Tomei conhecimento de que V. Excia. enviou comunicação semelhante ao governo alemão. O destino de Roma haverá de decidir-se ali".

Como se vê, o Sr. Roosevelt desmente do modo mais formal e categórico as afirmações germânicas. Aí está o Vaticano para dizer a verdade ao mundo. As declarações que ele tem feito até aqui são perfeitamente bilaterais, e afirmam que ambas as partes tinham providências a tomar, e que, portanto, Roma está ocupada. Ninguém duvida da objetividade, da serenidade, da imparcialidade, da coragem do Vaticano.

Apele o Sr. Hitler para o Vaticano e peça-lhe que desminta o Sr. Roosevelt. Exija que o Sr. Roosevelt cumpra a promessa de não bombardear Roma caso os nazistas a desocuparem. Quando falar o Vaticano, creremos na desmilitarização de Roma, sem tergiversar e com a alma transbordante do mais intenso júbilo. E estamos certos de que os Aliados não a alvejarão. Antes disto, é preciso convir que será cedo, muito e muito cedo para crer em fato de tamanha monta, com base na palavra desacreditada de uma chancelaria que tem atrás de si todo um passado de concordatas e tratados violados, e que no próprio ato em que procura escusar-se de qualquer responsabilidade afirma ao mesmo tempo que do ponto de vista cristão católico Roma nada quer dizer para ela. Só do ponto de vista artístico e filantrópico lhe parece que a sede do Papado, a Capital do mundo cristão, merece não ser transformada em um montão de ruínas.