Legionário, N.º 626, 6 de agosto de 1944

Dom Vital

No próximo dia 27 de novembro celebrar-se-á o primeiro centenário do nascimento de D. Vital. Em Pernambuco vai intenso o trabalho para que essa data tenha todo o brilho que merece. Movimentam-se os PP. Capuchinhos, de quem o grande Bispo é a justo título “laetitia, gloria et honorificentia” . A revista “Dom Vital”, órgão da Ordem Terceira de São Francisco, vem há tempo apresentando colaboração fartíssima e de escol, sobre o grande mártir da maçonaria. As Congregações Marianas, a revista “Tradição”, o grupo brilhante de intelectuais que colaboravam na revista  “Fronteiras” sob a direção do Pe. Fernandes e de Manuel Lubambo, todos multiplicam iniciativas e esforços para que o acontecimento mais marcante deste ano seja o centenário de Dom Vital. É preciso que todo o Brasil se associe a esse movimento. Dom Vital não é apenas um grande Bispo de Recife, um ilustre filho do Estado de Pernambuco: Dom Vital é um nome nacional, uma glória do Brasil inteiro. Seu nome é um símbolo, um estandarte, um programa. É ao Brasil inteiro que cumpre celebrar o centenário de Dom Vital. Jackson de Figueiredo restituiu ao primitivo fervor a figura de Dom Vital, já um pouco esquecida quando o grande apóstolo leigo do nordeste iniciou entre nós suas famosas campanhas. Hoje, pelo Brasil inteiro, os admiradores de Dom Vital constituem uma legião. Foi-se o tempo em que era permitido fazer pequeninas e veladas restrições à figura do grande e santo herói pernambucano. Essas reticências manhosas, ditadas pelo espírito de prudência humana, já não têm o menor direito de cidadania no mundo intelectual católico. Não é verdade que Dom Vital “poderia ter sido mais prudente”. Não só não poderia, como não deveria. Di-lo Pio IX na carta em que aprovou por fim toda a sua conduta. Di-lo a verdadeira História. E é nesta afirmação que se congrega o consenso geral de nosso Episcopado. O Exmo. Revmo. Sr. Dom Marcolino Dantas, bispo de Natal e uma das figuras de maior realce do Episcopado Nacional não exprimiu apenas sua opinião, mas o pensamento dominante no Episcopado quando escreveu para a revista “Dom Vital” as seguintes palavras:

“Bispo número 1 do Brasil!

“Inteligente, culto, piedoso e enérgico.

“Claramente iluminado pelo Espírito Santo, tais eram suas decisões acertadas e precisas e as suas atitudes invulgares e corajosas.

“No cumprimento do dever, a sua vida é uma linha reta, não temia nada, enfrentava tudo.

“A festa do seu centenário de nascimento é uma dívida de gratidão do Brasil católico.

“Quando ele for elevado às honras dos altares, com o devido acatamento aos altos juízos da Igreja, a festa tocará, então, ao auge do entusiasmo e sua devoção ganhará o mundo inteiro.

“Sou, sem restrições, seu constante admirador”.

Pela pena do ilustre Bispo de Natal falou a voz oficial da História.

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De um modo geral, nosso público conhece Dom Vital. Mas conhece-o confusamente. Sabem todos que ele foi Bispo de rara valentia, que enfrentou consideráveis perigos para derrotar a maçonaria. Mas a valentia, quando se trata da defesa do bem e da verdade, não é hoje virtude muito apreciada pelas massas. Se Dom Vital fosse apresentado em quadros e retratos acariciando criancinhas, sorrindo para as multidões, abençoando, distribuindo esmolas, atitudes todas elas, aliás, muito próprias de um Bispo,  seria fácil constituir em torno dele um halo de popularidade. Mas o Dom Vital que os quadros apresentam é um Bispo ainda jovem, de traços harmoniosos e fortes, fronte larga e audaciosa, olhar profundo, grave, cintilante de inteligência e energia, longa barba negra e viril, porte nobre e vigoroso. Sente-se nele a fibra do batalhador, do "miles Christi". Tem-se a impressão de que ele fita o Visconde do Rio Branco, ou de que está sentado no banco dos réus cravando o olhar sereno e penetrante no semblante confuso e indeciso de seus juizes, majestoso como se estivesse em seu sólio episcopal. Se é verdade que "christianus alter Christus", a fortiori é verdade que "Episcopus alter Christus". Havia de tudo na adorável fisionomia moral de Nosso Senhor, desde a ternura inefável com que exclamava "deixai vir a mim os pequeninos", ou "tenho pena desta multidão", até a terrível majestade com que prostrava por terra seus adversários, dizendo-lhes simplesmente "sou Eu - Ego sum". Há de tudo na fisionomia moral do Bispo da Santa Igreja, desde a ternura até a severidade pastoral. Mas Nosso Senhor concede a cada um a graça de ilustrar a Igreja pelo brilho de uma faceta espiritual particular. A uns, suscitou para que edificassem a Cristandade pelo esplendor de sua ternura. Foi destes o grande S. Francisco de Salles.

 A outros suscitou para que a defendessem pela pugnacidade e pela energia. Foi destes São Gregório VII, foi destes o nosso grande Dom Vital. Em seu coração havia tesouros de bondade e de ternura. Foi essa bondade, foi esse manancial de ternura que o forçou a levantar-se como um gigante, expondo vida, saúde, tranqüilidade, reputação, perdendo amizades inestimáveis e adquirindo inimizades sem conta, tudo para defender as almas que a maçonaria tragava para o inferno. É um ato de ternura, de autêntica e genuína ternura pastoral, "quebrar os queixos do iníquo e tirar‑lhe a presa dentre os dentes" (Jó, XXIX, 17). Gabava‑se Jó de o ter feito, de ter "livrado o pobre que gritava, e o órfão que não tinha quem o socorresse" (ib,12). Quando Dom Vital ascendeu ao sólio arquiepiscopal de Olinda e Recife, eram muitas as vítimas inocentes que gemiam "nos queixos do iníquo", eram sem conta os "pobres que gritavam, os órfãos que não tinham quem os socorresse". Se Dom Vital tivesse fulminado com excomunhões os autores de tropelias materiais contra viúvas e órfãos, teria os aplausos do Brasil inteiro, e ninguém deixaria de celebrar a caridade que inspirava sua justa severidade. Mas as tropelias não eram materiais e sim morais. Vivemos em uma época de materialismo, que só considera como males os que atingem o corpo. Eram almas, almas imortais e espirituais, remidas pelo Precioso Sangue de Nosso Senhor Jesus Cristo, que se perdiam diariamente nas confrarias maçonizadas. A perda de uma só dessas almas seria mal muito maior do que a extinção do sol, o choque da terra com a lua, ou o desaparecimento da cidade de Recife sob as águas do oceano. Dom Vital seria mil vezes mais cruel se cruzasse os olhos ante essa tragédia espiritual, do que se no conforto de seu palácio cerrasse os ouvidos aos gemidos de viúvas indigentes e de órfãos pedindo pão. Foi para o cumprimento desse grande dever da caridade pastoral, de caridade espiritual, que Dom Vital se ergueu como um gigante no cenário pacato e sonolento da Brasil do século XIX.

Desta caridade, não há símbolos materiais e comovedores. Dar pão aos pobres, é ação que se pode pintar de modo encantador. Não se pode pintar alguém no ato de "quebrar os queixos do iníquo" (Jó, XXIX, 17), sem sangueira, ossos deslocados, dentes esparramados pelo chão. Ora, positivamente, isto não é encantador. Para se compreender que dar pão aos pobres é nobre, justo, louvável, cristão, basta olhar para o quadro que representa a cena. Para se compreender a utilidade da intervenção efetuada nos "queixos do iníquo" pelo homem bom, é preciso pensar longamente. Ora, ninguém gosta hoje de pensar, sobretudo quando se trata de pensar longamente. Não espanta, pois, que atos de caridade como os de Dom Vital sejam cada vez menos compreendidos pela massa.

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Nisto, precisamente nisto, está a meu ver um dos aspectos mais providenciais da missão de Dom Vital. Seu grande exemplo mostra que a alma vale mais que o corpo, e que é forçoso fazer, para a defender dos adversários, mais do que se faz pelo corpo. Seu grande exemplo mostra que se todo o coração verdadeiramente cristão deve preferir sempre a concórdia à luta, a brandura à pugnacidade, a conciliação ao conflito, há casos em que a luta é um dever, o conflito uma necessidade, a pugnacidade uma virtude sem a qual se cai em pecado mortal. Seu grande exemplo mostra que o dever se deve cumprir sem covardia, nem diminuição, nem vacilação, e que, pelo contrário, se deve caminhar, caminhar com passo de gigante, caminhar até a última e mais áspera culminância no cumprimento do dever. Que a alma vale tanto, que em defendê-la toda a valentia é pouca, toda a energia bem empregada, todos os meios lícitos de resistência louváveis. Que se deve ir aos extremos, no cumprimento do dever, como Nosso Senhor, que não renunciou à Cruz na via da amargura, mas que a levou santamente até o Calvário, sobre ela se deitou voluntariamente, nela se deixou voluntariamente cravar, e nela morreu porque quis, até o fim cumprir o dever, obedecer à vontade do Pai.

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O Século XIX aplaudiu Renan, e o Cristo edulcorado que suas obras ímpias descrevem. Sei de um católico (?!) que faz leitura espiritual em Renan, achando que esse grande inimigo de Jesus Cristo pintou melhor o Mestre do que o pintaram os doutores da Igreja. A resposta a esta deformação ímpia da adorável Pessoa de Nosso Senhor, deu-a a Providência no próprio século XIX, suscitando nos rincões dessa orla do mundo que era a América Latina, de então, um Pastor segundo o Coração de Jesus, fiel e límpido reflexo do Bom Pastor, que sabe discernir e expulsar o lobo voraz, que sabe dar a vida por suas ovelhas.

Dom Vital é uma réplica do Espírito Santo a Renan. Não foi sem um grande e profundo desígnio que essa réplica foi dada no Brasil.