Legionário, N.º 626, 3 de setembro de 1944

Dom Vital - IV

Retomamos hoje a série de artigos que vínhamos escrevendo sobre a "questão religiosa" que explodiu no "segundo império" brasileiro, em conseqüência de um conflito que se travou entre Dom Vital e a maçonaria de início; entre Dom Vital e o Estado no fim.

Em artigos anteriores, mostramos que a presença de irmãos maçonizados no seio das confrarias constituía grave irregularidade de um duplo ponto de vista:

1. Jurídico: os maçons estavam excomungados por Pio IX, e seria escandaloso conservá-los em associações destinadas não só a católicos, mas a católicos de escol. O Bispo que em tal consentisse, se declarava em revolta aberta contra a Santa Sé.

2. Religioso: a Igreja não poderia consentir que as associações por Ela constituídas para afervorar os fiéis e os atirar nas santas pugnas do apostolado, estivessem densamente povoadas de elementos pertencentes precisamente a uma organização que tem por fim o extermínio do Catolicismo.

Por uma e outra razão, Dom Vital era obrigado a fazer cessar esta gravíssima situação. Entretanto, as dificuldades mais terríveis cercavam de todos os lados o jovem Prelado:

1 - a maçonaria tinha no Brasil uma imensa influência, e fazia consistir sua tática de predileção em ocultar seu caráter anticatólico, o que conseguia, sobretudo, inscrevendo em seu grêmio Sacerdotes mais ou menos iludidos sobre as verdadeiras finalidades da seita;

2 - qualquer atitude que implicasse em uma separação de campos entre maçons e católicos desalojaria a maçonaria de sua posição predileta, que é a ambigüidade intencional, pertinaz, opaca, e despertaria contra o Bispo de Olinda terrível oposição;

3 - a opinião religiosa do tempo estava inteiramente desaparelhada para a luta, em virtude do cediço preconceito de que qualquer atitude pugnaz é contrária à caridade cristã, e só os "panos quentes" representam dignamente a estratégia política de católicos autenticamente caridosos;

4 - o governo imperial não tardaria em se imiscuir no problema, para proteger a maçonaria contra o heróico Pontífice olindense.

Era este último aspecto do problema, que nos faltava ventilar. Examinemo-lo, melhor.

* * *

Toda a vida político-religiosa do Brasil se desenvolvia, então, sob o signo da ambigüidade. Formados segundo as tradições lusitanas da monarquia cristã e orgânica, os brasileiros ainda continuavam, no fundo de seus corações, profundamente apegados ao altar e ao trono. Só este apego pode explicar, em última análise, que o Brasil tenha passado a terrível crise da Menoridade sem perder a um tempo sua Fé católica e suas instituições monárquicas. A Menoridade foi, para o Catolicismo, um período de riscos terríveis. O galicanismo, o jansenismo, grassaram sem conta nem medida entre nós. O liberalismo invadira as fileiras do Clero. E, entretanto, a despeito de tudo isto, a despeito da situação precaríssima em que Feijó - precisamente um Padre! - deixou nossas relações com a Santa Sé, o Brasil continuou, graças a Deus, unido a Roma. Para as instituições monárquicas, o risco não foi menor. As revoluções mais ou menos republicanas e separatistas se sucederam ininterruptas, e só não alcançaram resultado, porque representavam muito mais a opinião de minorias ativas e empreendedoras, do que o sentir geral da população, profundamente apegada ao Menino-Imperador. Assim, pois, a massa da população desejava a um tempo que o Brasil continuasse católico e monárquico. E, na aparência, éramos uma monarquia com imperador exercendo suas funções "por graça de Deus e unânime aclamação dos povos", uma monarquia católica, em que a Religião Católica era a única oficial, em que só se admitia o casamento religioso, em que se ministrava ensino religioso nas escolas públicas, em que as tropas tinham ordem de se ajoelhar à passagem do Santíssimo Sacramento, em que só católicos eram elegíveis para as altas magistraturas públicas. A realidade, porém, era muito menos nítida, muito mais ambígua do que essas ilusórias aparências. O Brasil era uma monarquia de meias tintas, muito mais uma república coroada do que uma monarquia genuína. O imperador era, por sua estrutura de espírito, muito mais um filho das ideologias de 1789, do que um discípulo de Metternich, um entusiasta da Santa Aliança. E pelo mesmo diapasão afinavam todos os chefes dos dois grandes partidos monarquistas do Brasil, o Liberal e o Conservador. Seriamente analisadas, as convicções políticas dos estadistas do império, os próprios princípios doutrinários da Constituição Imperial, teriam como conseqüência lógica, não a Monarquia mas a República.

O mesmo se dava em relação à posição religiosa das leis e dos estadistas do "Segundo Império".

Católico à primeira vista, o Brasil era governado por dois grandes partidos cujos chefes pertenciam, quase todos, à maçonaria. As lojas maçônicas proliferavam em todo o país, com a mais funda influência no curso dos acontecimentos políticos. A direção dos negócios públicos estava, pois, confiada a homens que, nos termos da legislação vigente, prestavam juramento de defender a Religião ao se empossarem dos cargos públicos... e, no silêncio das lojas, conspiravam contra a Igreja. Assim, todas as exterioridades católicas de nossa legislação eram meras aparências. Nada exprime melhor o desleixo com que estas aparências se guardavam, do que um pequeno fato narrado pelo Senador Cândido Mendes de Almeida: em grande número de municípios, o exemplar dos Santos Evangelhos sobre que prestavam juramento os altos funcionários municipais era... de edição protestante! Não era possível perseguir por meios legais a maçonaria: "todas as opiniões tinham o direito de se manifestar". Isto não obstante, quando se quis constituir uma organização católica de caráter eleitoral o governo a proibiu: para que essa organização, se os católicos já tinham tudo, se a igreja era unida ao Estado? Em outros termos, a maçonaria podia trabalhar à vontade, enquanto aos católicos era vedado interferir na vida cívica para defesa de seus direitos. Esse o País em que a Religião Católica era oficial! Como se vê, ambigüidade maior não era possível.

Essa ambigüidade existia sobretudo em um dos pontos mais graves das relações entre a Igreja e o Estado, isto é, na famosa questão do "placet". Sendo a Igreja infalível em matéria de Fé e de costumes, é evidente que todos os seus filhos lhe devem acatar com respeito a suprema autoridade. Assim, nada de mais contrário à autoridade da Igreja do que pretender alguém, que tem o direito de aceitar ou recusar algum ensinamento da Santa Sé, que pode livremente julgar da oportunidade de se pôr em execução ou não alguma ordem emanada de Roma. A união a Roma é o signo distintivo da catolicidade dos indivíduos como das nações. Não há, para vida espiritual de um povo, peste mais mortífera do que qualquer espécie de alheamento em relação a Roma, qualquer obstáculo no exercício do Supremo Magistério da Igreja sobre todos e cada um dos fiéis. Ora, o Governo imperial, herdeiro das tradições pombalinas da última fase da monarquia lusa, pretendia precisamente este absurdo: nenhum documento pontifício pode ser divulgado no Brasil sem o “placet”, a aprovação da Coroa.

Em outros termos, a Coroa entenda-se não só o imperador, mas o Conselho de Estado, mas o Parlamento, mas a imprensa, mas a opinião pública se arrogava o direito de aceitar ou recusar algum ensinamento do Papa, dar ou negar obediência a alguma ordem proveniente de Roma.

Em outros termos ainda, a conseqüência era clara: o Estado brasileiro, oficialmente católico, se reservava o direito de praticar o "livre exame" protestante em relação aos atos emanados da Autoridade Pontifícia.

Maior contradição, mais flagrante ambigüidade de atitude não pode haver.

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Como veremos, essa ambigüidade atuou toda ela em detrimento da Igreja. A Coroa recusara seu "placet" às bulas papais que condenavam a maçonaria. Por outro lado, como governo católico que era, pretendia ter jurisdição sobre os dignitários eclesiásticos - outra aberração tão grande quanto o “placet. E por isto, quando Dom Vital excomungou os maçons, o governo imperial, por via privada de início, de modo público por fim, intimou Dom Vital a que revogasse seu ato. Dom Vital estava, pois, com mais um inimigo diante de si, e este tremendo: o Governo Imperial. Se Dom Vital obedecesse ao governo, trairia seu dever de Bispo e se insurgiria contra Roma. Se, pelo contrário, desobedecesse ao governo, seria ele preso e processado. Seu processo eqüivaleria a um escândalo imenso, a uma colisão pública e formal entre o governo imperial e o Episcopado Nacional.

Foi diante destas perspectivas que Dom Vital iniciou a luta. Como veremos, dois terríveis inimigos se conjugaram para o arrastar pela via da amargura, para o levar ao alto do Gólgota, para lhe impor uma terrível tortura: a maçonaria com suas armas políticas multiplicadas, e os católicos acomodatícios e "caridosos", capazes, como sempre, de todas as intolerâncias, de todos os excessos de zelo, de todo o fanatismo e de toda a injustiça contra aqueles a quem eles acusam de... intolerância, excesso de zelo, fanatismo na defesa dos direitos da Igreja de Deus.