Legionário, N.º 634, 1º de outubro de 1944

A OBRA-SÍMBOLO

Chegados a outubro, entramos no mês marcado por Dom Carlos Carmelo de Vasconcelos Mota para sua chegada a nossa cidade.

Interrompo, pois, mais uma vez a série de artigos que vinha escrevendo a respeito de Dom Vital, para entreter sobre o novo Arcebispo de São Paulo os leitores do LEGIONÁRIO. Faço-o certo de me conformar assim à ordem natural das coisas. Dom Vital, que tem com São Paulo laços históricos e afetivos especiais, não é figura estranha ao meu assunto de hoje. Foi aqui que ele viveu, como professor do Seminário, os anos mais recolhidos, mais obscuros, mais felizes, portanto, de sua vida religiosa e sacerdotal. Antes de o elevar ao duplo esplendor do Episcopado e do martírio, quis a Providência que ele depositasse no coração dos neo-levitas desta terra a semente do entusiasmo e da intrepidez que aqueles tempos dificultosos exigiam. Formando Sacerdotes, prestou Dom Vital uma contribuição profunda para a formação da própria alma do povo paulista. E, ao mesmo tempo, foi na bem-aventurada tranqüilidade de nosso ambiente provinciano de antanho que ele represou energias, temperou forças, entesourou graças para arcar com a grande cruz que era sua missão carregar até o alto do Calvário. Quem poderá contar as cogitações de Dom Vital, durante os anos que passou entre nós?

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Frei Felix de Olívola, O.F.M., publicou há pouco uma esplêndida compilação de todos os escritos de Dom Vital. Neles se vê claramente que a conduta por este mantida durante a "questão religiosa" não resultou de circunstâncias de momento. Dom Vital ascendeu ao sólio olindense trazendo consigo observações profundas e sistematizadas sobre a vida religiosa do Brasil, e sobre os meios necessários para dar remédio a nossos terríveis problemas, de todo um arcabouço de idéias pré-adquiridas em função das quais agiu. Foi em São Paulo, nos poucos anos de vida de estudos e contemplação que lhe restavam, que este sistema de idéias chegou à sua completa maturação. Foi, pois, em fundas meditações, ao longo de nossos dias de sol ou de garoa, no recolhimento propício de nossas manhãs cheias de neblina, que Dom Vital se preparou para a grande imolação. Os céus e terras de São Paulo se ligaram, assim, em seu espírito, aos problemas que entre nós meditou. Que reflexões terá ele feito sobre a impiedade macia, diluída, silenciosa, que como um incessante e imponderável chuvisco descia sobre o Brasil, estendendo-se a tudo, embebendo tudo, atingindo até a medula, precisamente como nosso chuvisco, as próprias pessoas que dele se esquivam? Quando as neblinas da manhã cobriam com sua massa leitosa as cercanias do velho Seminário, e a rajada gélida do vento paulista nela desenhava mil figuras ameaçadoras e fantásticas, que mudavam de forma e lugar a cada nova direção dos ventos, em que lutas, em que duelos com hidras e demônios não pensaria o apóstolo ardente e realista que auscultava a ação maçônica diligente, febril, impetuosa, que se disfarçava sob as aparências de nossa vida provinciana tão pachorrenta? Terá ele levado de São Paulo recordações ainda mais profundas? Deus dá em geral aos que predestina às grandes dores, a preparação viática de certas delícias espirituais, que são um antegozo do Paraíso. A sua estadia em São Paulo terá ficado ligada nas recordações de Dom Vital, a algum desses inefáveis e excepcionais dias de graça? Se as paredes da velha capela do Seminário pudessem falar, quem sabe se elas nos mostrariam alguma cena clássica da Hagiografia... no silêncio da noite, nas trevas indecisas que o brilho frouxo da lamparina não conseguia vencer, divisaríamos talvez Dom Vital orando, com o rosto incendido de ardor, com toda a musculatura retesada pela indignação de seu zelo abrasador, braços estendidos ao Sacrário, pedindo a Deus que vingasse a sua Igreja traída e humilhada, que se levantasse por fim, e não parecesse mais dormir sobre os pecados do Brasil... O Sacrário parecia continuar mudo, a justiça de Deus inexorável, e então Dom Vital adiantando-se, faria sua grande imolação. Seria ele mesmo a vítima por estes pecados que não alcançavam perdão. Que se esgotasse sobre sua carne, seu sangue, todas as fibras de sua alma, a exigência santa e implacável daquela justiça que não queria ceder. Que a misericórdia de Deus se contentasse por fim com a oblação inocente dessa vítima sacerdotal de agradável odor. Algo lhe dizia ao coração que tinha sido ouvido. Estava selado como um pacto o destino de Dom Vital. E com ele o destino religioso do Brasil. Quem sabe se foi entre nós que se deu essa cena decisiva? Não o sabemos. O certo é que Dom Vital estimou São Paulo, e aqui foi estimado. Fez relações. E em São Paulo quis receber a unção que o elevaria à plenitude do Sacerdócio. Foi aqui, pois, que se consumou sua formação para a luta, com as unções sagradas que o investiam na missão de lutar e morrer pelo rebanho do Senhor. Uma velha dama de minha família, já falecida, contou-me com saudades a cena que ainda tinha impressa na retina. Terminara a longa cerimônia da sagração. No largo da Sé, comprimia-se a multidão. Estavam abertas de par em par as portas da vetusta e pequena catedral, e por elas saía o jovem Bispo. Parou por um instante, e olhou o povo genuflexo. Depois, abençoou-o "com suas mãos muito brancas e muito belas", dizia a velha dama. Estava terminada a preparação. Pouco depois, São Paulo fazia em favor do Norte o sacrifício de se privar de Dom Vital, que encetava as vias de sua vocação histórica. Ora, é precisamente no ano centenário de seu nascimento que nos vem como um mensageiro ou um presente de Dom Vital nosso terceiro Arcebispo. A coincidência é cheia de simbolismo. Aqui se preparou para ir ao Norte o Bispo que foi por excelência o homem da destra de Deus no Brasil de então. Neste ano centenário o Norte nos retribui o dom, separando-se em nosso favor do Arcebispo que, depois de uma longa e fecunda preparação, o "Espírito Santo pôs para reger a Igreja de Deus" em São Paulo. É aqui, pois, com o coração cheio de filial e afetuosa expectativa que o vemos refazer em sentido inverso a trajetória de Dom Vital. Acompanhamos seu caminho com olhos desvelados de filho, fazendo nossa a prece que se lê no brasão de Dom Vital "Iter para tutum", preparai um bom caminho.

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O novo Arcebispo concedeu ao "Correio Paulistano" uma entrevista que nos serve para conhecer a fundo os anseios de seu coração de Pastor. Não nos enganamos dizendo que seu Pontificado em São Paulo será o desenvolvimento ao mesmo tempo original e harmonioso das realizações de Dom Duarte e dos triunfos de Dom José.

Disse-o ele mesmo em expressos termos, e, enunciando os principais itens do que em linguagem corrente se chamaria seu "programa", delineou planos que constituem a marcha segura da Arquidiocese para a plenitude a que a vêm acompanhando as graças de Deus recebidas nos anos anteriores. Dom Carlos Carmelo se revela nessa entrevista um verdadeiro continuador, no sentido mais nobre do termo, que não é só conservar, mas construir, caminhar, inovar com forças e luzes próprias, com brilho e valor próprio, sem quebra com o passado, mas em íntima e sábia harmonia com ele.

Para começar pelo que há de mais tangível, Dom Carlos Carmelo enuncia um projeto que alguns chamariam talvez audacioso, e que o seria realmente se não fosse tão generoso e entusiástico o povo de São Paulo. Nosso novo Arcebispo lembrado do bicentenário da Arquidiocese, em 1946 quer que, até essa data, se tenha chegado a um resultado "decisivo" para a construção da Catedral. Nas obras do grande templo estão perpetuadas as esperanças, a ousadia, a energia de ferro de Dom Duarte, a atividade transbordante e vitoriosa de Dom José, os sacrifícios omnímodos dos fiéis, que para ela têm concorrido. A Catedral é, pois, em si mesma um símbolo. Quis a Providência que Dom Duarte, apóstolo de ferro, assumisse a parte psicologicamente mais ingrata da tarefa, arrostando as dificuldades que a localização das obras acarretou, consumindo esforços e recursos sem conta, para rasgar o solo, consolidar os fundamentos, lançar os alicerces  até que, num trabalho obscuro, que o povo não via, não compreendia, sobre cuja lentidão resmungava, se erguessem aos poucos os primeiros muros. Depois, tudo parecia ter parado. Os anos se escoavam, o mundo se ia mudando, duas coisas apenas pareciam conservar-se inalteradas: D. Duarte, sempre hierático, sempre edificante, sempre monolítico, e os muros da Catedral... sempre do mesmo tamanho. Dom Duarte parecia não notar o fato, parecia não ouvir as murmurações. Interpelado, respondia em poucas palavras concisas: é preciso fazer trabalho sério, é preciso cavar a cripta, decorar o prédio, esculpir o granito e colocar desde já os ornamentos nas partes construídas. Fazer, em suma, obra definitiva. E quem não entendesse não recebia maiores explicações. Não tinha o Arcebispo aprovado tudo? Então estava bem. Para que perguntar mais? Toda esta parte ingrata e por assim dizer invisível do trabalho estava terminada quando o grande e santo Dom Duarte morreu. Importava, agora, altear as paredes, tanto e tanto que nascesse a esperança do dia breve em que se lhes colocasse a cúpula. Para isto, era necessário que alguém arrastasse a opinião em um grande movimento. A simpatia radiosa de Dom José, a habilidade verdadeiramente incomparável com que sabia comover e orientar a massa, era bem a vara de condão que arrastaria atrás de si toda São Paulo, para a realização da obra grandiosa. E, com efeito, graças aos labores fecundos do jovem Arcebispo, a Catedral foi crescendo como uma grande semente de granito plantada pelas mãos fortes de D. Duarte; mãos bem dignas, com efeito, de plantar granito!  Como hastes espigadas, ergueram-se as colunas. A pedra floresceu em rosáceas. Vitrais novos, como grandes pétalas de cor, começaram a encher e remediar a desolação das janelas vazias. A esta altura, morre Dom José. Mas, do Norte nos vem, trazido pela mão de Pio XII, com a fama de um grande condutor de homens, o sucessor de D. José e D. Duarte. E do que nos fala no primeiro documento em que o público de São Paulo ouve sua voz de Pastor? Na construção da Catedral. Símbolo tangível e poderoso de continuidade fecunda, porque continuar uma construção é criar e conservar, fazer coisa original e nova, com raiz do passado. Sua vocação consiste na tarefa heróica, na obra santamente hercúlea de continuar, de acrescer, de inovar com a riqueza de seus talentos, para que chegue à sua perfeição a obra que a Providência encaminhou pela mão de seus  antecessores. E, quando no portal já concluído da nova Catedral, nas festas centenárias de 1946, passar a veneranda e imponente figura do nosso terceiro Arcebispo as arcadas ogivais da obra-símbolo de seus antecessores, levada por ele a termo; quando esse Bispo nascido junto aos pagos de Dom José, que tem o vulto venerando de Dom Duarte e que nos vem daquele Norte que Dom Vital demandou ao deixar-nos, abençoar a multidão genuflexa no Largo da Sé, por certo muito historiador pensará na vetusta Catedral de outrora, no Bispo jovem que em uma manhã de festa abençoava o povo genuflexo, e verá na repetição da cena uma reafirmação pujante e radiosa da santa continuidade da Igreja de Deus.

E, por isto, mostremos também nós que São Paulo é sempre São Paulo, sempre generoso, sempre cavalheiresco, sempre empreendedor. Dom Carlos Carmelo de Vasconcelos Mota começa suas atividades com um fidalgo ato de confiança no coração paulista. Ele não tem receio de o emprazar para uma grande realização. Devemos estar à altura desta confiança que repousa sobre nós, serena e ufana como uma confiança de pai jubiloso pelas qualidades dos filhos.  E, desde já, preparemo-nos para abrir nossas arcas com a generosidade de quem abre corações, delas tirando todos os recursos que a carinhosa e lisonjeira expectativa de Dom Carlos Carmelo aguarda de nós. À primeira voz de comando  pastoral deve corresponder a primeira continência, o primeiro "presente" do paulista fiel. São Paulo todo deve vibrar, vibrará por certo, como um só homem, para responder desde já ao novo Pastor: Estamos aos seus pés, presentes para o grato dever, que é a construção da nova Catedral.