Legionário, N.º 696, 9 de dezembro de 1945

Durante as apurações

A volubilidade não consiste só em mudar de opinião, mas em passar frivolamente de um problema para outro, sem resolver seriamente a nenhum. De ambas estas formas de volubilidade sofre hoje a opinião pública. Habituada pela imprensa sensacionalista a viver em presença de acontecimentos berrantes e inesperados, desde um incêndio em Hollywood a um discurso de Churchill, ao aparecimento de um monstro marinho no litoral argentino, a humanidade parece ter perdido sua aptidão gustativa para tudo o que não é de "última hora".

Os acontecimentos murcham e se tornam velhos mais depressa que as famosas flores do poeta que, bem ou mal, duravam pelo menos "l'espace d'un matin". Um fato qualquer coloca diante de nossos olhos um problema. Ele nos assusta, nos preocupa, parece-nos que não poderemos viver tranqüilos enquanto não o resolvermos. Daí a pouco, uma ocorrência fortuita nos coloca diante de outra questão qualquer. Absorvemo-nos nela, como se a primeira nunca tivesse existido... e como se os inconvenientes que prevíramos nunca mais se houvessem de realizar. Só acordamos no segundo, terceiro ou quinto problema, para nos lembrarmos do primeiro, quando sofrermos a ação inexorável das causas que deveríamos ter removido a tempo.

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Tudo isto vem a propósito de nosso último artigo de fundo.

Estamos certos de que, se apresentássemos hoje um artigo comentando as apurações, e lançando conjeturas seríamos avidamente lidos. Mas, em última análise, do que serviria este artigo? No dia em que escrevo, os resultados da apuração são ainda imprecisos quanto à posição religiosa da futura Câmara, única coisa que realmente nos interessa do ponto de vista católico, em todo o barulho eleitoral. Qualquer comentário seria, pois, ocioso e daria apenas alimento a uma curiosidade igualmente ociosa.

Como o "Legionário" não faz sensacionalismo, deixemos de lado este tema ainda prematuro, e voltemos ao artigo de há uma semana atrás.

Uma semana! Como já parece distante de nós aquele domingo de eleições, depois de seis dias vibrantes, de expectativa e ansiedade! Mas o problema de que tratamos não prescreveu em uma semana. Ele continua de pé, e de pé ficará enquanto tivermos esta lei eleitoral. Voltemos, pois, a ele.

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De um certo modo, as apurações vieram mesmo dar atualidade maior ao problema criado para nós pela lei eleitoral vigente. Com efeito, ao menos em certas camadas, o resultado do pleito está causando surpresa. Não se esperava, por exemplo, que o Partido Trabalhista tivesse tantos votos. Esperava-se para os partidos de X ou Y dosagem eleitoral diversa. Esses e outros partidos começam a esboçar tendências ideológicas ainda imprecisas, mas que já se vão enquadrando na classificação de direita-esquerda. Tudo bem pesado e medido, pode-se considerar que em um país que sai de um jejum eleitoral de 15 anos, a primeira digestão cívica não é muito normal. Feito o quadro geral da votação, ratificá-lo-á o Brasil? Sim? Não?

A resposta a esta pergunta palpitante se encontrará, por certo, nas urnas das eleições estaduais. O que será do centro? O que da direita? O que da esquerda? Reconsiderado pelo próprio Brasil o seu primeiro pronunciamento eleitoral, como agirá ele? Quem sabe se declinarão as extremas, e o país optará por uma democracia centrista? Quem sabe se, pelo contrário, uma ou outra, ou ambas as extremas se desenvolverão?

As eleições estaduais deverão realizar-se em Maio. Até lá, o Parlamento, reunido em Assembléia Constituinte, já terá iniciado seus debates. Os comunistas, os católicos, tantos outros já terão começado a se mover. Um pronunciamento das urnas em pleno processo constituinte significará por certo a aprovação ou reprovação, pelos respectivos eleitores do que fizerem as várias correntes, e influirá a fundo sobre a atitude do legislativo federal.

Tudo isto posto e pesado, devemos entender que as eleições de domingo passado não constituem uma batalha inteira e acabada, mas apenas a primeira etapa de um processo de pronunciamento público realmente bipartite. O voto depositado pela nação nas urnas produzirá seu fruto na Constituinte. A este fruto o povo dirá sim ou dirá não, nas eleições estaduais. Aí é que se saberá realmente o que quer o Brasil. O definitivo não é o que ficou decidido domingo passado. É o que decidiremos em Maio.

A obra de domingo passado está para a de Maio, como a "maquette" para a estátua definida.

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Isto posto, e qualquer que seja o resultado destas eleições, o problema continuará para nós, enquanto continuar a lei eleitoral. E este problema é que, feita a lei como está, se votarmos em um candidato católico, teremos de votar, novamente, em toda a borra que se lhes seguir na lista partidária.

Comunistas, socialistas, espíritas, bígamos, ministros protestantes, a fina flor da heresia, da revolta ou da malandragem subirá à Câmara estadual com nosso concurso, impelida para o alto pelos votos católicos, queiramos ou não. Nossos votos farão subir candidatos excelentes - e é o que felizmente parece sucederá em relação a algumas legendas já neste pleito - mas estes candidatos, na sua "nacelle" eleitoral levarão consigo, presos, pendurados aos pés, suspensos pelos católicos e só pelos católicos sobre o pélago da derrota, candidatos que, na Câmara, se propõem fazer precisamente o oposto do que desejamos.

Por que isto? A razão é clara. A lei eleitoral vigente limitou-se a adaptar ligeiramente às condições presentes a lei parlamentar de 1935. Segundo essa lei, quem vota em um candidato vota em todos da mesma legenda. A escolha é impossível.

E se não podemos escolher, pergunto: somos livres, nós, católicos?

Suponhamos que um homem entra em uma confeitaria, e ali vê vários pratos, contendo cada qual grande número de alimentos diversos. Em todos os pratos há algo de excelente para comer, ao lado de muita farinha insípida, e alguns grãos de estriquinina. Agora, pergunta-se: se somos obrigados a comer de um dos pratos, e de nenhum modo nos podemos abster disto; se por outro lado, comendo um prato teremos de comer necessariamente todo o seu conteúdo, e portanto, também os grãos de estriquinina que em cada qual se encontram; neste caso, somos verdadeiramente livres? Livres por quê, ou no quê? Em escolher qual o prato no qual havemos de comer a estriquinina?

É este o caso da lei eleitoral que nos rege. Alguém, no Parlamento de 1935, propôs esta lei. Foi ela aprovada sem protesto dos católicos, que parecem não ter advertido no inconveniente que ela trazia. Sobre ela correram os 10 anos seguintes e o tema, retocado, foi posto em vigor em 1945. Continuaremos a dormir ainda, quando a experiência mais tangível e vibrante já nos mostrou aquilo que até aqui não víamos?

É explicável que não se tenha percebido o inconveniente da lei em 35. Será explicável que se continue nesta conformidade depois da formidável experiência de 45?