Legionário, no 703, 27 de janeiro de 1946

DEMOCRACIA FRUSTRADA

Continuamos em nossa campanha contra a última lei eleitoral. Retirou-se aos brasileiros o direito de escolher seus representantes. Só o que se lhes deixou foi a faculdade de optar entre os programas dos vários partidos. É possível que isto seja suficiente para efetuar uma autêntica democracia em países muito diferentes do nosso. No Brasil, porém, os partidos políticos se têm mostrado inteiramente incapazes de arcar com a responsabilidade que a nova lei lhes impõe. A linha demarcatória entre eles não é de ideais, mas de pessoas, ao menos na generalidade dos casos. E, por isto, eles são radicalmente inoperantes para o fim que a nova lei eleitoral tem em vista.

O Legionário seria, talvez, um pouco suspeito para afirmar a preponderância dos motivos pessoais nas nossas organizações partidárias. Melhor é que ela apareça retratada pela pena de um jornalistas brilhante e que, seja dito de passagem, está em quadrante ideológico bem diverso do nosso. É o Sr. Vivaldo Coaracy, um dos melhores jornalistas contemporâneos, colaborador do "Estado de S. Paulo", em cujas colunas costuma assinar "V. Cy.". Demos a palavra a V. Cy.:

"Neste nosso Brasil, sempre muito original e peculiar, não há nada mais parecido com o programa de um partido político do que o programa do partido adverso. Muito engraçado enquanto a gente não procura analisar o que há por baixo deste fato interessante. Quando procedemos a esse exame, já a esquisitice nos parece ter menos graça". Feita a análise da "esquisitice", V. Cy. prossegue: "A verdade é que, em nosso ambiente, programas partidários são simples enfeites, peninhas ou fitinhas coloridas e supérfluas a que ninguém liga grande importância. Quando se organiza um partido em torno de uma ou mais personalidades, há sempre um sujeito importuno que lembra o programa. Os outros reconhecem de má vontade: "Ah! É verdade. Precisamos de um programa". O processo mais fácil é copiar os pontos capitais doutro partido já existente, com a substituição de alguns sinônimos e tempero de várias frases feitas, idéias gerais sobre democracia, liberdade, representação etc., colhidas no poeirento guarda-móveis da oratória dos comícios. Cumprida esta formalidade, ninguém mais se preocupa com o programa. O que interessa são as pessoas". Entre outros exemplos, V. Cy. dá este, muito bem escolhido: "Quando o Sr. Prestes andou catando por aí um candidato atômico para o seu Partido Comunista do Brasil, o apetitoso lugar de Presidente da República foi oferecido a uns cinco ou seis cavalheiros pelo menos. É sabido com certeza que dois aceitaram a candidatura, - o professor Luis Carpenter e o engenheiro Fiuza. Não é menos sabido, porém, que nenhum de ambos ia ou vai à missa marxista-leninista. Pelas suas próprias declarações, não trepidaram, entretanto, em aceitar gostosamente a candidatura por um dos poucos partidos que têm programa mais ou menos definido. É que essa questão de programas partidários no Brasil não tem a mínima importância e não obriga a ninguém. É só para inglês ver".

O quadro não poderia estar traçado com mais fidelidade, e, diríamos também, com mais perfeita graça, se não tivéssemos esbarrado com a expressão "missa marxista-leninista", a horas tantas da exposição.

Diz muito bem V. Cy.: os programas de nossos partidos são, a bem dizer, iguais.

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Não haveria o que melhor pudesse confirmar estas palavras do que as notícias da imprensa sobre os passos preparatórios para a articulação das várias bancadas na Assembléia Constituinte. A política nacional está uma verdadeira Babel de brigas, mútuas descomponendas, e incerteza de rumos. Todos querem coisas opostas entre si e ninguém se entende. Paralelamente a esta confusão política, está sendo tranqüilamente articulada a votação rápida de uma Constituição. Neste ponto, parece que todos se entendem com a máxima facilidade.

Em outros termos: grande afinidade ideológica entre os vários grupos, e irremediáveis dissensões pessoais. É este o quadro que temos diante dos olhos. No terreno todo ideológico da feitura de uma Carta nova, é fácil conciliar os ânimos. No terreno pessoal, da composição do novo Governo, da distribuição dos vários cargos públicos, da designação da mesa diretora dos trabalhos legislativos, uma Babel. Resumindo: muitos homens, poucas idéias.

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E agora vamos ao cerne de nosso assunto.

Os partidos fazem os programas, e os submetem à apreciação popular. Mas, como os programas são mais ou menos iguais, este direito popular à apreciação de nada vale.

Os partidos fazem as chapas, mas estas não são sujeitas à apreciação popular.

O que fica, pois, da democracia?

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Acabamos de ver que quase todos os programas partidários são iguais, e, o que é mais significativo, vimos mesmo que um partido político de coloração doutrinária tão carregada quanto o PCB não faz lá muito caso de seu programa, quando trata de escolher candidatos.

Se um eleitor não tem motivos para optar entre um partido ou outro por motivos ideológicos, qual seu movimento natural? De fazer uma chapa com os nomes que lhe parecem melhores em todos os partidos.

Foi exatamente este direito que se nos roubou nesta alvorada da democracia.

Todo o povo tem o governo que merece. Até certo ponto, esta máxima é verdadeira. Se tolerarmos esta lei, é porque realmente não merecemos coisa melhor.