Legionário, Nº 734, 1º de setembro de 1946

O Cardeal Cerejeira e a Universidade Católica

Todos os homens são governados: poucos sabem precisamente quem os governa. Para o analfabeto, o governo se encarna inteiramente nos agentes mais subalternos do Poder, no Juiz de Paz, no sub-delegado, no inspetor de trânsito ou no meirinho. Eles são símbolos vivos do Estado, por cima ou por detrás dos quais se confundem numa auréola imprecisa e quase irreal as figuras demiúrgicas dos altos governantes. O homem de instrução primária fita essa auréola sem se deslumbrar e discerne melhor os personagens de categoria, nos quais a idéia de Estado e de Governo se encarna. Só o súdito de horizontes um pouco mais largos chega a perceber que, por detrás dos governantes, existe a lei, o Direito, a ordem natural, forças invisíveis e imponderáveis, a que toca entretanto a mais alta parcela do verdadeiro poder. Mas, é forçoso dizer, poucos são os que transcendem desta esfera comum, para discernir a influência das várias forças sociais no governo dos homens. Sabe-se, por exemplo, de modo impreciso, que o dinheiro é o nervo de muitos acontecimentos. Poucos, porém, seriam os que lhe poderiam apontar concretamente as artimanhas e manejos. À medida que se sobe na escala de cultura, as noções sobre o governo vão - é óbvio - tornando-se menos pessoais, mais genéricas, ricas e precisas. Mas serão pouquíssimos os que possam atinar com a verdade fundamental. Para a descobrir, não basta inteligência nem cultura. É preciso algo incomparavelmente mais precioso: bom senso, e o que o bom senso ensina é que os homens são governados por forças mais ativas e subtis do que a espada ou mesmo o ouro. Diga-se o que se disser, o mundo sempre foi e será sempre governado pelas idéias.

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Não me refiro, é claro, só à influência do pensamento das esferas da alta intelectualidade. Enganam-se os observadores superficiais que julgam que o mundo de hoje escapou ao domínio dos pensadores profundos, porque os in-folios destes se cobrem por vezes de poeira, ignorados e obscuros, nas prateleiras de certas bibliotecas. A glória do intelectual é que ele domina até quando parece não dominar. Obedecem-lhe os que nunca o leram, e talvez nem sequer lhe tenham ouvido o nome. Na opinião daquele varredor de rua ou na concepção de vida daquela modesta lavadeira, pode haver, obscuras, ignoradas, influências de São Tomás ou de Hegel, que nem por isso são menos ativas e importantes.

É que as idéias passam das altas paragens da vida intelectual para a massa da sociedade, não só pela aula ou pelo livro, mas por uma osmose multiforme e obscura, em que está sua maior capacidade de expansão. Elas filtram da Filosofia ou da Teologia para as outras ciências, invadem muito de manso o terreno das artes, fornecem à grande feira de idéias, que é a imprensa, a matéria-prima para o varejo quotidiano, propagam-se pelos resumos, pelas repetições e pelo plágio, e, assim repetidas de mil modos, correm cidades e campos, transpõem montes e mares, espreitam o momento mais oportuno para tomar de assalto as mentalidades, e acabam dirigindo o modo de sentir e de agir, de viver, de trabalhar, de descansar e até de morrer de milhares de seres, com uma precisão e uma segurança que o decreto policial mais tirânico jamais lograria alcançar.

Paul Bourget escreveu que toda a vida, mesmo mais apagada e trivial, é uma metafísica em ação. Não espanta pois, que o verdadeiro governo do mundo pertença aos apóstolos da metafísica e da mística, ou aos fabricantes de místicas e metafísicas.

Diga-se o que se disser, o mundo há de ser governado por uns ou por outros.

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Não espanta, pois, que vejamos a sede do verdadeiro governo do mundo, não nas assembléias legislativas ou diplomáticas ruidosas e inúteis, de que tanto se ocupa a imprensa, mas nas universidades onde silenciosamente se elabora o futuro das almas e das nações.

Durante muito tempo, o Brasil viveu sem verdadeira harmonia entre a cultura superior e o Catolicismo: o resultado é que tudo quanto em um país é obra de alto estudo, se fez entre nós sem a Igreja ou contra ela: as leis, a literatura, a arte, o curso geral do pensamento.

Mercê do esforço ingente do nosso Clero, essa influência secularizadora não dominou inteiramente a massa, mas não há quem possa negar que de certo modo o próprio espírito popular ficou profundamente prejudicado com o mal.

Basta isto para afirmar toda a importância que pode ter na vida do Brasil uma Universidade Católica. Ela pode abrir uma nova era em nossa História.

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E foi extraordinariamente feliz que, para inaugurar a nossa, acedesse em vir até cá, o Patriarca da nobre e velha Lusitânia.

A presença desse príncipe da Igreja entre nós não lembra apenas um país distante, a que nos prende afetuosa recordação. Portugal implantou entre nós a Fé, e os gérmens já profundamente embebidos pelas águas lustrais do Batismo, da cultura lusa, expressão de nossa alma, ressonância de nossa índole, simbolização de nosso espírito.

Mais de um século de separação política já se escoou no quadrante da História dos dois países de língua portuguesa. Durante esse tempo, fatores de toda ordem procuraram descristianizar e desnacionalizar o Brasil: continuamos cristãos e brasileiros.

A presença do Cardeal Cerejeira é um estímulo a que avivemos em nós todas as forças e tendências que recebemos da colonização e catequese lusa.

Melhor símbolo do que a presença do Purpurado não poderia haver para marcar rumos à Universidade Católica de São Paulo, sobre a qual pesa o fardo glorioso de tão nobre missão da cultura superior.