Legionário,  N.º 756, 2 de fevereiro de 1947

A propósito de um fato muito natural

Sua Eminência, o Cardeal Arcebispo do Rio de Janeiro, indicou dois Sacerdotes, os Revmos. PP. Castro e Costa, SJ e Helder Câmara, para colaborarem com o Conselho de imigração para a seleção de imigrantes. O General Eurico Dutra, Presidente da República, acolheu esta indicação, que encaminhou ao órgão competente.

Este fato, tão simples e tão compreensível, despertou a susceptibilidade de um velho comentador político que colabora para um  dos matutinos desta capital. Esse veterano do jornalismo, não perdeu, nem a vivacidade de espírito e de linguagem de seus tempos de moço, nem os preconceitos positivistas rígidos que naquelas remotas eras se usavam. Em matéria de relações entre a Igreja e o Estado, de 1891 para cá, ele "nada aprendeu, e nada esqueceu". Filosofa nosso amável e espirituoso jornalista sobre tais assuntos com o rigor dogmático de um Comte ou um Teixeira Mendes, esquecido de que a realidade dos fatos impôs a todos os países - a própria França de Comte, ainda hoje fiel ao Estado leigo - uma completa revisão dos princípios referentes as relações com a Igreja.... Para quem vê o mundo hodierno através dos óculos de Augusto Comte, muita coisa há de parecer realmente inexplicável e irritante.

* * *

Não somos órgão oficial nem oficioso de nenhuma associação religiosa, e não falamos senão em nosso nome, argumentando com base nas simples informações dos jornais.

Mesmo assim, não será difícil explicar a indicação feita pelo Cardeal-Arcebispo, nem o acolhimento de tal indicação pelo Governo Federal, a espíritos mais informados das condições gerais de nosso século.

Logo após o término das hostilidades, grande massa de italianos, desejosa de escapar à dureza das condições de vida no Velho Continente, manifestou desejos de imigrar. Naturalmente, a idéia de êxodo para o Brasil acudiu, entre outras hipóteses mais ou menos prováveis, ao espírito dos que pensavam em deixar a pátria. Mas o desejo preponderante não era de vir cá. Era de escapar do inferno de pós-guerra, de sair, fosse para onde fosse, e em que condições fosse.

Todas as desgraças humanas encontram especuladores. A situação era propícia a que aliciadores de imigrantes, sem escrúpulos de nenhuma espécie, se pusessem a explorar o povo, vendendo-lhe terras inexistentes na América, África ou Ásia, com promessa de subvenções governamentais para a aquisição de instrumentos agrícolas, "visto" consular imediato nos passaportes, etc., etc. Embarcavam os incautos. E, quando chagassem a seu lugar de destino, não encontrariam senão a miséria. Velhacaria apenas de alguns espertalhões? Não. Manobra de governos desonestos, ávidos de canalizar para suas terras o tesouro inestimável da mão de obra italiana, e de empregar na lavoura e na indústria, como coolles ou fellahs, os súditos de um país enfraquecido pelo insucesso cujo governo não tinha no momento lazer, nem forças, nem meios para tentar uma démarche internacional eficaz para a proteção de seus imigrantes.

A história da imigração é dolorosa. Em todo o continente europeu, circulam narrações de massas humanas transviadas, assim, de suas pátrias para rincões distantes, onde foram obrigadas a vegetar em condições miseráveis, ou a perecer. Se uma parte de imigrantes estava desejosa de fugir a todo custo, os melhores elementos, os que possuem um "pé de meia" razoável e uma vida doméstica organizada, receavam embarcar em uma grande aventura. As autoridades italianas estavam desorganizadas e desarticuladas também no interior do país. Ninguém confiava nelas. Como incutir confiança nos conselhos de agentes governamentais brotados do solo como cogumelos? Faltavam ao governo italiano meios para reter os imprudentes, e estimular os exageradamente prudentes. Que remédio empregar?

* * *

A solução ideal consistia, evidentemente, em interessar a Santa Sé no assunto. Desde que a Igreja fosse associada ao estudo do problema da imigração, e pudesse dar a garantia de sua chancela aos principais projetos intentados neste sentido, a ação estatal se facilitaria imensamente, no que diz respeito a persuadir e orientar as massas.

O governo italiano aceitou, pois, de muito bom grado o interesse demonstrado pelo Vaticano quanto ao assunto. Este interesse não é de hoje. A Santa Sé acompanhou sempre com desvelo maternal os imigrantes católicos deslocados da Europa para países remotos, velando por que tivessem assistência religiosa eficaz em seu novo habitat, e inquirindo cuidadosamente quais as suas condições de vida espiritual. Assim, automaticamente, chegavam-lhe também às mãos relatórios de seus observadores eclesiásticos sobre as condições materiais inclementes dos imigrantes, em certos países. E a Santa Sé jamais deixou de alertar para isto a atenção dos governos, por vezes descuidados. Assim, p. ex. Leão XIII tem uma Encíclica famosa em que trata da sorte dos imigrantes italianos nos Estados Unidos. Tendo uma oportunidade de prestar serviços espirituais e materiais a grandes massas humanas e, mais, a massas católicas, a Santa Sé não hesitou. E de comum acordo com as autoridades italianas iniciou diligências para a colocação razoável de imigrantes em vários países, e para a orientação do povo italiano no sentido de incutir-lhe confiança e estímulo.

* * *

Acresce que, nos primeiros dias da derrota, a Itália mantinha relações muito precárias com os governos ex-inimigos, e não tinha nos territórios destes, nenhum corpo consular organizado, para agir com eficácia. O Vaticano, atuando como potência neutra, e dispondo de informações excelentes, fornecidas pelas autoridades eclesiásticas e civis dos vários países, poderia suprir a momentânea deficiência dos meios de informação e ação estatais. E foi o que fez, com aplauso do governo italiano. Nesta ordem de idéias, a Santa Sé chegou, mesmo a enviar uma delegação composta de eclesiásticos, ao Brasil, que au su et vu de todo o mundo, e com o beneplácito do governo da Itália e do nosso, por aqui andou viajando, chegou até o Prata, e por fim voltou à Roma.

O governo brasileiro tinha, evidentemente, o máximo empenho a atrair para cá o elemento italiano. Pareceu-lhe excelente que a Santa Sé, intervindo no assunto, facilitasse a canalização de imigrantes para cá, tanto mais quanto nossas relações com o Vaticano são perfeitamente normais. Ao Brasil, pareceu tão conveniente este elemento de solução do problema que resolveu servir-se decididamente do apoio, não só do Vaticano, mas de nossas autoridades eclesiásticas. E, dai, a indicação de dois Sacerdotes para o Conselho de Imigração e Colonização, a título de colaboradores. Um deles, o Revmo. Pe. Castro e Costa, SJ, é vice-reitor do Colégio Brasileiro em Roma. Reside na Cidade Eterna, onde se tem destacado pelos dotes de inteligência e cultura que o distinguem. Outro, o Cgo. Helder Câmara, reside no Rio, onde é muito relacionado. Ambos os Sacerdotes estão, pois, aparelhados a trabalhar eficientemente em Roma e no Rio para o êxito do importante empreendimento.

* * *

Felizmente, nosso governo não foi menos inteligente que o da Itália, e, também ele, compreendeu que podia pedir ao Vaticano o apoio necessário para um interesse brasileiro fundamental: era que as autoridades eclesiásticas selecionassem os imigrantes vindos ao Brasil,  e impedissem o embarque de desordeiros, agitadores, vagabundos, cujo número se multiplicou ao infinito com a guerra, e constituem "presente" que a Europa dá de bom grado à América. Os dois Sacerdotes brasileiros exercem pois, a serviço da Igreja, uma tarefa de interesse nacional.

É possível que eles sejam chamados a agir do mesmo modo, em outros países europeus que não a Itália? Não sabemos. Mas se o fizerem, tanto melhor será para o Brasil.

Se a Hierarquia Eclesiástica tivesse recusado o serviço que pediram os dois Estados, é possível e até provável que o anticlericalismo se aproveitasse da ocasião para atacar a Igreja. Como ela aceitou, a  acusação tem outro título: a Igreja que invade a esfera do temporal.

* * *

Como católicos, somos, em tese, contrários à separação da Igreja e do Estado. Assim, pois, não aceitamos os princípios jurídicos de 1891, de que nosso jornalista se mostra tão cioso.

Se, porém, fossemos ferrenhos partidários do laicismo, nenhum inconveniente veríamos em que o Governo pedisse à Igreja uma colaboração como esta. Será que, por incluir dois brasileiros em um órgão estatal brasileiro, o Governo reconhece ser oficial a Igreja Católica... pela simples circunstância de que esses brasileiros são Sacerdotes?

Então os Sacerdotes são, por nossa constituição, elegíveis para o Legislativo e o Executivo, podem até presidir a República, e não podem fazer parte, a título de consultores, do Conselho de Imigração e Colonização?