Legionário, n.º 801, 14 de dezembro de 1947

Glória cristã e gloriola mundana

Apresentamos hoje a nossos leitores a primeira parte da Encíclica Mediator Dei, diretamente traduzida por nós do “Osservatore Romano”, gentilmente enviado por um amigo desta folha, residente na Cidade Eterna.

Com isto, procuramos corresponder ao interesse ardente, suscitado em todos os círculos religiosos do Brasil, pela notícia de que o Sumo Pontífice havia publicado uma carta dirigida a todo o orbe, em que tratava da Sagrada Liturgia e fulminava os erros do liturgicismo. Este interesse foi tão grande, que bem se  pode dizer haverem sido poucos em nossa História religiosa dos documentos papais cujo texto se tenha esperado aqui com igual sofreguidão.

Notemos desde logo quanto há de louvável neste sentimento. Um povo em cujo seio as questões religiosas alcançam despertar tanta vibração é um povo que não está morto para a Fé nem para as coisas do espírito. Um povo que aguarda a palavra do Romano Pontífice com tal sofreguidão é um povo que sabe e reconhece o valor definitivo de todos os pronunciamentos da Cátedra de São Pedro. Este interesse é, pois, dignificante e confortador, e à imprensa católica cabe corresponder-lhe dando à Encíclica, e aos assuntos por ela tratados, o maior realce e divulgação.

A importância desta obra de divulgação é óbvia. Se a Encíclica Mediator Dei despertou o imenso e notório interesse a que acabamos de aludir, deve-o ao fato de que os assuntos nela tratados vêm preocupando e empolgando vivamente, nos últimos dez anos, o Brasil católico. É desnecessário lembrar, aqui, o que todos conhecem: leigos da maior projeção no movimento católico do Brasil, sacerdotes ilustres, até Autoridades Eclesiásticas das mais graves não regatearam aplauso ao movimento de renascimento litúrgico que se processou entre nós, nem ocultaram suas apreensões à vista das tendências insólitas que esse movimento vinha tomando. Sabemos que o espírito lúcido e vigilante do saudoso Cardeal Leme percebeu bem a gravidade desta situação, e quanto ela amargurou seus últimos dias (cfr. Edital da Câmara Eclesiástica do Rio de Janeiro). O assunto mereceu também a atenção do Venerando Episcopado paulista, que sobre ele baixou uma circular publicada na REB. O ilustre Pe. J. M. Penido, em seu livro sobre o Corpo Místico de Cristo, apontou igualmente - aliás sem a menor intenção polêmica - os graves erros doutrinários de autores cujos livros sobre o assunto têm tido entre nós larga divulgação, sendo alguns até traduzidos para o vernáculo. A Câmara Eclesiástica do Rio de Janeiro julgou necessário pronunciar-se também sobre o assunto, o que fez por meio de um edital contra os que negavam ou menosprezavam a oração privada: precisamente um dos erros que a Encíclica Mediator Dei aponta e condena. E, já que mencionamos a reação das Autoridades Eclesiásticas, não podemos deixar de incluir nestas linhas uma comovida referência ao apostolado fecundo e admirável, neste sentido desenvolvido por um Bispo, então simples sacerdote, o Ex.mo Rev.mo Sr. D. Geraldo de Proença Sigaud, S.V.D. Seria igualmente injusto não mencionar aqui o excelente livro do sacerdote da Baía, Pe. F. de Salles Brasil, que trata de alguns aspectos do assunto.

Julgamos oportuno, e até indispensável, lembrar estes ilustres testemunhos de que a questão liturgicista existiu concretamente entre nós. Com efeito, nesta hora as polêmicas são supérfluas. Depois de Pedro haver falado, uma só coisa resta a fazer: assimilar e difundir de todos os modos o seu ensinamento. Precisamente para chegar a este escopo, é essencial que nada se omita do que possa dar aos brasileiros a noção da importância, da atualidade palpitante, que tem para eles a Encíclica. É preciso que eles compreendam bem, e sem a menor sombra de dúvida, que a carta do Vigário de Cristo corresponde a problemas que existem entre eles, e não apenas em alguma longínqua e lendária Bessarabia, ou em alguma gélida e distante Noruega. Se nós sofremos de fato do mal que o Papa aponta, é preciso que o saibamos, e que o tenhamos bem em mente a fim de que sorvamos os ensinamentos pontifícios com a diligência com que um doente utiliza o remédio adequado à sua moléstia, e não à moléstia de outrem. Agindo de outro modo, teríamos a convicção inevitável de estar trabalhando para diminuir o efeito da palavra do Pontífice, velando a importância especialíssima deste esforço apostólico hoje sumamente necessário, que consiste em difundir a Mediator Dei em todos os recantos e rincões de nosso imenso país. Muitas são as Encíclicas, e muitos os seus ensinamentos. Convém propagá-las todas, mas as mais urgentes, as mais intimamente ligadas a nossa realidade nacional são evidente e forçosamente as que mais se difundirão. Toldemos a memória de quanto sofreu, lutou e sangrou o Brasil católico com a questão liturgicista, e estaremos ipso facto concorrendo para tornar o doente menos empenhado em se servir de seu remédio.

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É esta a regra inelutável da psicologia humana. Devemos contar com ela, sob pena de contrariar os objetivos manifestos do Santo Padre.

Insistimos sobre este assunto, porque receiamos que um surto do famoso “me ufanismo” nos assalte nesta ocasião.

Devemos amar a Verdade, mais do que tudo, mais do que a glória portanto, e a fortiori mais do que as gloriolas. É gloriola, é patriotada, é “me ufanismo” jactarmo-nos do que não temos. Será bem verdade que no Brasil nunca medraram erros em matéria de Religião? Sem nos esquecermos do nosso liberalismo omnímodo da influência que aqui teve o jansenismo, e do regalismo contra o qual D. Vital lutou quase só, lembremo-nos da triste nódoa da “igreja católica brasileira”, e saibamos compreender que os erros nascidos em outras plagas tiveram e continuam a ter aqui explicável repercussão. Está neste caso o Liturgicismo. Nós não somos infalíveis, e se os erros do liturgicismo puderam grassar em países de muito maior cultura religiosa, que maravilha há em que tenham grassado também no nosso? Por fim, se a patriotada é um direito, cada país poderá ter a sua. E se cada país tiver a fraqueza de afirmar que o liturgicismo só existiu no vizinho, este erro, que nasceu de um movimento que o Papa afirmou expressamente ter-se propagado aquém e além mar, acabará por não ter existido em lugar algum, e parecerá não ser senão mero espectro nascido da mente do Papa!

Quando as doutrinas de Jansenius foram condenadas, seus sequazes disseram que os erros denunciados pela Santa Sé não eram sustentados nem pelo tristemente famoso Bispo de Ypres, nem por sua escola. A resultado quase idêntico poderiam levar-nos as patriotadas.

A posição de equilíbrio consiste, pois, em não negar a verdade. Tivemos estes erros, e unidos trabalhemos todos contra eles. Trabalhem contra eles os que nunca os professaram. Trabalhem contra eles com especialíssimo e assinalado afã os que porventura tenham outrora caído em seus tentáculos: com isto provarão a sinceridade de sua emenda, e o vigor de sua penitência. A penitência também é, na Igreja de Deus, uma verdadeira glória. Bem-aventurados, mil vezes bem-aventurados os que por meio dela sobem até às alturas de um Cipriano ou de um Agostinho.