Legionário, N.º 401, 19 de maio de 1940

7 DIAS EM REVISTA

Notícias provenientes da Europa na semana passada informaram ao público brasileiro a respeito de providências tomadas pelas autoridades fascistas no sentido de cercear, na Itália, a liberdade de manifestação do “Osservatore Romano”, órgão da Santa Sé. O motivo apontado foi a atitude assumida por aquele jornal perante a situação internacional. O mesmo motivo tinha sido alegado, dias antes, para explicar o fato de terem elementos fascistas incendiado em plena rua, em Roma, exemplares daquele diário.

Infelizmente, os telegramas não foram bastante explícitos, e, dando embora a certeza da existência de fortes medidas restritivas, não esclarecem se a circulação do jornal chegou também a ser afetada.

Entretanto, o fato oferece outros aspectos que não podemos deixar de comentar.

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O “Osservatore Romano” queimado em plena via pública, na Capital da Cristandade, e coarctado em sua liberdade de expressão por toda a península italiana! Se há alguns anos, ou simplesmente há alguns meses atras, o “Legionário” tivesse previsto a ocorrência deste fato, com que indignação truculenta os elementos fascistas não teriam-nos acusado de injustiça e até de má fé! Hoje, no entanto, o fato aí está patente, gritante, indiscutível. E estes mesmos elementos que se teriam irritado com uma possível previsão nossa neste sentido, agora fazem ouvidos moucos, calam-se e continuam a pensar e a agir como se estes fatos não se tivessem verificado.

Não percebem eles a clamorosa incoerência existente em sua conduta? Tanta é verdade que essa ofensiva oficiosa ou oficial contra o “Osservatore” é importante, que eles se teriam irritado imensamente se nós a tivéssemos prenunciado. Mas se é importante, por que não se irritam eles com o fascismo pela atitude que este assume agora?

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Infelizmente, não faltarão elementos que procurarão explicar o fato, e até justificá-lo dizendo que o governo italiano se viu obrigado a proceder desta forma porque o Santo Padre está agindo com base em informações inverídicas. Daí também a irritação de elementos fascistas, que os fez chegar a ponto de incendiar escandalosamente o órgão do Vaticano.

Tal atitude é indigna de um católico. Permitam-nos os nossos leitores uma reminiscência histórica. Não foi Lutero quem apelou “de Papa mau informado ad papam melius informadum”, e queimou em público as bulas pontifícias? Naquele tempo, ainda não existia o “Osservatore”, e só havia bulas para queimar...

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O que de tais incidentes se depreende com uma clareza meridiana - e seria preciso ser cego e surdo para não chegar também, por outras vias, à mesma conclusão - é que a orientação política do fascismo está em profunda divergência com a Igreja. A Itália se arvorou em aliada de um bloco ideologicamente absolutamente anticatólico, como seja o eixo totalitário Moscou-Berlim e apoia em sua solidariedade moral, e quiçá militar, acontecimentos dignos de indignar qualquer consciência reta, como seja a invasão da Holanda, da Bélgica e do Luxemburgo. A Igreja, profundamente ferida com a expansão do paganismo e do ateísmo teuto-russo na Europa, também se sentiu magoada ao último ponto com a transgressão violenta e escandalosa de todas as regras internacionais por parte do III Reich, por ocasião da invasão da Dinamarca, Noruega, Holanda, Bélgica e Luxemburgo. Assim, a divergência é profunda e a situação existente entre o Vaticano e a Praça Veneza é das mais tensas.

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A esta altura, é da maior oportunidade uma verificação. Espíritos superficiais ou mal intencionados censuram, freqüentemente, o fato de se compor de uma forte maioria de italianos o Sacro Colégio dos Cardeais, e de ultimamente só serem eleitos Papas italianos.

A delicadíssima situação em que atualmente se encontra o Vaticano mostra, porém, que nenhuma injunção de caráter nacionalista seria capaz de levar o supremo governo da Igreja a renunciar ao seu dever para favorecer a Itália. Por outro lado, estando confiado a um Papa italiano e a Cardeais em sua maioria italianos o governo da Santa Igreja, torna-se evidente que esta [quando] se vê na obrigação de contrariar a política do governo italiano, fá-lo a contra gosto, no cumprimento árduo de um penoso dever, e sem se deixar influenciar por considerações outras que não as de caráter estritamente religioso.

Quantas e que profícuas explorações poderia fazer a imprensa fascista se o Papa fosse por exemplo francês!

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Merecem registro os seguintes tópicos publicados pelo “Osservatore”, tópicos estes que talvez tenham concorrido para irritar as autoridades fascistas, porque nada dói mais à consciência impenitente do que a verdade dita com desassombro apostólico: “A iniciativa germânica não pode ser beneficiada com nenhuma justificativa baseada em princípios de civilização pacífica. Os acontecimentos atuais nada mais constituem que uma triste repetição de tristes precedentes. A Bélgica e a Holanda mantiveram sua neutralidade com rigidez e escrúpulo, confirmando as palavras do Presidente do Conselho belga e as múltiplas declarações holandesas de que manteriam a sua neutralidade como tomariam as armas se fossem atacados.”

“A terrível agressão germânica é contrária aos princípios expostos por Pio XII. A ação alemã é inconciliável com as regras de direito positivo e internacional e contradiz os ensinamentos da paz, que proclamam o direito de existência e independência de todas as nações grandes ou pequenas.”

“Que Deus, perdoando, faça aparecer mais claramente o seu poder, que disperse o turbilhão de mortos que pesa sobre a humanidade remida e que triunfe no mundo e faça voltar a paz entre os povos e as nações.”

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Quando da anexação da Áustria pela Alemanha, esta folha publicou um trabalho (...), em que historiando os acontecimentos que, de longe ou de perto, preludiaram a hecatombe em que soçobrou o heróico governo do imortal Schuschnigg, denunciou a trama diabólica urdida nos bastidores da política pelos inimigos da Igreja, e apontou tanto os direitistas pretensamente anti-maçônicos quanto a corte liberal, socialistas e comunistas como instrumentos de execução desta trama.

Dissemos, naquela ocasião, que os governos francês e inglês poderiam ter evitado o advento de Hitler se tivessem concedido à Alemanha condições de existência mais benignas e que uma das causas profundas, se não a causa única, da queda da democracia liberal na Alemanha é que esta estava sendo governada pelo Partido Católico, tinha no poder o catolicíssimo sr. Bruning, e, assim, não convinha de nenhum modo aos altos interesses localizados nos bastidores da política, que lhes preferiram, “et pour cause”, o paganismo nazista.

É curioso ouvir da boca do Sr. Lloyd George a confirmação desta verdade. Discursando há dias na Câmara dos Comuns, disse ele que “havia, na Alemanha, um governo democrático, e foi porque não cumprimos nossos compromissos para com ele que Hitler subiu ao poder do Reich.” O que o Sr. Lloyd George não disse, é que este governo democrático era católico.

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Transcrevemos, finalmente, este telegrama altamente significativo, a respeito da atitude do “Osservatore Romano”.

“A invasão da Bélgica, do Luxemburgo e da Holanda pela Alemanha inspira novamente considerações amargas ao “Osservatore Romano” que analisa principalmente os aspectos políticos e jurídicos do golpe de força do “Reich” e salienta, à luz de documentos antigos e recentes, a má fé e o caráter particularmente odioso dessa ação.

“Osservatore Romano” lembra as declarações solenes pelas quais o “Reich” se comprometeu reiteradas vezes, e principalmente no início do conflito, a respeitar a integridade dos três países hoje atacados.

“Salienta os esforços patentes e múltiplos desenvolvidos principalmente pela Bélgica para não dar motivo à mínima ameaça de invasão por parte dos seus vizinhos. Lembra a recusa sistemática dos governos de Bruxelas e de Haya em procurar qualquer contato de seu Estado Maior com a França e a Grã-Bretanha e ressalta a “linguagem brutal e insolente do memorandum alemão no qual se nota analogias com o “ultimatum” de 1914.

“O órgão do Vaticano refere-se em seguida à proclamação do rei dos belgas e ao discurso do Sr. Spak, ministro dos Negócios Estrangeiros da Bélgica, dos quais reproduzem as frases essenciais ressaltando a altivez e a nobreza.

“O conflito atual - termina o “Osservatore Romano” - arrastou ao turbilhão três povos ciosos de sua paz e que trabalhavam para a paz. Esses povos, cujo único fim é defender seus próprios lares, são castigados pelo terror que cai sobre eles.

“A generosidade de seus sacrifícios é a única chama que brilha numa noite tão escura”.