Legionário, N.º 502, 26 de abril de 1942

Pétain - II

Ninguém pode compreender o que realmente se está passando na França sem primeiramente traçar um quadro retrospectivo da situação política daquele glorioso país, na última década. Nosso público conhece com relativa precisão, a história dos principais homens de Estado da França contemporânea, e dos grandes partidos políticos tradicionais. Quanto às figuras mais recentes e as correntes ideológicas de menor nomeada, quase nada se conhece entre nós. Croix de Feu, cagoulards, etc., são palavras quase sem sentido para nossas grandes massas. Entretanto‚ é nestas palavras que se encontra a chave do enigma.

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O LEGIONÁRIO já tem apontando várias vezes a existência, em quase toda a Europa, de correntes fascistisantes que têm agido, para com Berlim, com uma disciplina verdadeiramente mecânica. Durante muito tempo, entendeu-se entre os detratores da Igreja que a famosa norma perinde ac cadaver enfeixava toda a espiritualidade da Companhia de Jesus e todo o espírito do Catolicismo. Hoje, essa lenda se desfez. Mas a máxima passa a ter, à vista da realidade contemporânea, aplicação nova: aos Quislings, aos Degrelles, aos Mussarts, aos Mosleys, ela se ajusta de modo verdadeiramente literal. Quando, na Holanda, na Noruega, na Bélgica, na Checoslováquia, na Áustria, nos círculos "Falange Espanhola" e nas esferas mais recônditas da política inglesa, foi preciso espalhar "palavras de ordem" que favorecesse o nazismo, boatos que facilitassem a derrocada, sugestões que dificultassem a defesa, as organizações partidárias de tipo nazifascista a isto se prestaram de tal maneira que, verdadeiramente, se poderia dizer que foram a medula da "quinta coluna". Quando alguns destes países capitularam, e o invasor quis estabelecer por detrás de um governo de aparência nacional uma ocupação tanto mais tirânica quanto mais disfarçada, a este papel de traidores se prestaram invariavelmente os chefetes dessas correntes. Nenhum deles se deteve no caminho da traição. Nenhum deles sentiu na consciência a natureza das irremediáveis capitulações a que submetiam suas pátrias. Obedeceram, e obedeceram como cadáveres. E hoje procuram cobrir com seus vultos de pigmeus a agonia lenta e segura a que a ocupação nazista submete todos os países que as tropas do "füehrer" conseguiram avassalar. Havia uma Internacional comunista - que infelizmente ainda existe, é preciso não o esquecer - que mantinha seções em todos os países. Jamais estas seções foram mais disciplinadas ao centro de Moscou, quanto as seções da imensa Internacional nazista se revelam quanto a Berlim.

E a França? Não tinha sua "seção" totalitária? Evidentemente, sim. Os "Croix de Bois" e outras organizações de tipo fascistas eram evidentemente simpáticas ao nazismo. Favoreceram a criminosa política de Munique, os pactos cegos, as capitulações inúteis, os recuos criminosos. Quando veio a guerra, foram agoureiros da derrota. Quando veio a capitulação, criaram um ambiente de pessimismo que facilitou a aceitação, por parte da opinião publica, das piores exigências do vencedor. Quando se estabeleceu a ocupação, cobriram de flores os invasores, em seus jornais mais ou menos disfarçadamente nazistas. Quando foi preciso um simulacro de governo, apresentaram-se para esta inglória tarefa. Em tudo e por tudo solidários com Laval, Flandin e outros [...], que emprestavam a manobra vivíssimo apoio, foi nas fileiras dessa gente que Pétain escolheu seus auxiliares de governo. Com efeito, entre os franceses de outras correntes, ou entre os apolíticos, tão numerosos nesse esplendido país de grandes e riquíssimas "elites", não pode Pétain encontrar colaboradores. Foi entre os joguetes de Hitler que ele procurou os elementos destinados a fazer uma manobra que, em última análise, deveria contrariar evidentemente os planos mais seguros e mais caros ao próprio Hitler. Uma palavra de Hitler como garantia; instrumentos cadavericamente dóceis a Hitler como colaboradores; foi assim que Pétain, montado sobre os escombros da França, empreendeu o seu trabalho voltado, no fundo, contra Hitler. Misterioso e profundo enigma! Não se apercebeu disto o velho Marechal? Não notou ele que, enquanto ele era para o povo a incarnação da glória de 1918, a figura que colocava ao seu lado fora a personificação do derrotismo, da traição, da venalidade? Laval, o primeiro dos colaboradores de Pétain, chegara a ser denunciado como traidor durante a Grande Guerra, na qual foi um dos pouquíssimos deputados em idade militar que não seguiram para o "front". E enquanto os de sua geração lutavam e morriam, Laval aproveitava os lazeres para trair e se enriquecer. Este o homem que, acobertado pelos louros de Verdun, foi bastante feliz para subir ao governo com uma facilidade de movimentos que jamais teria se a sombra de Pétain não pusesse um véu sobre o ignominioso passado desse politiqueiro! Sem Pétain, Laval jamais teria sido possível. Logo, Pétain tem, ao menos na ordem objetiva dos fatos, culpa pelo que fez Laval.

O que fez Laval? Consumou, consolidou, solidificou a derrota.

A famosa entrevista de Montoire - que eterna ignomínia se liga hoje ao nome Montoire - em que Pétain se apresentou aos olhos de toda a França como fiador da reaproximação com Hitler, foi a obra de Laval. Mas sendo obra de Laval foi essencialmente e sobretudo obra de Pétain. Com efeito, aquilo que Laval conseguiu fazer com Pétain, sem Pétain jamais teria sido feito. É possível que o plano e a execução sejam de Laval. Mas a autoridade era de Pétain, o prestígio era de Pétain, só Pétain poderia levar o brioso povo francês a aceitar aquilo que feito exclusivamente por Laval teria arrancado brados de indignação às próprias pedras das ruas e dos caminhos. E tanto assim‚ que uma onda de indignação popular levou do poder Pierre Laval pouco depois. Premidos pela indignação geral, os nazistas aceitaram a demissão de seu principal agente. A glória da proeza reverteu toda ela para Pétain que entretanto só havia sido um instrumento dócil de Laval. E Pétain recolheu mais estes louros - quanto mais modestos que os de Verdun! - fingindo despedir, enojado, seu antigo auxiliar.

Hoje, entretanto, a situação se transfigura. Pétain chama novamente ao poder aquele auxiliar do qual se despediu enojado. Apoia-o, auxilia-o, entrega-lhe todas as funções. E, mais do que isto, Pétain continua, pela sua presença, a coonestar aquilo que, ainda que quisesse, já não poderia evitar. Como murcharam os louros de Verdun!

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Que juízo deveremos fazer de Pétain? Seu sistema caiu por terra inteiramente. Com efeito, como demonstramos em artigo anterior, as garantias verbais de Hitler, de que Pétain poderia reconstituir uma França cristã e forte, ruíram por terra. A única justificativa que Pétain poderia dar à sua conduta é de que está sofrendo uma pressão nazista. Mas essa desculpa encerra a confissão de que ele está inteiramente nas mãos de Hitler, que assim já violou a palavra empenhada. E se essa palavra está violada, se Pétain vê que a base de seu sistema ruiu, porque permanece no poder, a amortecer, com sua inútil presença, as justas desconfianças, a explicável indignação, a desejável reação do povo francês?

Agora virá, para Pétain, o momento decisivo. Ao que parece, cogita-se fazer uma invasão anglo-americana na França. Se Pétain reagir contra o invasor, sua figura ficará definitivamente incluída na galeria dos Quislings. Se, pelo contrário, enfrentando vexames, injúrias, expróbrios, a morte talvez, souber subtrair-se à ação nazista que dele se serve como um joguete, será uma figura que se terá redimido pela expiação de seus erros.

Que caminho tomará?