janeiro de 1993

Declarações à imprensa

Função social: expressão deturpada pelo igualitarismo

Função social, eis a expressão que serve de base para os projetos de lei sobre Reforma Agrária (cfr. PL 11D/91, art. 2º) e Reforma Urbana (cfr. PL 5.788/90, arts. 7º e 8º) atualmente em debate no Congresso Nacional. Contra sua aprovação, a TFP empreendeu meses atrás vigorosa campanha de âmbito nacional, obtendo no prazo de um mês, o expressivo total de 1.133.932 assinaturas. A mensagem da entidade, dirigida ao Chefe do Executivo federal e aos presidentes do Senado e da Câmara, pleiteia também a realização de um plebiscito nacional para a apreciação dos referidos projetos. No dia 1º de dezembro último, uma comissão de sócios e cooperadores da TFP entregou no protocolo do palácio do Planalto 40 caixas contendo 119.973 folhas de abaixo-assinado com o aludido número de assinaturas.

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É freqüente hoje em dia, na mídia, o emprego da expressão função social. Entretanto, quão pouco explicativas são habitualmente as referências a tal expressão!

Se alguma empresa de pesquisa de opinião pública investigasse qual a porcentagem dos brasileiros (ou dos naturais de qualquer outro país) aptos a dar de imediato um conceito definido do que seja função social, é altamente provável que os resultados a que tal pesquisa chegasse fossem decepcionantes para os usuários da expressão.

Na melhor das hipóteses, uma minoria não extremamente pequena de pessoas responderia corretamente às seguintes perguntas:

- Se a presente voga da expressão função social data de tempos do Papa Leão XIII, ou de algum de seus sucessores;

- Se ela concerne a todos os direitos do homem, ou apenas ao direito de propriedade;

- Se a função social se destina essencialmente a servir a causa da distribuição igualitária dos bens, mediante a transferência, para os que possuem menos, da maior parte possível das posses dos que têm mais;

- Se a função social atingiria, conseqüentemente, a plena perfeição de seu próprio exercício, no dia em que todos fossem iguais.

A resposta vaga e titubeante que a maior parte das pessoas daria a essas perguntas se inspiraria em algo que melhor se qualifica como um sentimento de compaixão instintiva e notavelmente genérica, do que propriamente como um doutrina.

Tal sentimento tem como pressuposto que toda dor pode e deve ser extirpada da vida do homem.

Dessa ilusão utópica se origina, em muitos espíritos, uma divagação sobre os diversos sofrimentos experimentados pelo ser humano a propósito da propriedade privada e das desigualdades sócio-econômicas decorrentes desta.

Nas miragens dessa divagação, aparece – sempre difusamente – a impressão de que grande número de sofrimentos poderia ser remediado desde logo se todos os bens se dividissem igualmente entre os homens. E isto, tanto a nível de nações, como a nível de indivíduos.

De fato, imaginam os utopistas que mediante essa divisão igualitária cessariam, antes de tudo, as mais variadas formas de pobreza que hoje existem. Tal seria o fim das carências que afetam o corpo. E igualmente das que fazem sofrer as almas.

Ou seja, mesmo entre pessoas que não experimentam qualquer necessidade física, a propriedade privada seria causa de um padecimento autêntico. Com efeito, toda desigualdade faz sofrer quem tem menos. A tal ponto que a condição de um miliardário seria justificadamente penosa para este, quando posto em confronto com a de um multimiliardário.

E não vale isto tão-só para desigualdades econômicas, mas ainda para os reflexos que essas desigualdades podem produzir, hoje em dia, nos vários campos da existência humana. E tudo isto pode despertar em quem tem menos ou é menos, uma tristeza ocasionada por sua inferioridade.

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Um igualitário famoso do século XVIII, o Padre Sieyès, descreveu a organização das classes sociais de seu tempo – e entre elas incluía o Clero – como uma "cascata de desprezos". Ou seja, cada superior desprezaria os inferiores. O que acarretaria – já se vê – que cada inferior odiasse seu superior. Não se poderia exprimir de modo mais conciso o princípio gerador da luta de classes.

É incontável o número de pessoas que vêem do mesmo modo as desigualdades ainda existentes na organização social contemporânea.

Bem entendido, nem todas as pessoas têm coragem de explicitar até suas últimas conseqüências esse ponto de chegada extremo de suas divagações sócio-sentimentais. Mas para lá tendem, com celeridade maior ou menor, incontáveis contemporâneos nossos.

A função social da propriedade se lhes afigura como a obrigação que pesa diretamente sobre todo mundo que tem mais (e pesa in obliquo sobre todo mundo que, a qualquer título, é mais) de colaborar por todos os meios na tarefa de erodir gradualmente a sua situação, em benefício dos que têm ou são menos. De sorte que desapareçam todas as desigualdades, e com estas a causa que ainda fará gemer a humanidade até o dia em que a última desigualdade desapareça na Terra.

Ideal todo perfumado de compaixão, que algum revolucionário utópico do século XVIII exprimira sem receio de se contradizer, mediante o desejo – impregnado, segundo ele, de justiça – de "ver o último Rei enforcado com as tripas do último Padre".