Revista "Catolicismo", n° 471, março de 1990 (www.catolicismo.com.br)

Transcrevemos abaixo três cartas do Prof. Plinio Corrêa de Oliveira, publicadas na imprensa diária. Os subtítulos são dos jornais que as publicaram.

Banho de Sangue [carta aberta a Florestan Fernandes, Deputado Petista]

No artigo "Vitória na derrota", do sr. Florestan Fernandes (25/12/89) leio: "Agora, ou a mudança social estrutural vem por bem ou terá de surgir regada a sangue, por uma guerra civil..." Assim, o conhecido sociólogo caracteriza, esperançado, a situação resultante das últimas eleições. Tenho esse autor na conta de categórico adepto da democracia política. E não compreendo como possa ele considerar sem repulsa a eventualidade de que, se nossa pátria recusar, no decurso do presente período pós-eleitoral, a mudança social estrutural que ele parece aspirar, seja punida com um banho de sangue. O que importa em obrigá-la ditatorialmente a ser como ela não quer – conforme o resultado do último pleito bem demonstra. A tal respeito, agradeceria uma explicação. (Plinio Corrêa de Oliveira, "Folha de S. Paulo", 4-1-1990).

Mudanças regadas a sangue

Em carta publicada na seção "Painel do Leitor" desse matutino (edição de 4-1-1990), pedi esclarecimentos a respeito de uma afirmação contida no artigo "Vitória na derrota" do sr. Florestan Fernandes, estampado na edição de 25-12-89. O articulista até agora não se manifestou.

Contudo, o presidente da Associação dos Docentes da Universidade do Rio de Janeiro, sr. Roberto Abreu, em missiva ao "Painel do Leitor", inserida na edição de 10 do corrente, assevera: a "afirmação de Florestan Fernandes segundo a qual ‘a mudança social estrutural vem por bem ou terá de surgir regada a sangue (…) apenas constata uma realidade histórica amplamente documentada".

Ora, o sr. F. Fernandes não se limita a "constatar uma realidade histórica", mas manifesta claramente a esperança de que a alternativa por ele aventada se realize, transformando assim em vitória a derrota eleitoral das esquerdas, como o tópico final de seu artigo e o próprio título indicam.

Tenho ademais um reparo a fazer às palavras do sr. Abreu: incontáveis brasileiros – entre os quais eu – não conhecemos documentos que comprovem ser inevitável "a mudança estrutural" em nosso país "ter de surgir regada a sangue", como prognostica o conhecido sociólogo F. Fernandes.

Estou certo de que, para o sr. Roberto Abreu, a imprensa brasileira está aberta. Assim sendo, faria ele um grande bem ao País se desse a público as provas em que se baseia para lançar seu sinistro prognóstico. Será ao mesmo tempo patriótico e amável que as divulgue o quanto antes (Plinio Corrêa de Oliveira, "Folha de S. Paulo", 26-1-1990).

Falas do Papa

Em carta por mim publicada na "Folha de S. Paulo" de 4 do corrente, solicitei ao Deputado petista e sociólogo Florestan Fernandes um esclarecimento sobre a seguinte frase contida em artigo dele: "Agora, ou a mudança social estrutural vem por bem ou terá de surgir regada a sangue, por uma guerra civil, que deixou de ser potencial" ("Vitória na derrota", "Folha de S. Paulo", 25-12-89).

Parece ter assumido o sr. Roberto Abreu, Presidente da Associação dos Docentes da Universidade do Rio de Janeiro, o encargo de me responder, em nome do parlamentar, o que fez em carta dirigida a esse jornal em 14 do corrente.

Para tal efeito o sr. R. Abreu cita três pronunciamentos feitos por João Paulo II em sua visita ao Brasil, em 1980. Segundo parece ao sr. Abreu, esses tópicos serviriam de fundamento à estranha afirmação do sr. F. Fernandes.

A isto respondo:

1°) Da alocução de S.S. ao Corpo Diplomático o sr. Abreu limita-se a citar a seguinte frase: "Onde falta a justiça, a sociedade está ameaçada por dentro".

Porém, imediatamente depois, o Pontífice acrescenta: "Isto não quer dizer que as transformações necessárias para que haja uma justiça maior devam realizar-se na violência, na revolução, no derramamento de sangue, pois a violência prepara uma sociedade de violência, e nós, cristãos, não podemos dar-lhe nossa aprovação".

Precisamente nesse ponto, a linguagem usada na alocução pontifícia entra em choque com a dos que, vaticinando o emprego da violência como alternativa para a solução dos problemas criados por uma sociedade injusta, parecem ver na efusão do sangue uma via apropriada para que a sociedade humana chegue a uma ordem de coisas normal.

Na alocução do Pontífice na favela do Vidigal, as palavras são genéricas: "A sociedade que não é socialmente justa, e não ambiciona tornar-se tal, põe em perigo o seu futuro". Perigo do que? De crises econômicas ou políticas? De amplos movimentos grevistas? De violência? O Pontífice não entra em pormenores.

Por fim, as palavras pronunciadas por João Paulo II em Salvador foram as seguintes: "A realização da justiça neste continente está diante de um claro dilema, ou se faz através de reformas profundas e corajosas (…) ou se faz (o sr. Abreu omitiu neste lugar, as seguintes palavras do Pontífice: " – mas sem resultado duradouro e sem benefício para o homem, disto estou convencido –") pelas forças da violência".

Note-se antes de tudo que S.S. fala aqui muito genericamente, de todo o continente, e não só do Brasil. Em consequência, ele tem em vista algo a passar-se processivamente, em escala muito ampla, pela ação de causas profundas, naturalmente diversificadas em cada país segundo as respectivas peculiaridades. Algo que só poderia consumar-se lentamente, em tempos muito diversos. E não algo para consumar-se no Brasil especificamente, como fruto próximo da derrota eleitoral de Lula, segundo parece esperar o sr. F. Fernandes.

2°) De qualquer maneira, as palavras do Sumo Pontífice citadas pelo sr. Abreu constituem um juízo sobre matéria concreta e contingente. É realmente tão grave a crise referida pelo Sumo Pontífice? Estende-se ela efetivamente a todo o continente? Só há para ela as duas saídas apontadas por ele?

É bem evidente que o juízo do Chefe Supremo da Cristandade, em matérias como estas – complexas, amplíssimas, importando no conhecimento exato de quadros estatísticos por assim dizer infindos, na controvertível interpretação desses quadros segundo princípios técnicos numerosos e complexos – esse juízo, dizíamos, que versa pois sobre matéria alheia ao Magistério da Santa Igreja, pode incluir afirmações inexatas. Assim, pronunciamentos pontifícios sobre tais matérias devem ser acolhidas com veneração e filial afeto, porém não obrigam em consciência o fiel a dar-lhes adesão interna.

Isto é sobretudo verdadeiro no que se refere ao Brasil, país a respeito do qual se teceu toda uma legenda negra de miséria popular, a qual, sem ser inteiramente errada, entretanto é muito e muito exagerada.

Recomendo ao sr. Abreu que leia a esse propósito o livro "Is Brazil Sliding Toward the Extreme Left?", do sr. Carlos Del Campo (The American Society of the Defense of Tradition, Family and Property, Nova York, 1986), o qual desbarata os principais erros dessa legenda.

Até que ponto terá tal legenda influenciado o venerável pronunciamento do Soberano Pontífice? (Plinio Corrêa de Oliveira, "O Globo", 28-1-1990).