"Agência Boa Imprensa – ABIM", 2ª quinzena de maio de 1992

V CENTENÁRIO DO DESCOBRIMENTO DA AMÉRICA

Valores de alma de Portugal e Espanha

A propósito do V Centenário do Descobrimento e Evangelização da América, convém lembrar que uma justa hierarquia de valores da vida leva os povos ibéricos a anteporem o espiritual ao material, o eterno ao passageiro, o absoluto ao relativo, o celeste ao terrestre, conduzindo-os antes de tudo ao heroísmo.

Em seguida, a um feitio de espírito em que a teologia é mais do que a filosofia, e esta, por sua vez, dirige todas as ciências. Este feitio mental gera um feitio de vida em que se procura mais a nobreza do que o luxo, os prazeres sóbrios do comércio dos espíritos e da vida de família, do que os regalos de um conforto escancaradamente físico. No modo de ver as vicissitudes da vida, há uma atração para considerar de frente a dor, a luta, a própria morte, como valores dos mais grandiosos que Deus nos tenha dado para fazer frutificar, neste vale de lágrimas, para a eternidade. Daí uma naturalidade ante o perigo, uma força na adversidade, uma serenidade no sofrimento, que desnorteia outros povos.

A história espanhola, por exemplo, se afigura um desses rios que correm cristalinos e borbulhantes, num leito acidentado, onde as águas se jogam por despenhadeiros e abismos trágicos, brilhando a luz do sol com toda a alvura das grandes cataratas.

Pelo contrário, a história lusa parece um curso de águas profundo, impetuoso, mas sempre sereno, que vai em linha reta diante de si mesmo, destruindo os obstáculos, com uma força invencível, mas conservando uma placidez, uma doçura, uma nobre simplicidade, até mesmo quando em sua superfície se espelham os mais belos aspectos do Céu e da Terra. O espanhol está sempre pronto, heroicamente mobilizado para luta. O português não dá esta impressão. Ele é singelo, risonho, meigo. O espanhol está sempre pronto para enfrentar a tragédia. Dir-se-ia que os lados sublimes da existência não impressionam o português, todo afeito a consideração das doçuras de sua vida de família, na suavidade de seus campos, no encanto de suas vilas, na formosura de suas cidades.

Mas, se um grande ideal solicita a dedicação da alma portuguesa, se uma grave ofensa lhe faz ferver o senso de dignidade, o luso se levanta como um herói. E luta com toda a rijeza indomável da fibra ibérica, enfrenta o perigo, calca aos pés o risco, e aceita a morte com uma sobranceria que a ninguém foi dado exceder.

Esse habitual estado de alma do português – afetivo, sereno, despretensioso – se colore de uma ligeira tinta de melancolia. Uma melancolia muito suave, que tem todas as luzes da resignação cristã, mas uma melancolia que é a nosso ver, o cunho próprio de Portugal.

É a melancolia que lhe vem de saber que na Terra a alegria perfeita é impossível e estamos nas agruras do exílio. A melancolia de que lhe nasce a poesia, a compaixão e a bondade.

Melancolia lusa, doçura lusa, encanto luso... tanto faria dizer-se melancolia brasileira, doçura brasileira, encanto brasileiro. Pois são precisamente estes traços, herdados de nossos maiores portugueses, que constituem, com variantes importantes em nosso solo pátrio, os elementos típicos da alma brasileira.