Reforma Agrária - Questão de Consciência


Secção I

A investida do socialismo contra a propriedade rural

Título I

A "Reforma Agrária" e nossa realidade rural

Capítulo II

Sombras no quadro

Claro é que a descrição feita no capítulo anterior corresponde tão somente as linhas gerais do que foi por muito tempo, e em larga medida ainda é, nossa estrutura agrária. Ao longo dos anos e condicionada por circunstâncias locais bastante numerosas, conheceu ela muitas variações. O que não impede – e este é o ponto importante – que em suas grandes linhas, e sobretudo em seu espírito, ela se tenha constituído assim.

 

Aspectos gerais harmônicos. Pormenores contraditórios

Não seria talvez necessário acrescentar que, sempre que se descreve uma estrutura em seu espírito e em suas linhas gerais, existe o risco de se omitir ou subestimar o que nela está em contradição com esse espírito ou essas linhas.

Como vimos na Introdução (15), não entra nos quadros deste trabalho dar toda uma visão panorâmica de nosso passado agrícola, ou de nossa situação presente, mas mencionar apenas o necessário para o estudo do problema muito circunscrito de que tratamos. É pois a título de mera exemplificação que lembramos se ter a realidade, em vários lugares, afastado dos princípios em medida maior ou menor.

Em certas regiões, a proteção do trabalhador rural contra o alcoolismo, o jogo, a prostituição, a prática das uniões ilegítimas, foi insuficiente ou nula, e com isto ficaram prejudicadas sua fibra moral, sua vida familiar, sua capacidade de trabalho e seu espírito de poupança. Em casos não raros, poderiam ter sido dispensados ao homem do campo salários mais elevados, habitações mais confortáveis e salubres, instrução adequada, e condições de vida mais convenientes. A propaganda nociva, sob todos os pontos de vista, do espiritismo e das superstições de toda ordem poderia ter sido obviada ou pelo menos contrabalançada. Em muitos lugares, uma melhor assistência médica dos poderes públicos e da iniciativa privada poderia ter favorecido a saúde do trabalhador rural. São, como dissemos, meros exemplos, que tanto poderiam ser tirados do passado como do presente. Outros poderiam aduzir-se.

A decadência religiosa na vida do campo produziu devastações morais sensíveis, no mundo dos trabalhadores rurais. Não raras vezes, para exemplificar, poderiam estes ter atenuado ou remediado sua pobreza evitando a indolência, o esbanjamento inconsiderado com a aquisição de objetos supérfluos, com os vícios do álcool e do jogo, que absorviam boa parte de seu já pequeno salário.

Tais defeitos resultaram, em boa parte, de todo um estado de espírito, de que o agricultor foi muitas e muitas vezes participante, porém do qual ele não era o foco. Esse estado de espírito estava radicado tão profundamente em todo o corpo social, que dele participavam, via de regra, as autoridades públicas e os próprios trabalhadores rurais.

Era ele uma conseqüência do liberalismo, que deixava cada homem entregue a si. Nem o Estado nem o patrão deveriam transpor o círculo de ferro de suas funções específicas. Vivesse, pois, cada qual como lhe aprouvesse. Assim, se pela indolência, pela inapetência de conforto e instrução, alguém não queria progredir... pois que estacionasse. A ninguém seria lícito intervir em seus direitos de micro-soberano de sua esfera privada, para lhe dar ordens ou sequer conselhos. De onde, por vezes, nos próprios beneficiários certa reação de brio ofendido, diante de iniciativas que tendiam a favorecê-los em nome da justiça ou da caridade.

A sede de prazeres, característica do neopaganismo, não poupou nenhuma classe social. Assim, penetrou também entre os agricultores, criando neles, freqüentemente, a propensão a fazer gastos suntuários no decurso de suas viagens ao exterior, a manter uma representação social por demais onerosa nos grandes centros, a construir sedes de fazenda excessivamente luxuosas, a comprar automóveis numerosos etc. Tudo isso acompanhado, por vezes, de gastos ainda maiores com o jogo e com negócios arrojados.

Da mesma raiz nasce naturalmente a avareza no essencial, isto é, nos gastos para conservar as terras, remunerar dignamente os trabalhadores e promover ativa e dedicadamente a melhoria espiritual e material das condições de vida destes.

Os extremos se tocam. Com alguma freqüência, estes mesmos resultados nocivos são produzidos, não pelas despesas excessivas, mas pelo exagerado desejo de acumular riquezas sobre riquezas. Este desejo originou-se, por vezes, da infiltração da mentalidade capitalista – tomada aqui em seu mau sentido uma palavra que também comporta um sentido bom – no campo. Abstraindo de todos os demais aspectos da vida, o fazendeiro-"capitalista" só via como fim desta seu trabalho e seu próprio enriquecimento, de onde considerar o empregado como máquina da qual se deve tirar o máximo dando-lhe o mínimo. Casos houve em que seu anseio de auferir desde logo o maior lucro levou-o a comprometer o futuro da propriedade, recusando à terra o trato devido.

Uma certa incapacidade dos agricultores para se organizarem e imporem aos poderes públicos o respeito a seus direitos pode também ser considerada um defeito sensível de nosso meio agrícola de então. Esse defeito tende, aliás, a diminuir em face das circunstâncias, menos rapidamente embora do que fora de desejar.

 

As sombras do quadro e suas causas permanecem na realidade presente

Na medida em que ainda existe nossa velha e benemérita estrutura rural, com ela sobrevivem as sombras do quadro, bem como as respectivas causas. Elas se agravaram pelo fato de que alguns fenômenos nocivos, ainda muito incipientes ou quiçá inexistentes no começo do século, tomaram de lá para cá um vulto inquietante. Mencionemos alguns.

Um deles – do qual, apesar de sua importância, pouco se fala – é a "desruralização" dos proprietários agrícolas. Muitos deles, embora vivam no campo, tomam ali a mentalidade, as atitudes e os hábitos citadinos exilados. Seu convívio com os trabalhadores é o menor possível. O casal e os filhos vivem em função da cidade próxima, onde encontram as diversões que mais apreciam e compreendem.

Agricultores há que habitam nas capitais, indo à fazenda com suas famílias somente nas férias, que deixam transcorrer no convívio exclusivo com amigos que levam consigo, sem tomar um contato vivo e pessoal com os trabalhadores rurais. Outros, por fim, passam anos sem fazer na sua propriedade senão as rapidíssimas estadas indispensáveis para tomar algumas providências e dar certas diretrizes.

Pensarão talvez vários desses agricultores que, dando com largueza assistência material a seus colonos, cumprem cabalmente seu dever. Sua generosidade é de se louvar, porém não basta. Sua situação de fazendeiros pede que eles dêem algo de mais valioso aos seus empregados, isto é, façam o dom de si, de sua presença, de sua afabilidade, de seu convívio.

Não queremos dizer – insistimos – que seja esta a regra geral. Mas, em todo caso, os fatos que descrevemos são bastante numerosos para que seja justo e indispensável analisá-los aqui.

A ausência do campo decorre de um estado de espírito que leva o homem a viver só para as diversões, considerando monótona e insuportável a existência calma, digna, sem prazeres excitantes, que ali se leva.

Essa vida, dedicada à agricultura e tão propícia à pratica da virtude, a Igreja a favorece com empenho.

Pio XII, por exemplo, a elogia com estas palavras:

"Hoje, como no passado, o campo tem algo a dar, que ultrapassa o nível dos bens materiais: ele continua sendo sempre uma das mais preciosas reservas de energias físicas e espirituais. Daí decorrem a estima e o interesse com que a Igreja sempre considerou a agricultura "omnium artium... innocentissima", como a chama Santo Agostinho (De haeresibus, 46; P. L. 42, 37); daí a solicitude com que, particularmente hoje em dia, Ela se dirige à população rural, que, em virtude de seu contato mais direito com o mistério da natureza, ou do isolamento maior imposto por seu próprio trabalho, conservou em geral mais vivo sentimento religioso e assim "ficou até nossos dias a detentora da mais pura tradição cristã" (Discurso de 11-IV-1956, aos Cultivadores Diretos) (16).

E o Santo Padre João XXIII, falando sobre o mesmo assunto, exclama:

"Amai a terra, mãe generosa e austera, que encerra em seu seio os tesouros da Providência! Amai-a porque, especialmente em nossos dias, em que se difunde uma perigosa mentalidade que arma ciladas aos valores mais sagrados do homem, encontrais nela o quadro sereno onde se desenvolverá vossa personalidade perfeita. Amai-a porque, ao contato dela e por vosso nobre trabalho, vossa alma pode mais facilmente aperfeiçoar-se e elevar-se a Deus" (17).

Sempre mais, o proprietário vai sendo, no campo, o grande ausente. Com isto, vai ele perdendo a consciência de sua missão de líder natural em suas terras, esquecido de que lhe compete velar pelos seus trabalhadores, promovendo-lhes a melhoria das condições de existência. Como evitar que a estes pareça, numa apreciação unilateral e portanto injusta – mas cujo lado errado eles não alcançam facilmente – que o fazendeiro é elemento supérfluo na marcha dos trabalhos agrícolas e portanto pode e deve ser visto apenas como um parasita a ser extirpado?

De outro lado, se o agricultor não concorre com sua presença para estabelecer com seus empregados contatos vivos, de alma a alma, embora condicionados às conveniências da hierarquia social, como querer que estes lhe tenham estima e dedicação? Ora, não há vínculo de subordinação que se mantenha duravelmente, sem gerar amargor e até revolta, se se fixa em termos meramente funcionais e econômicos.

Como se vê, há nesta ausência sistemática de tantos proprietários uma ocasião para graves omissões do dever, e para a criação, a longo prazo, de um clima pré-revolucionário entre os trabalhadores.

Na Revolução Francesa, levantaram-se os camponeses de terras em que os senhores não habitavam. Pelo contrário, os da heróica Vandéia lutaram por seus senhores, contra a Revolução: é que esses residiam nas terras de que eram donos. Não haverá aí uma lição da história?

Não queremos dizer, com isto, que não haja diversas circunstâncias que tornem legítimo e até mesmo necessário a certos proprietários não morar em sua fazenda. Também não dizemos que todos nela devem permanecer o ano inteiro. Mas que, em regra geral, ali estejam pelo menos o tempo necessário para terem com o trabalhador um contato vivo e autêntico, é o que nos parece indispensável se quisermos evitar que entre uma classe e outra se estabeleça um "vácuo" altamente propício à causa da revolução social.

Melhor se compreenderá talvez a utilidade deste convívio se se considerar que, segundo a doutrina da Igreja, o patrão – e com ele sua esposa e filhos – tem uma responsabilidade pelos trabalhadores. Com efeito, os empregados domésticos são, no lugar que lhes é próprio, um complemento do lar: formam a chamada sociedade heril. Os trabalhadores agrícolas, embora menos proximamente ligados ao lar do patrão, devem beneficiar-se desta atmosfera de família, inerente a uma concepção cristã da propriedade.

Cumpre que os patrões lhes conheçam as necessidades, as atendam no limite do que for justo, e ainda completem a ação da justiça com as larguezas da caridade. Ora, nada disto pode ser feito devidamente se o fazendeiro e sua família estão sempre ausentes do campo.

O trato afável de grandes com pequenos, conservando-se embora cada qual na sua posição, constitui preciosa tradição das verdadeiras elites no Ocidente cristão. Pio XII descreve este trato exímio nos seguintes termos:

"... as relações entre classes e categorias desiguais devem permanecer governadas por uma proba e imparcial justiça, e ser ao mesmo tempo animadas por respeito e afeição mútua que, embora sem suprimir a disparidade, lhe diminuam as distâncias e temperem os contrastes. Nas famílias verdadeiramente cristãs, por acaso não vemos nós os maiores dentre os patrícios e as patrícias, vigilantes e solícitos em conservar, para com seus empregados e para com todos os que os cercam, um comportamento consentâneo por certo com sua posição, mas escoimado de presunção, propenso à cortesia e benevolência nas palavras e modos que demonstram a nobreza dos corações; patrícios e patrícias que vêem neles homens, irmãos, cristãos como eles, e a eles unidos em Cristo com os vínculos da caridade, daquela caridade que mesmo nos palácios ancestrais conforta, sustém, ameniza e dulcifica a vida entre os grandes e os humildes, máxime nas horas de dor e tristeza que nunca faltam aqui?" (18).

E, mais do que às necessidades materiais, devem os patrões atender às espirituais, valendo-se de sua legítima influência para, pelo exemplo e pela palavra, inculcarem o amor de Deus e a prática da virtude.

Assim, evitar para os trabalhadores as ocasiões de contrair vícios, de praticar más ações, favorecer e até promover atos de piedade, facilitar a ação do Clero, aconselhando todos a que se casem religiosamente, freqüentem os Sacramentos, façam batizar seus filhos e os instruam na Religião, eis deveres que são específicos do patrão católico.

No tocante à ação do fazendeiro em favor da formação religiosa dos colonos, não negamos que muitos procederam assim no passado e assim procedem no presente. Daí lhes vinha – e vem – boa parte de sua popularidade. Mas como não lamentar que outros ajam de modo diverso? Se os agricultores que atendem inteiramente a esses deveres e os que os negligenciam também inteiramente são raros, grande é o número dos que só em parte os cumprem. E essa negligência parcial contribui para que, pouco a pouco, Jesus Cristo vá saindo da vida do campo.

De onde sai Cristo, com Ele sai a ordem. E de onde sai a ordem, ali entra a Revolução.

Di-lo sabiamente Pio XI: "... uma das causas principais do caos em que vivemos reside no fato de graves atentados desferidos contra o culto do direito e o respeito à autoridade – e isto se produziu desde o dia em que o mundo se recusou a ver em Deus, Criador e Senhor do mundo, a fonte do direito e da autoridade. Este mal também encontrará seu remédio na paz cristã, que se confunde com a paz divina e por isto mesmo prescreve o respeito à ordem, à lei e à autoridade" (19).


Notas:

(15) Cfr. Introdução, Delimitação do presente trabalho

(16) Carta de 18 de setembro de 1957, ao Emmo. Cardeal Siri, por ocasião da XXX Semana Social dos Católicos da Itália - A.A.S., vol. XLIX, n. 14, págs. 831-832.

(17) Discurso ao XIII Congresso da Confederação Nacional Italiana dos Cultivadores – "Osservatore Romano", edição hebdomadária em língua francesa, de 8 de maio de 1959.

(18) Alocução de 5 de janeiro de 1942, à Nobreza e ao Patriciado Romano – "Discorsi e Radiomessaggi", vol. III, págs. 347-348.

(19) Encíclica "Ubi Arcano", de 23 de dezembro de 1922 – "Editora Vozes Ltda.", Petrópolis, pág. 17.


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