Santo do Dia, 23 de setembro de 1969
A D V E R T Ê N C I A
O presente texto é adaptação de transcrição de gravação de conferência do Prof. Plinio Corrêa de Oliveira a sócios e cooperadores da TFP, mantendo portanto o estilo verbal, e não foi revisto pelo autor.
Se o Prof. Plinio Corrêa de Oliveira estivesse entre nós, certamente pediria que se colocasse explícita menção a sua filial disposição de retificar qualquer discrepância em relação ao Magistério da Igreja. É o que fazemos aqui constar, com suas próprias palavras, como homenagem a tão belo e constante estado de espírito:
“Católico apostólico romano, o autor deste texto se submete com filial ardor ao ensinamento tradicional da Santa Igreja. Se, no entanto, por lapso, algo nele ocorra que não esteja conforme àquele ensinamento, desde já e categoricamente o rejeita”.
As palavras “Revolução” e “Contra-Revolução”, são aqui empregadas no sentido que lhes dá o Prof. Plínio Corrêa de Oliveira em seu livro “Revolução e Contra-Revolução“, cuja primeira edição foi publicada no Nº 100 de “Catolicismo”, em abril de 1959.
Notre-Dame de Paris (escultura em seu exterior)
Temos aqui a história de um monge chamado Teófilo o qual, talvez, não foi o primeiro e sobretudo não foi o último de sua espécie: ele fez um pacto com o demônio, entregando-lhe a alma. Depois, porém, arrependeu-se e pediu a Nossa Senhora para resgatá-lo. Ela, após repreendê-lo por seu gesto, arrancou ao demônio o papel no qual Teófilo escrevera seu infame ato. Esta graça ficou celebrada no pormenor de um tímpano da catedral de Notre-Dame de Paris, em escultura em granito.
O fato ocorreu na Sicília, e deu origem à famosa legenda que inspirou a auto sacramental “O milagre de Teófilo”, dos mais célebres da literatura medieval.Foi escrita pelo clérigo Eutiquiano de Constantinopla, como testemunha ocular que foi do fato. Segundo o padre Crasset, confirmam-no S. Pedro Damião, S. Bernardo, S. Boaventura, S. Antônio e outros.
Qual era o caso de Teófilo? Vigário da Igreja de Adanas, na Sicília, ele dirigira durante muito tempo, com dedicação e acerto, os bens eclesiásticos, facilitando a seu bispo a direção das almas.
Porém, veio o dia em que o prelado entregou sua alma ao Criador, para grande desconsolo e tristeza dos fiéis.
Quem ocuparia a sede vacante? Não havia dúvida: Teófilo — dizia-se por toda parte.
O povo o estimava e o queria para bispo, dignidade que ele por humildade recusou, respondendo que sua vocação era continuar exercendo as funções de vigário. Por fim, outro bispo ocupou a sede vacante.
O novo prelado não confiava em Teófilo, e algum tempo depois removeu-o de seu cargo. A desolação invadiu então a alma do eclesiástico.
Enquanto ele vagava pela cidade, o demônio lhe sussurrava:
— Perder o cargo! A carreira! Como foram fazer isso a ti, Teófilo? Isso não pode ficar assim!
Foi nesse estado que o infeliz sacerdote bateu à porta do feiticeiro. Este, porém, negava-lhe uma solução fácil:
— Há só uma saída: invocar a ajuda dos infernos.
Teófilo vacilou por um instante. Porém o ressentimento lhe corroía o coração, e acabou aceitando a proposta. Invocado pelo feiticeiro, o demônio apareceu imediatamente em toda sua hediondez.
Com gritos, blasfêmias e palavrões, foi ditando a Teófilo os termos dos atos, que deviam ser escritos em pergaminho com o próprio sangue do ex-vigário e selados com seu anel.
Devia renunciar à Fé, à Igreja, à Santíssima Virgem e a Nosso Senhor Jesus Cristo.
Ajoelhando-se, o ex-vigário prestou vassalagem ao demônio, em sua forma monstruosa (na cerimônia medieval de vassalagem, o servo juntava suas mãos e o senhor feudal as cobria com as mãos, significando assim que concederia proteção àquele que se submetia à sua autoridade).
No dia seguinte o bispo reconheceu a falsidade das acusações contra Teófilo e pediu-lhe perdão, restituindo-lhe o cargo que ocupara. A fortuna e o prazer lhe sorriam, mas um profundo mal-estar o atormentava no interior.
Chorava sem cessar, tendo a consciência dilacerada de remorso pelo enorme pecado que havia cometido.
Era como se uma mão o prendesse pelo coração. Ademais, só ao pensar que sua felicidade iria terminar algum dia, tornava-se sumamente infeliz.
Sobretudo, enchia-o de terror o saber de quem era servo!
Finalmente, não podendo suportar mais tal situação, entrou um dia na igreja, e lançando-se aos pés de uma imagem da Santíssima Virgem, chorou amargamente e lhe disse:
— Ó Mãe de Deus, não quero desesperar-me. Ainda Vós me restais, Vós que sois tão compassiva e poderosa para me ajudar.
Fez a mesma coisa durante quarenta dias, renovando sempre suas súplicas e pedindo perdão.
Uma noite apareceu-lhe a Mãe de Misericórdia e disse-lhe:
— Que fizeste, Teófilo? Renunciaste à minha amizade e à de Meu Filho e te entregaste àquele que é teu e meu inimigo!
Teófilo, sem deixar de chorar, implorou a misericórdia da Mãe de Deus. Recordando o exemplo de outros pecadores como o Profeta-Rei David, Santa Maria Madalena e S. Pedro, terminou por dizer:
— Senhora, haveis de me perdoar e de me obter o perdão de vosso filho.
Ela respondeu-lhe que o perdoaria tê-la negado, mas não poderia perdoar a negação de Seu Filho:
— Consola-te, que vou rogar a Deus por ti.
Após ouvir estas palavras, reanimado, redobrou Teófilo as lágrimas, as preces e as penitências, conservando-se sempre aos pés da imagem de Maria. Reapareceu-lhe a Mãe de Deus, e amavelmente lhe disse:
— Teófilo, enche-te de consolação. Apresentei a Deus tuas lágrimas e orações. De hoje em diante guardo-lhe a gratidão e fidelidade.
O infeliz replicou:
— Senhora minha, ainda não estou plenamente consolado. Ainda conserva o demônio o ímpio documento em que renunciei a Vós e a vosso Filho. Podeis fazer que me restitua?
Compadecida, Ela mesma ofereceu-se para ir buscar o pergaminho no inferno. Durante três dias Teófilo aguardou prostrado em terra, ao cabo dos quais reapareceu a Virgem trazendo o pacto maldito, que entregou a Teófilo como símbolo do seu perdão.
No dia seguinte foi Teófilo à Igreja, e ajoelhando-se aos pés do bispo, que naquele momento oficiava, contou-lhe por entre soluços tudo quanto lhe havia acontecido.
Entregou-lhe o ímpio documento, que o bispo fez queimar imediatamente diante dos fiéis presentes, enquanto choravam todos de alegria, exaltando a bondade de Deus e a misericórdia de Maria para aquele pobre pecador.
Teófilo voltou à igreja de Nossa Senhora, e ao fim de três dias morreu contente, cheio de gratidão para com Jesus e sua Mãe Santíssima (Teófilo, o clérigo que vendeu a alma ao diabo, segundo uma ‘Biblia dos pobres’, Blog CATEDRAIS MEDIEVAIS (última consulta 7-7-2025).).
* * *
Em primeiro lugar, o pensamento que preside ao fato é muito bonito e os autores de contos medievais não cessam de por em realce. É a misericórdia incomensurável de Nossa Senhora que, atendendo à menor pequena manifestação de piedade filial, é capaz de fazer as coisas mais extraordinárias.
Esses fatos foram repetidos com enlevo pela Cristandade séculos afora, para fixar bem no espírito de todos que, por mais miserável que fosse a situação em que alguém se encontrasse, voltando os olhos para Nossa Senhora seria atendido. Ou seja, pelo fato de Nossa Senhora existir, de ser Quem é, há solução para todas as situações, mesmo para aquelas que parecem desesperar mais.
É o que São Bernardo exprime com tanta força no “Memorare” (“Lembrai-Vos”) que nós rezamos todos os dias: “Lembrai-vos, ó piíssima Virgem Maria…” Ou seja, Virgem piedosa, cheia de compaixão, de misericórdia.
“…que nunca se ouviu dizer, que alguém tendo recorrido à vossa proteção, implorado à vossa assistência e reclamado o vosso socorro, fosse por Vós desamparado. Animado eu, pois, com igual confiança, a Vós, ó Virgem toda singular, como a Mãe recorro e de Vós me valho. E gemendo sob o peso dos meus pecados me prostro aos vossos pés…”
Quer dizer, é a oração do pecador que caiu no chão, tal é o número e peso de pecados que carrega, e geme porisso. Pois bem, a esse pecador, Nossa Senhora, apesar de seus crimes, socorre.
“Não desprezeis minhas súplicas, ó Mãe do Verbo de Deus Humanado, mas dignai-Vos de as ouvir propícia e de me alcançar o que vos o rogo.”
Este episódio do monge Teófilo é uma ilustração do “Lembrai-vos”. É Nossa Senhora que assiste ao último dos miseráveis e o ajuda.
Mas, de outro lado, aí vemos um outro aspecto da personalidade sacratíssima de Nossa Senhora: seu ódio sacral. Como Ela avança contra o demônio, como o odeia. Ela que, em todos os séculos, esmagará a cabeça da serpente. Ela que odeia, portanto, o demônio, que odeia o pecado, que odeia o mal, é a Santa Virgem da intransigência. Na virgindade há qualquer coisa de intransigente. Na intransigência há qualquer coisa de virginal. A virgem é aquela que nunca transigiu com a impureza, que não aceita nem de longe qualquer insinuação, qualquer pedido da impureza. É intransigente contra a impureza.
Por outro lado a intransigência, em qualquer de suas formas, é uma virgindade contra uma espécie de pecado. O indivíduo que durante a vida inteira foi intransigente com o liberalismo, pode-se dizer que tem o espírito virgem de qualquer concessão ao liberalismo. O indivíduo que nunca teve transigências com a Revolução, dele se pode dizer que tem o espírito virgem de qualquer transigência com a Revolução.
De maneira que entre a intransigência e a virgindade, há profundas e misteriosas harmonias, que se podem observar na personalidade de Nossa Senhora, a Virgem Guerreira. A Virgem que é valente, guerreira, intransigente por ser virgem e é virgem por ser intransigente. Há, pois, uma profunda harmonia entre esses dois aspectos.
Então o artista quis representar isso muito bem nessa escultura, onde os senhores estão vendo a cena. O demônio apresentado como um ente hediondo. Observem a mão do demônio: são dois tocos de dedos, de dentro dos quais nascem duas unhas horrendas, monstruosas. Por outro lado, são duas garras afiadas e maléficas, de um ente hediondo física e moralmente. Dir-se-ia uma espécie de algo monstruoso dentro do qual nasceram duas garrinhas horríveis, pavorosas. Ele não tem pulso. O pulso constitui uma bonita transição entre a mão e o braço. Aqui já se abre como uma espécie de pé de veado, de cabra, que desfecha diretamente em algo semelhante a um braço, de maneira que nem permite uma movimentação adequada. É um monstro! O braço: aqui se avoluma enormemente e forma uma bola desgraciosa. Aqui tem umas dobras horrendas. O corpo dele é, ao mesmo tempo, um peito estufadinho e magérrimo. Vêm-se as costelas… Observem como a bacia salta para fora de um modo pavoroso. Foi imaginado com todo o luxo de pormenores… é um monstro!
Depois observem a bocarra: é um meio riso e meio sarcasmo. O sorriso, o olhar, a posição da cabeça e sua atitude ajoelhado diante de Nossa Senhora exprime perfeitamente isso, participa da covardia, da bajulação e do deboche. Não há nada de louvável nem de aceitável em sua atitude. É tudo horrendo.
Prestem atenção na orelha. A gente diria que alguém com uma tesourinha quis intencionalmente deformá-la. O tamanho desproporcionado dela… Esses olhos, pequeninos, com um triangulozinho, apertados para cá e com uma cicatriz ou sulco horrendo. Dir-se-ia que lágrimas imundas escorrem eternamente aqui: são as lágrimas do arrependimento sem atrição nem contrição; mas da dor, do ódio, do desespero. Nem é arrependimento do desespero. Olhem o topetinho dele. Ridiculamente pequeno…
Considerem Nossa Senhora que está prestes a cravar-lhe uma espada. O demônio, um ente tão monstruoso, depende de apenas um aceno dEla… que é tão frágil, uma simples virgem… Ela o jugula assim.
De outro lado, observem o nojo, o asco que Nossa Senhora tem em relação ao demônio. Até agora, é a única imagem que eu conheço dEla com fisionomia severa – nunca vi outra -, e empunhando uma espada assim contra o demônio. É o gládio da intransigência, o gládio da proteção materna contra o bandido que quis desviar seu filho. Então, com uma espada em forma de cruz, Ela ameaça o demônio e faz recuá-lo, reduzindo-o à impotência. Ela odeia o demônio porque é inimigo de Deus, é inimigo de Seu Divino Filho. Deus o odeia e Nossa Senhora é o reflexo fidelíssimo de Deus Nosso Senhor. Portanto, Ela está representada com a fisionomia carregada, e é natural.