A moral sinárquica

Reunião de 1° de julho de 1963 

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A D V E R T Ê N C I A

O presente texto é adaptação de transcrição de gravação de conferência do Prof. Plinio Corrêa de Oliveira a sócios e cooperadores da TFP, mantendo portanto o estilo verbal, e não foi revisto pelo autor.

Se o Prof. Plinio Corrêa de Oliveira estivesse entre nós, certamente pediria que se colocasse explícita menção a sua filial disposição de retificar qualquer discrepância em relação ao Magistério tradicional da Igreja. É o que fazemos aqui constar, com suas próprias palavras, como homenagem a tão belo e constante estado de espírito:

“Católico apostólico romano, o autor deste texto  se submete com filial ardor ao ensinamento tradicional da Santa Igreja. Se, no entanto,  por lapso, algo nele ocorra que não esteja conforme àquele ensinamento, desde já e categoricamente o rejeita”.

As palavras “Revolução” e “Contra-Revolução”, são aqui empregadas no sentido que lhes dá o Prof. Plínio Corrêa de Oliveira em seu livro “Revolução e Contra-Revolução“, cuja primeira edição foi publicada no Nº 100 de “Catolicismo”, em abril de 1959.

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Sub-repticiamente vai-se instalando em todo o Ocidente, constituindo um dos aspectos mais frisantes da decadência européia, uma moral peculiar, que destoa da moral dos séculos anteriores. Essa moral é centrada na idéia de que a produção de bens materiais é o valor supremo da vida de cada homem e da sociedade. O homem vale na medida em que por todos os modos, por ação e por omissão, concorre para a produção e poupança de bens materiais. Os vícios e qualidades valem – se não todos, pelo menos quase todos – na medida em que favorecem ou não a produção. O mesmo se pode dizer das nações. A produção de bens materiais é a suprema finalidade da vida do homem e de toda a sociedade humana.

A penetração dessa moral sinárquica é visível no Brasil, sobretudo nos centros mais industrializados, sob a forma de incremento da industrialização, considerada esta particularmente nos aspectos que vem tomando ultimamente, pois a industrialização atual já não é bem a do tempo de Getúlio Vargas, que tinha só em mira acumular milhões. O industrial de hoje visa, pelo menos remotamente, e como fim supremo, ser o gerente de um organismo imenso que ponha toda a sua ufania em produzir muito para a sociedade, e elevar assim o padrão de vida da população.

Do ponto de vista do interesse pessoal, o industrial de hoje, que trabalha imensamente, não sabe bem para que o faz. Para satisfazer ao maior número, baixa sempre o nível de qualidade. Visa somente fazer quantidade, com o mínimo possível de qualidade. A fórmula para a apresentação e propaganda dos produtos é: “Eles são bem bonzinhos”. É a industrialização do tipo das fortemente industrializadas cidades-satélites de São Paulo.

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Europa: monumentos antigos e estilo de vida atual. Paris, com um de seus históricos edifícios coberto por propaganda contemporânea (janeiro de 2015)

Na Europa esse espírito se nota no contraste entre os monumentos antigos, que deixam ver o esplendor da Europa passada, e o estilo de vida do europeu de hoje. As ruas e praças estão cheias de coisas grandiosas do passado – castelos, pontes, pórticos, etc. – mas o povo que vive no meio desses esplendores é cada vez mais do nível “automóvel moderno”: gosta de levar uma vidazinha moderna, bem boazinha. O europeu de certa categoria é ainda apegado às qualidades dos produtos fabricados segundo a boa tradição antiga. Mas tudo quanto é produto novo, moderno, não visa mais atingir a qualidade do passado. O que é antigo, quando muito ainda se mantém, mas de um modo ou de outro tende a decair. O que se produz de novo é sempre na linha lata e vira-lata.

Isto significa uma tendência para generalizar uma ordem de produção completamente diversa da antiga. E o europeu desse tipo é inteiramente monopolizado pela produção social. Seu espírito, sua mentalidade, seu modo de ser, são marcados pela idéia de economizar o mais possível. Também para ele a produtividade passa a ser um valor supremo. É o “bem bonzinho” no nível do europeu.

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Móvel em estilo escandinavo, em voga em países europeus 

O homem, mero produtor de bens materiais úteis

Pergunta-se agora por que chamar a isso “moral sinárquica”. Na linguagem corrente dos meios da direita européia, qualifica-se de sinarquia um clã de nababos internacionais, a que eles atribuem o estado de espírito seguinte: Não querem chegar ao comunismo, mas ao mesmo tempo são cheios do espírito da Revolução. São conservadores no pior sentido da palavra, pois nada querem corrigir e nada destruir. Para combater o comunismo, estão dispostos a gastar qualquer soma, mas são nitidamente contrários a qualquer volta ao passado. Eles não se importam com o lento evoluir da sociedade para a esquerda, desde que por ora não se chegue ao comunismo.

A atuação deles resulta em uma forma lenta de Revolução, posta em conflito aparente com uma forma rápida de Revolução, que é o comunismo. É uma camorra que, em última análise, favorece a Revolução considerada num plano muito amplo – para os comunistas, e mais até do que os próprios comunistas – embora, na aparência, seja contra o comunismo. Em regiões onde o comunismo produziria cristalizações, e apenas nessas regiões, a sinarquia as desvia. Ao mesmo passo as conduz ao socialismo, por essa forma que acabo de expor: estilo de vida dominado pela trivialidade rasa do produto “bem bonzinho” e mística do trabalho e da produção.

Esse socialismo pode ser diretamente estatal, como pode ser por algum tempo o socialismo das empresas particulares gigantescas, menos dirigidas por proprietários do que por chefes de empresa, cada vez mais tendentes, eles também, à proletarização.

Assim, por essas duas formas de socialismo – o estatal e o das grandes empresas – que se distinguem bem em teoria, mas que convivem bem na prática, e das quais a segunda prepara o caminho para a primeira, a sociedade vai deslizando para o comunismo. É uma bolchevização lenta e rósea, desapercebida, sorrateira e sem violência.

Os capitalistas sinárquicos, para fazer andar os seus planos, produzem, promovem e estimulam de todos os modos essa moral sinárquica, que é centrada em torno da produção de valores econômicos e da consideração do homem como mero produtor de bens materiais. Mas para eles a produção econômica digna de aplauso não é a de quaisquer bens, mas dos bens úteis para o desenvolvimento humano material do homem. As indústrias de mero escopo cultural não são por ela aplaudidas com calor.

As características da moral sinárquica

Essa moral sinárquica tem as seguintes características:

1) É igualitária;

2) É despersonalizante;

3) É materialista;

4) Erige como critério de moralidade a produção econômica.

Antes de examinarmos cada uma destas características, estudemos o modo de avançar dessa moral.

Desde a Enciclopédia até 1939 houve classes desiguais, e uma imensa luta ideológica através de cujos lances a Revolução igualitária caminhava, nivelando gradualmente essas classes. As pessoas tinham convicção, faziam raciocínios, adotavam modos de ver que, ainda nos adeptos de idéias erradas, revelavam um apreço à lógica, apreço este inerente às velhas e boas tradições da Civilização Cristã. Era necessária a revolução sofística para derrotar as tendências, que se exprimiam e conquistavam terreno na ordem das idéias.

A revolução tendenciosa – por exemplo, o sentimentalismo que precedeu o romantismo e a Revolução Francesa – foi nascendo do declínio da lógica, e por sua vez foi acentuando este declínio. Ao par da razão, o sentimento começou a se manifestar claramente na luta entre a Revolução e a Contra-Revolução. Subsistia um elemento ideológico na Revolução, ao par de um elemento tendencioso cada vez mais influente. A revolução sofística ia perdendo terreno.

Em nossos dias esse fato ainda mais se acentuou, concorrendo para ele o “geração-novismo”. Na realidade, nas gerações anteriores ao geração-nova de hoje, o geração-novismo já despontava. Daí o esgueirar-se sinuoso das más tendências. Não havendo convicções firmes, em lugar de discuti-las, melhor era ir ocupando lentamente o espaço mental das pessoas ou das massas, com novas convicções.

O processo de entrada sub-reptícia

Sem atacar o passado, mas substituindo as temáticas passadas por temáticas novas, ela vai entrando. Mas seu processo é o da entrada sub-reptícia. Os homens até continuam amigos da ordem, da hierarquia, etc, mas esta atitude se vai tornando sempre mais platônica.

A revolução sofística prolongou-se durante a Revolução Francesa, mas atingiu seu auge ao longo do século XIX. Nas duas últimas décadas deste século, porém, dado o clima de pacifismo que então se estabeleceu, a revolução sofística vai diminuindo. A necessidade de discutir é substituída pela tendência a cada vez mais ir silenciando, e desaparece a necessidade de atacar ou defender dialeticamente a verdade. O gosto da discussão vai esmorecendo através das décadas, para chegar até essa quase morte em que está em nossos dias. O terror da discussão é um dos traços que caracterizam os meios católicos de hoje. Tem-se medo, e medo-pânico, das discussões internas e externas.

Vínhamos analisando as características do avanço doloso da revolução tendenciosa sinárquica. Importa descrever como são as relações dentro da mentalidade do homem de hoje, entre os velhos depósitos doutrinários que ainda existem e a mentalidade nova dessa moral sinárquica, de que estamos tratando.

Esses valores de séculos anteriores continuam vivos hoje em dia. Perderam alguma coisa de sua vivacidade, mas seria exagero dizer que morreram. Poder-se-ia pois objetar que exageramos a importância da moral sinárquica. Mas a afirmação que estou fazendo deve ser entendida à luz da imagem que usei em “Revolução e Contra-Revolução“, a respeito daquela árvore (figueira-brava) que envolve as outras árvores e acaba lhes devorando a substância (cfr. op. cit, Parte II, cap. III, 1, letra B).

Evolução do ideal humano nos últimos séculos

O ideal do homem na Idade Média era o santo. No século XVIII, o viveur. No século XIX, o burguês brilhante. No século XX, o burguês produtivo.

No século XVIII, o ideal do homem não foi mais o santo, como na Idade média, mas o homem cujo esplendor consistia em fazer da vida uma fonte de prazer da alma e do corpo. Fonte de prazer elegante, refinada, nobre, ao menos em suas aparências, se não em seu conteúdo moral. É o homem viveur, isto é, que ama a vida pelo prazer de viver, aristocrático e elegante, que precedeu a Revolução Francesa.

No século XIX, com o advento da burguesia, este ideal sofreu alguma transformação. O grande homem da sociedade nova passou a ser o burguês brilhante, sobretudo visto enquanto homem que exerceu profissões liberais, ou o artista. Ser um grande médico, um grande advogado, um grande cientista, um grande jornalista, um grande político, um grande artista, era o ideal do homem respeitável e cercado de consideração. Quando uma pessoa muito rica favorecia as artes, ao menos pelo mecenato, tinha uma influência na política, e a esse título intervinha no jogo das idéias, das discussões e da vida intelectual, e ainda a esse título era respeitável.

Mas o século XIX, que conheceu tantos “nouveaux riches” (novos ricos), desprezou também profundamente o “nouveau riche”. Colocou-o em sátiras, em canções, fez dele a imagem própria do egoísta desprezado. Não se pode dizer, portanto, que o ricaço tenha sido o ideal do século XIX.

Quando passamos para o começo do século XX, com a industrialização, o progresso das ciências naturais, o progresso das técnicas, o comércio internacional, o acúmulo de grandes fortunas, o prestígio vai cada vez mais se constituindo em torno da grande produção econômica. Fazer grandes fortunas acaba sendo algo prestigioso. Pouco importa que alguém seja deseducado, ridículo, pretensioso, que haja feito sua fortuna de modo prosaico ou até desonesto: ele é rico.

Com a baixa cada vez mais pronunciada dos valores morais e intelectuais, com o cinismo e o oportunismo que, em virtude da decadência geral da moralidade, tornam-se cada vez mais acentuados, há mais condescendência para com o parvenu, e chega a haver em relação a ele uma certa consideração.

Essa admiração, que existiu na Europa de alguma maneira, foi imensa nos Estados Unidos. O self-made man, o homem que se fez por si mesmo, o rei da cebola enlatada ou do chiclet, com uma patente que lhe permite acumular fortuna inaudita, são tipos admirados e venerados pelos homens do começo deste século, e de todo o período que se estende mais ou menos até o começo da Segunda Guerra Mundial.

Esse parvenu, que não é nem de longe o fidalgo de outrora, procura quanto possível parecer-se com ele. Compra um título de nobreza, casa-se na aristocracia, constrói palácios parecidos com bolos de casamento. Por um luxo estúpido – banhos de champagne, por exemplo – procura imitar os requintes da antiga nobreza.

A miséria do pós-guerra gera o espírito sinárquico

Só mais tarde, com o advento da miséria no pós-guerra – a Guerra Mundial trouxe a miséria, e pari passu o horror da miséria, da dor e de qualquer forma de sofrimento, já existentes anteriormente, mas que se acentuou muito – surgiu como tipo social ideal outro personagem. A fobia da miséria trouxe o desejo obsessivo de saciar a fome de todos, e a idéia de produzir o mais possível e o mais barato possível para este fim. A idéia do lucro individual foi substituída pela idéia do serviço coletivo. Aparece o tipo sinárquico de que falamos.

Em que relação essas coisas estão umas com as outras? A árvore do século XVIII, que seria a admiração pelo homem elegante, nobre, etc, não foi de todo destruída pela árvore do século XIX, que é a admiração do burguês brilhante. Pelo contrário, o burguês brilhante procurava, em muitos de seus modos de ser, tornar-se igual ao nobre, imitando quanto possível os valores espirituais do nobre, sua cultura, sua instrução, suas maneiras. E a nobreza, embora em estado de decadência, ao longo do século XIX continuou a exercer uma influência que, debaixo de alguns aspectos, era preponderante. Pois se ela já não era a classe dominante, servia de ideal e de modelo para a classe dominante.

Mas a relação de forças entre a classe burguesa e a aristocrática era tal, que nessa coexistência o espírito burguês era como a árvore que vai comendo a outra. No mundo burguês, os valores aristocráticos existiam à maneira da árvore velha, da madeira podre que vai sendo devorada e morta pela madeira nova e viva. Cada dia marcava um retrocesso da nobreza e um progresso do burguesismo.

Depois do burguês intelectual veio o burguês de grandeza calculada segundo a matéria, e que é o nouveau riche. Este já não imita o nobre em seus valores espirituais, mas em sua opulência material. É como uma outra árvore, que come esta.

Depois desta vem por fim o burguês produtivista, que já não tem nenhuma forma de grandeza, a não ser a grandeza produtivista, coletiva. Ele já não imita o nobre em absolutamente nada. Constitui uma outra árvore, que por sua vez devora o burguesismo do parvenu miliardário.

Como se vê, a força dinâmica mais recente, e que vai comendo as outras, é a desse burguesismo sinárquico novo. Mas ainda existe na opinião pública, em estado de decadência, a admiração pelo “nouveau riche”; em estado de decadência ainda maior, o apreço ao burguês intelectual, ao professor universitário, etc; em estado de decadência maior ainda, o apreço ao nobre. Nenhum desses apreços morreu inteiramente, mas cada uma dessas árvores, antes mesmo de ter comido a anterior, vai começando a ser comida por outra que lhe sucede.

Isto explica que essas várias admirações continuem a existir, mas em estado de agonia. A admiração pelo nobre vai quase se aniquilando, enquanto a admiração pelo burguês intelectual está um pouco mais viva. Mas o nobre poderá dizer ao burguês: “Fui o que tu és, tu serás o que sou”. O burguês poderá dizer o mesmo ao nouveau riche, e este poderá dizê-lo ao patrão da era sinárquica.

Novo ideal: o líder sindical da sociedade proletarizada

O sinarquismo não eliminou inteiramente esses valores anteriores, mas cada vez mais a vida e a seiva se vão retirando deles. Só o sinarquismo é que tem hoje verdadeira vida. Mas já se delineia a importância do homem de amanhã, que é o líder sindical da sociedade totalmente proletarizada. Estamos por ora na era do prestígio da produção.

Imaginem um industrial importante, que está na sede da Federação das Indústrias conversando com amigos, antes de uma reunião. Um amigo lhe pergunta: “Seus filhos, o que fazem?” Suponhamos que ele tivesse que responder: “Eles não trabalham, porque sou rico, e gozam a vida”. Esta resposta, que seria reputada mais ou menos normal cem anos atrás, hoje um homem não ousaria dá-la. Não ousaria dizer que tem filhos totalmente improdutivos. Sentir-se-ia um pouco menos envergonhado se pudesse dizer que seus filhos, não se tendo habituado ao ambiente brasileiro, foram viver na Europa. Lá, não se sabe como – pois ele dirá que não concorreu em nada para isso – eles se deram bem com os ambientes aristocráticos, e lá vivem, sendo até muito bem aceitos. Um está noivo da filha do príncipe tal, e outro da filha do duque tal. Ele diria isto com certo constrangimento.

Mas como aqui ainda se manifesta a aquisição de um certo valor, embora arcaico, anacrônico, execrando, ele o diz com menos vergonha do que ao afirmar simplesmente que o filho não trabalha, e que vive exclusivamente de rendas. Mas, mesmo assim, ele não o afirma com muita satisfação. Tanto é que, se tivesse um filho grande professor universitário, comentaria a situação deste de modo diferente. Afirmaria que este seguiu caminho diferente, metendo-se pelas pesquisas, e vive para a ciência; não se faz idéia de como trabalha; teve resultados internacionais, recebeu tal prêmio, etc. Isto já é mais bonito, comparativamente ao nobre.

Endeusamento do espírito sinárquico

Está claro que esse industrial gostaria mais de dizer que seu terceiro ou quarto filho é um especulador “pé-de-boi”, que trabalha de manhã à noite e vai indo muito bem, está acumulando uma fortuna pessoal bem razoável. Mas isto já não é tão bonito, porque não lembra tanto produção como obtenção de lucros por meio de um jogo de dinheiro. Em algumas rodas, seria melhor dizer que o filho vai bem, tendo começado na estaca zero, e o pai não o ajudou em nada. Não quis nem começar na empresa do pai, e foi para outra firma. Lá progrediu tanto, que foi promovido e transferiu-se depois para a empresa do pai, onde é gerente. Trabalha muito, é talvez o maior “pé-de-boi” da fábrica. É o primeiro a entrar, o último a sair, não tem privilégio de nenhuma espécie; é muito simples, amigo de todos os colegas, freqüenta o clube dos empregados, etc.

Como é um pouco puxado ir tão longe na via da proletarização, o pai acrescenta que agora ele está noivo de fulana, uma granfina. Mas é este último filho que daria ufania a seu pai, porque é o mais produtor. Na medida em que a atividade do filho está mais próxima da produção econômica, que é reputada o ideal, e na medida em que esta produção econômica está voltada para a coletividade e não para o lucro do indivíduo, o pai se ufana do filho.

Imaginemos a marcha contrária, se alguém perguntasse a um pai como iam seus filhos e ele começasse por este, com toda ufania. Quando falasse do especulador, já o faria com menos entusiasmo. Com menor entusiasmo ainda, do professor universitário. Do aristocrata, com franco constrangimento. E uma vergonha sem fim, quando falasse do filho “inútil”.

Através dessas duas gradações, creio que torno claro como os outros valores estão moribundos. Quase todos só podem ser chamados valores de modo muito relativo, porque em parte dão vergonha. Pelo contrário, o valor produção é o único autêntico que existe, que causa ufania inteira e nenhuma vergonha.

Exemplificando com as filhas

Expressando isto de modo talvez mais frisante, imaginemos que se tratasse de filhas. Na sociedade brasileira ainda não está bem aclimatada a idéia de que a mulher também deve ser um fator de produção econômica. Se um pai responder que sua filha é ideal, porque não sai de casa, faz seu tricô e leva sua vida, o interlocutor reagirá com um “ah!” indiferente, qualificando no seu íntimo a moça de boba e sem graça.

Se disser que ela passa a vida divertindo-se, o interlocutor sorrirá, mas pensará em seu íntimo: é uma inútil. Se o pai disser que ela está na Europa, e lá freqüenta a alta sociedade, dá-se bem no ambiente, é muito aceita e até está noiva do príncipe tal, será bem recebido, pois isto, para uma mulher, ainda fica bonito. O mesmo valor nobreza, que para um homem é feio porque distancia da produção, para uma mulher, da qual ainda não se exige que seja economicamente produtiva, ainda fica bonito: não ficou babando em casa, pelo menos faz algo. Se disser que ela se casou com o príncipe tal, porque o conheceu quando fazia estudos na Sorbonne, causará admiração: além de casar com o príncipe, estudou literatura comparada na Sorbonne!Mas concluiriam que é um colosso se dissesse dela outra coisa: está em casa, ajudando o pai nos negócios, e vai muito bem; está noiva de um rapaz, que é empregado do pai, mas que está fazendo carreira; os dois vivem para o trabalho, mas se gostam muito. Serão considerados como um par de pombinhos encantadores, pois isso serve dedicadamente o ídolo do dia, que é a produção.

Há ainda mais tolerância para com a improdutividade da mulher, mas até a própria mulher já é julgada segundo a maior ou menor proximidade desse ponto ideal, que é a capacidade de produção econômica.

Uma mística humanitária por detrás da moral sinárquica

Como sempre acontece, essas morais erradas se baseiam em místicas unilaterais. Concretamente, em que mística está baseada esta moral? A mística é a seguinte: Há gente que padece fome, padece falta de remédios, padece de uma vida indigente, desconfortável, padece de todas as limitações que o analfabetismo traz consigo, está sujeita a riscos de acidente, de desgaste no trabalho, padece da dura contingência de ter superiores e de ter que obedecer ordens. Esses casos são numerosíssimos, talvez a maior parte da humanidade se encontre nessa situação. Mas ainda que não fossem muito numerosos, eles são estritamente insuportáveis, e a humanidade tem obrigação absoluta de os fazer cessar quanto antes. É uma obrigação tão e tão imperiosa, que tudo se deve sacrificar a isto. Qualquer luxo é roubo, porque subtrai o necessário a esta gente necessitada.

Daí vem uma tendência uniforme e onímoda de baixar o nível de todas as formas de produção, para só produzir aquilo que for o essencial para acabar inteiramente com esse estado de miséria entre os homens.

No seu primeiro aspecto, esta mística é humanitária. Baseia-se na utopia de que se podem fazer cessar todos os infortúnios; baseia-se no pressuposto de que a dor por privações físicas é a maior que o homem possa ter – é curioso que essa mentalidade produtivista ignora os sofrimentos morais, ignora os sofrimentos e os problemas espirituais, só considerando as necessidades materiais; qualifica-se na linha daqueles que a Escritura censura porque têm por deus o próprio ventre – e acha que o sofrimento material é algo de estritamente insuportável e revoltante. É preciso fazer cessar isto, fazendo cessar todas as formas de luxo, prazer, requinte, etc.

Por detrás da mística humanitária, o igualitarismo

Por detrás dessa idéia humanitária, que é eminentemente laica e completamente despida do sentido da cruz e do espiritualismo, aparece uma outra mística: o igualitarismo. Fica insinuado que, independente disso, um homem possuir mais faz o outro sofrer, pelo desejo que este tem de possuir o que ele possui. Um perfeito humanitarismo redundaria numa igualdade completa. A igualdade é necessária, enquanto a fome de todos não estiver eliminada; mas mesmo que todas as privações materiais cessassem, a desigualdade seria irritante; constituiria uma falta de caridade. Aparece assim a igualdade completa, não como uma necessidade de momento, para eliminar a fome, mas como a própria ordem simpática e normal da humanidade.

Esta posição pode ser chamada cristã, no sentido blasfemo em que os filhos da Revolução entendem e exploram a Democracia Cristã; isto é, um cristianismo edulcorado, laicista, que tem horror à cruz, cuja caridade consiste num ódio a toda espécie de sofrimento e na mera visão do sofrimento material. Dir-se-ia que agir como acabo de dizer é muito cristão, que corresponde mesmo à função social da propriedade. Em primeiro lugar, para eliminar a miséria, e em segundo para estabelecer a igualdade. Creio que este traço radicalmente igualitário é essencial no estado de espírito que constitui a democracia “cristã” revolucionária, especialmente em nossos dias.

Vejamos qual é o papel da produção dentro de tudo isso. Se todos produzirem em larga quantidade o indispensável para todos, ninguém acabará sofrendo miséria. O ideal é que todos tenham apenas o suficiente, para que não falte nada a ninguém. O trabalho é para isto. Não é nem ruim nem gostoso, é um dever. E é uma atividade que se tem de realizar. É claro que se se desviarem fábricas, máquinas e braços para fundar e manter indústrias de luxo e de prazer, esses recursos serão subtraídos às indústrias que produzem o indispensável para o sustento do homem. Por causa disso é preciso eliminar as indústrias de luxo e de prazer.

Por outro lado, o gozar de requintes e de volúpias tira a disposição para o trabalho. É portanto um estado de alma mole e suspeito, aos olhos do trabalhista sinárquico moderno. Esses requintes complicam a vida. O poeta, o artista, o músico, todo mundo os vê como entes complicados, quase tanto quanto o aristocrata. Muito mais simpática é essa humanidade nova, que não sobe a essas esferas bizantinas, mas se preocupa exclusivamente em produzir. Deve-se acabar com requintes e complicações, para que todo mundo trabalhe, seja simples, contente-se com pouco, para que a grande massa econômica possa funcionar bem e contentar a todos, obtendo um progresso uniforme de todos. Os próprios homens têm que mudar seu modo de ser. Não podem ser nem estáveis, nem solenes, nem pensadores, mas têm que ser homens rápidos, ágeis, superficiais, muito trabalhadores para produzir muito, porque pensar muito não enche a barriga de ninguém.

Vimos assim os elos entre o igualitarismo, a mística do trabalho e a mística da produção sinárquica, e como o trabalhismo ou produtivismo sinárquico acabam sendo a mesma coisa que o igualitarismo.

O caráter utopista do espírito sinárquico-produtivista

É claro que esta influência produz todo um ambiente social, que analisaremos melhor em breve. Antes de ir adiante, insisto no caráter utopista desse estado de espírito: “É preciso ser otimista. Nada vai complicar, nada vai dar encrenca, tudo dará certo. Chorar não adianta. A norma é `quebre a perna e continue sorrindo'”. Isto comove pouco os parentes do acidentado, e é bom porque eles podem ir trabalhar com o espírito despreocupado, não dá aborrecimentos nem preocupações ao médico. De que adianta gemer, se o médico sabe o quanto dói uma perna quebrada? Um médico não aborrecido trata de dois doentes; se você sorri, concorre para consertar a sua perna e a do outro. De maneira que certo sentido de justiça social leva a quebrar a perna e continuar sorrindo. É certo que a técnica vai acabar com todas essas dores. É preciso olhar com otimismo o mundo futuro.

Com o estado de espírito otimista o homem pode auto-sugestionar-se, e até sentir menos dor; a dor é uma espécie de fantasia e lamúria do passado. A prova disso é que as mulheres conseguem ter crianças sem dor, por uma forma de hipnotismo e um jogo de cotovelos. E se a ciência não conseguir eliminar os homens que escorregam e quebram a perna, chegará pelo menos o dia em que o homem, quando quebre a perna, terá um certo jeito de evitar a dor na perna. Fica esperando na calçada, com uma garrafa de coca-cola para se distrair, até que possa ser levado para o hospital. A burocracia, como uma técnica simplificante da alma humana, eliminará todas as dores reais ou imaginárias. De maneira que sejamos otimistas, estejamos alegres, vamos sorrir.

É evidente que há em tudo isto uma imensa mentira, uma imensa utopia, mas é preciso nela acreditar, para não ser um antipático, um marginal, pois só esse tipo perpetuamente otimista e risonho é simpático.

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Hospital de Beaune (França), fundado em 1443 por Nicolas Rolin, chanceler do Duque de Borgonha, para acolher doentes pobres, que eram cuidados por religiosas. Sua construção ainda hoje atrai turistas de todas as partes do mundo, tanto por sua ornamentação como pelo requinte material que lá era ministrado aos carentes. Constitui exemplo característico de uma concepção católica oposta à “moral sinárquica”. Acima, vista externa de seu pátio. Abaixo, o grande salão dos pobres.

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Repercussão desta mentalidade na medicina e nos hospitais

A repercussão desse gênero de atitudes na medicina é enorme. Por exemplo, os parentes não devem ficar junto com o doente. O médico e a técnica cuidam do doente; parente é compaixão, é companhia, é misericórdia, é alma. Ora, para esse mundo produtivista não há alma. Um homem que quebrou a perna não tem dor na alma, tem dor na perna. Portanto, de nada adianta estar perto dele algum parente, porque isto não encana o osso quebrado, e é da fratura que ele sofre. Fique sozinho, sorria sempre e incomode pouco os enfermeiros, para que eles possam tratar de outros doentes, e para que possam também viver dentro do horário e da vigilância sindical, porque também eles têm o direito de não sofrer. Você deve se carregar a si próprio, para não pesar em cima dos outros. Já não basta não estar trabalhando, diminuindo a produção pela imobilidade de ficar nessa cama? Parentes, fora! O doente sozinho, sem campainha na cabeceira, ou sujeito a severos pitos se tocou a campainha sem necessidade. E agüente-se sorrindo. Só assim o hospital produtivista vai para a frente.

É evidente que a eutanásia entra muito nessa linha. Eliminação de crianças que nascem com algum defeito físico, ou dos velhos que não querem mais viver, ou daqueles que se acha que não deveriam mais querer viver, dos incuráveis, etc. Também entra muito o regime para emagrecer. Nunca a medicina descobriu tantos inconvenientes em se ser gordo. De fato, o pior do gordo é que ele carrega consigo muitas proteínas que deveriam pertencer a outro. É uma espécie de tubarão da gordura, monopolizada por ele na ordem universal, enquanto há, em alguma Malásia, um homem magro, tísico, que com aquelas gorduras viveria bem. O gordo é um egoísta, e a esse título deve ser mal visto. Então a medicina recomenda a magreza.

Como poderíamos descrever um tipo humano formado segundo esse espírito? Descrevamo-lo no homem e na mulher. Como todas as diferenciações atrapalham a produção – porque quanto maior for a estandardização, tanto maior será a produção – o tipo homem e o tipo mulher devem ser diferentes o menos possível. Mas alguma diferença ainda subsiste, porque o peso da tradição é grande.

É preciso dizer que a moral sinárquica é muito feminista, pois quer masculinizar a mulher. Ela é também um tanto masculinista, no sentido de querer efeminar o homem, para estabelecimento de um quid médio. Mas ela é sobretudo infantilista. Quer fazer do homem e da mulher um ente idiota e sem alma – o crianção, o tolão, o bobão, o engraçadão – tendo todos os defeitos da irreflexão e da espontaneidade infantis, quase como que num homem mentalmente retardado.

Na infância os sexos se diferenciam menos. Reconduzindo os homens à infância, a sinarquia obtém o máximo de irreflexão, de agilidade física, de entrainement para o trabalho e de equiparação de tudo e de todos. De maneira que a redução de todos ao estado de adolescência física e infantilidade intelectual é o ideal para o qual conduz o sinarquismo. 

A moral sinárquica exemplificada num casal

Como estamos analisando o homem e a mulher, consideremos um casal com filhos pequenos (este é o ápice da vida matrimonial sinárquica, quando todos são jovens e tudo vai bem). Nas famílias muito ricas, o que caracteriza esse casal é que eles nunca se proletarizam, nunca passam para uma classe social diferente. Mas são sempre, dentro da respectiva classe, os mais proletários que possam ser, para não caírem de classe.

Imaginemos, por exemplo, um casal riquíssimo. Pode ter uma casa grande. Mas nessa casa grande as preocupações práticas vão ser muito maiores do que as preocupações estéticas. Antigamente a grande preocupação era mobiliar a casa de modo bonito, e até suntuoso. Cozinha, copa, quarto de empregada, depósitos, etc, equipados de modo suficiente. Hoje, não. A ufania de uma moça é ter uma cozinha ultra-lavável, organizada com o espírito prático de uma usina, em que tudo funciona como se fosse uma usina. A lavanderia e o quarto de passar roupas no mesmo estilo; os quartos de criados, estupendos. Depósitos à prova de todas as espécies de deteriorações, com luz neon, com ventilação muito boa, fáceis de limpar, claros.

Tudo isto faz a ufania máxima de uma dona de casa sinárquica que, de bom grado, economiza algo de supérfluo na sala, para poder ter a cozinha ou o banheiro dos criados do melhor modo possível. Na casa suntuosa ainda há verbas para automóveis em quantidade, mas já não se procura o automóvel representativo. Se for um automóvel muito caro, será uma bonita perua, mas já com utilidade funcional para transportar frangos, hortaliças e crianças da chácara ou para a chácara, do mar ou para o mar, excursões no campo, etc. O ideal é ter dois ou três carros pequenos, fáceis, que a própria dona de casa dirige, e a governante também dirige. Sendo necessário, qualquer delas vai à feira e faz compras.

Criados, se forem necessários, mas o melhor é ter o menor número possível. A mania maior é a da limpeza. O criado pode se esbaldar como quiser, mas tudo tem que estar claro e limpo. Isto se compreende. O que não está limpo, a sujeira, traz consigo uma certa imagem da morte, do mal. Isto contrasta com o espírito utópico que domina essa mentalidade.

Nas casas pobres e nas casas de classe média, este espírito também existe de algum modo. Suponhamos uma casa de família da pequena ou média burguesia. Tudo é claro, limpo, lavável, substituível facilmente, tudo deve estar sempre novo. A patroa mesmo, tendo uma ou duas criadas, limpa também alguma coisa; a diferença entre patroa e criada não é tão grande, como também a diferença entre o patrão, o chauffeur e os criados não é tão grande assim. Conversam, têm certa amizade. Evidentemente, a tendência é para a supressão da criada. É bonito, porque indica produção.

O casal micro-sinárquico, em uma casa modesta, na medida do possível tem um lar mecanizado, um ótimo aspirador de pó, batedeira elétrica, liquidificador, geladeira, televisão. Ar condicionado, que elimina o calor e é uma delícia. É engraçado que há um certo pudor em sentir frio, nessa gente assim; há uma espécie de fobia contra o calor. A tal ponto que se vai à praia, e não se diz que se sente calor. Faz-se de conta que o calor não incomoda. O sentir calor é uma coisa ignominiosa.

Na casa do casal médio tudo tem que ser barato, mas o barato tem que ter um aspecto alegre, pimpão e um pouco aparatoso, no sentido de coisa durável. Mas nada grave, nem sério, nem solene. Um retrato de bisavô seria chocante, dentro desse ambiente. Os filhos também devem ser alegres, saudáveis, brincar uns com os outros. A mamãe trata dos filhos.

A propósito destes se divide o trabalhismo em duas tendências: 1) Uma é maltusiana: nada de muitos filhos, porque pode acabar faltando comida; 2) Outra é produtivista, isto é, fomenta a natalidade: que se produza, que nasçam filhos, porque cada filho é um braço. Uma tendência é para gosto de protestante, e a outra para gosto de católico. 

O caráter despersonalizante da moral sinárquica

Os divertimentos dessa gente sinárquica são simples. Em primeiro lugar, não têm vastas relações sociais, pois isto significa prestígio, e prestígio significa alma. É um valor espiritual, ou seja, uma ficção, um trambolho. O casal tem a rodinha pequena de amigos, em que se diverte. É uma roda limitada, em que as relações são muito simples, não há cerimônias, e tudo se passa na mais estreita intimidade. Prazer é a televisão, uma conversa rápida e ligeira, insignificante. E todos esses prazeres são em série. Há uma indústria de divertir, que serve à cidade inteira e a todas as classes sociais.

O automóvel para todo mundo, pois todo mundo tem um ideal de ter automóvel. Divertem-se por ondas. É moda ir fazer veraneio em tal ilha, e todo mundo vai. Ninguém precisa estar pensando, para escolher seu prazer, pois este é completamente socializado, produzido em série e para todo mundo. E todo mundo tem um nível suficiente de diversão. Isto de estar elogiando diversões requintadas, para grupos pequenos, é antipático.

É só nessa atmosfera socialista que a gente se diverte. O trabalho domina tudo, de tal maneira que o prazer acaba sendo a imagem do trabalho. A pessoa não se diverte mais como um paxá, sentado em suas almofadas com um narguilê, ou como um intelectual ou nobre em salões brilhantes, mas fazendo camping, surfando, subindo montanha, fazendo excursões difíceis de toda ordem, porque isto é a imagem do trabalho. Note-se que a caçada não é muito apreciada, pois o humanitarismo tem pena dos animais. O prazer esportivo é bom, porque prepara a pessoa para trabalhar, e assim o lazer não diminui a produtividade dela.

Devemos admitir que o próprio trabalho é coletivo. O homem de inteligência excepcional deve ser posto de lado. A equipe produz regularmente bem, e produz para todos. Assim é que é bom. E as universidades formam léguas de pessoas com espírito limitado e geométrico, muito bem informados e dotados de perfeitos fichários, para trabalhos desse tipo. É mesmo essa a universidade trabalhista: só dá informações, não dá estruturas, concepções gerais. As pessoas têm pilhas de fichas, resolvem casinhos concretos, a vida material continua, e tudo está bem.

Esse tipo de gente não simpatiza com o horrível da arte moderna. Isto porque o horrível é o sublime do feio, e também não pode ser aceito. A obra de arte se reduz a esses caixotes tipo Brasília, compridos, espichados. Não se precisa ser artista para fazer isso, basta ter uma equipe que perceba as necessidades funcionais, que são estudadas e investigadas em equipe, resolvidas em equipe. É claro que com isto ninguém é ninguém, todo mundo é anônimo. E a única forma de oração para isto é o liturgicismo, porque as pessoas, chegando na Igreja, rezam como vivem: em equipe, em comum. Nem sabem fazer outra coisa.

Até onde isto vai chegar? É claro que essas notas apenas começam, nesta lúgubre aurora da sinarquia, mas elas vão se acentuar cada vez mais: anonimato cada vez maior, igualitarismo cada vez maior, despersonalização cada vez maior, adoração dos valores materiais cada vez maior. Isto, à força de se acentuar, tem que chegar ao comunismo. A sinarquia, com aparência de combater a moral comunista, introduz uma moral específica, que é uma preparação para o comunismo.

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São Francisco de Assis e Santa Clara: exemplos do contrário da pessoa de mentalidade “empresarial” e adoradora da produção

O verdadeiro católico tem que odiar a sinarquia

Vejamos a atitude do católico diante disso. O verdadeiro católico, assim como não quereria ser liberal ou socialista, tem que odiar a sinarquia. São José e Nossa Senhora eram o contrário dos produtivos, e Nosso Senhor também. São Francisco de Assis e Santa Clara representaram exatamente o contrário do homem de empresa adorador da produção.

O bem da sociedade temporal é um bem de alma, antes de ser um bem de corpo. E a produção dos valores intelectuais e espirituais, com vista à salvação eterna, é mais necessária para a humanidade do que a produção dos bens materiais. É claro que se deve tender a eliminar as desgraças, mas não se deve fazer isto para que ninguém tenha fome, ninguém mais possa ter cultura, nem possa ter alma. Isto é preparar uma vida irrespirável para todos, e para conservar a alguns a vida, tira-se a todos a própria razão de viver.

Em outros termos, por mais que se deseje resolver a situação dos que padecem necessidades materiais – o católico o deve desejar com todas as forças de sua alma – não se pode chegar a ponto de destruir todas as elites, toda a verdadeira cultura, todo o “raffinement” (requinte).

O sinarquismo importa em introduzir uma moral que só se aplica com a negação do espírito. Essa moral só seria verdaderia se o homem fosse só matéria. Ela é a conseqüência lógica de dois pressupostos: Um é o materialismo, negação de toda a doutrina católica; outro é a negação da personalidade do homem, também negação da doutrina católica. É a construção de uma moral – e também de um mundo novo – fundada no erro da piedade unicamente coletivista do liturgicismo, quando a formação moral católica é antes de tudo e essencialmente pessoal.

Para que sejamos capazes de combater esse erro, temos que combater em nós o mito do homem que sabe, que pode, que faz e que tem. Ele já é até um tanto anacrônico, enquanto plutocrata, pois hoje é mero gerente de seus bens. Não é mais um homem saliente, e se apresenta como igual a todo mundo; que pensa como todos e está no nível de todos; que sabe tanto quanto todos sabem, que pode tanto quanto os outros podem, que tem tanto quanto os outros têm, e faz tanto quanto os outros fazem, com vergonha de ser menos e com vergonha também de ser mais. É a abominação do igualitarismo.

Ser produtivo na ordem moral

Quando o homem é mais, alegra-se, vê nisso um reflexo mais fiel de Deus, e dá graças a Deus. Quando é ou tem menos, alegra-se também, vê nisso uma imitação da pobreza voluntária de Nosso Senhor, e também dá graças a Deus. Não está continuamente querendo ser igual a todo o mundo.

Devemos nos preservar dessa moral sinárquica, com o mesmo cuidado com que nos devemos preservar de todos os erros. Deste, com cuidado ainda maior, porque o erro vivo tem sempre uma sedução maior do que o erro morto. Não corremos tanto o risco de nos deformarmos com os erros dos séculos passados, mas sim com os erros do nosso século, porque somos infelizmente filhos do nosso século, e sentimos em nós toda a carga das más atrações que nosso século tem. Com um cuidado especialíssimo devemos calcar aos pés essa idéia sinárquica, de que devemos ser iguais a todo mundo, que não devemos querer as coisas belas, nobres ou requintadas, que devemos achar que o mais bonito do homem é ser produtivo na ordem material.

Na realidade, nós católicos nem mesmo devemos achar que o mais bonito do homem é ser produtivo na ordem espiritual, mas devemos achar que o mais bonito é ser produtivo na ordem moral. Produtivo do amor de Deus. O homem foi feito, como fim último, não para produzir, mas para amar a Deus. E quando ele ama a Deus sobre todas as coisas, tem o prêmio que lhe foi prometido por Nosso Senhor Jesus Cristo: “Buscai em primeiro lugar o Reino de Deus e sua justiça, e todas as coisas vos serão dadas por acréscimo”. E, além disso, teremos a vida eterna.

É só assim – no inteiro repúdio do espírito sinárquico – que se terá uma produção material ordenada, calma, estável e suficiente, sem a utopia de eliminar as misérias, mas tendo de fato um verdadeiro empenho para reduzi-las na medida do possível, sem prejuízo das necessidades morais e intelectuais de uma sociedade hierárquica.

Se não é assim, a caridade desaparece, ficando apenas o sentimento frio da justiça social. Acompanhada da caridade a justiça social é uma coisa bonita, mas desacompanhada da caridade ela é um monstro. É como um olho humano desacompanhado do outro. Ambos foram feitos para estar juntos, mas quando um está sozinho num rosto, ou jogado no chão, tem-se a impressão de monstruosidade.

De outro lado, é preciso compreender bem que mesmo para um homem pobre – o qual, repetimos, deve ser assistido de todos os modos em suas necessidades materiais – é menos ruim ter uma sociedade cheia de valores espirituais, mas sofrer alguma privação, do que ter uma sociedade vazia de valores espirituais e estar com o abdome cheio. Ter a alma cheia é mais necessário do que ter cheio o abdome. Cheia do amor de Deus, da luz do Divino Espírito Santo, da fé católica apostólica romana, na qual fomos criados.

A tarefa da luta contra essa moral sinárquica é, por vários aspectos, tão grave, tão árdua, que ela não pode ser feita sem o auxílio divino. É esse auxílio que devemos pedir, por meio de Nossa Senhora, Medianeira de todas as graças. Devemos pedi-lo por meio do Imaculado Coração de Maria ao Sagrado Coração de Jesus.

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Com o culto dos Sagrados Corações a Igreja põe em evidência o contrário do materialismo produtivista. São os problemas da alma, as dores da alma, os anseios da alma, e a satisfação que se encontra em Deus, que os Sagrados Corações de Jesus e Maria nos ensinam. Peçamos a esses Corações um repúdio meticuloso e exato de todos os erros do sinarquismo, e uma plenitude de convicção e de prática das verdades católicas que se opõem à moral sinárquica.

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