A rotina – inclusive na oração – é a atmosfera comum da vida de gente séria e que ama a Deus

Encerramento do Simpósio aos da TFP de Portugal, 24 de janeiro de 1991

 

A D V E R T Ê N C I A

O presente texto é adaptação de transcrição de gravação de conferência do Prof. Plinio Corrêa de Oliveira a sócios e cooperadores da TFP, mantendo portanto o estilo verbal, e não foi revisto pelo autor.

Se o Prof. Plinio Corrêa de Oliveira estivesse entre nós, certamente pediria que se colocasse explícita menção a sua filial disposição de retificar qualquer discrepância em relação ao Magistério da Igreja. É o que fazemos aqui constar, com suas próprias palavras, como homenagem a tão belo e constante estado de espírito:

“Católico apostólico romano, o autor deste texto  se submete com filial ardor ao ensinamento tradicional da Santa Igreja. Se, no entanto,  por lapso, algo nele ocorra que não esteja conforme àquele ensinamento, desde já e categoricamente o rejeita”.

As palavras “Revolução” e “Contra-Revolução”, são aqui empregadas no sentido que lhes dá o Prof. Plínio Corrêa de Oliveira em seu livro “Revolução e Contra-Revolução“, cuja primeira edição foi publicada no Nº 100 de “Catolicismo”, em abril de 1959.

 

Agora vamos passar para outro tema, então, que é de outra natureza, mas ao qual eu dou muita importância, de maneira que vamos tratar disso agora. É o seguinte caso.
Os senhores imaginem um piano, mas que tivesse uma particularidade que os pianos comumente não têm. É que o piano tivesse uma sonoridade comum, mas muito comum, não tivesse nada, nada de extraordinário. Mas o extraordinário do piano estaria no pedal. Desde que se apertasse o pedal do piano, os sons dele passariam a ser maviosos. Não só aumentariam de intensidade, mas passariam a ser maviosos. Seria uma coisa magnífica que uma pessoa possuísse um piano com essas qualidades.
Ora, Nosso Senhor faz na vida dos católicos, na vida interior dos católicos, e na vida externa, na vida quotidiana do católico “extramuros”, não dele em si, com seus botões, mas dele com seus próximos, e depois dele e dos próximos com terceiros. Ou seja, de um membro do Grupo com seus botões, do membro do Grupo com os membros do Grupo, e depois do grupo com os terceiros existe esta peculiaridade do piano absolutamente marcada.
Quer dizer, há situações em que interiormente pensando uma coisa, nós sentimos uma consolação, sentimos uma alegria, uma satisfação maior do que qualquer satisfação que se pode ter na terra. Ou é conversando com um irmão nosso de vocação, ou estando em nossa sede, estando em nosso ambiente, se tem com isso uma alegria, uma satisfação muito grande. Ou mesmo tratando com terceiros, nós damos aos terceiros uma impressão que lhes dá a ideia de que nós estamos inundados de contentamento, de alegria, de satisfação, e não é uma impressão falsa. De fato, nesse momento nós estamos inundados de alegria, pela nossa vocação.
Mas há momentos em que esta ação, que é uma ação da graça, é uma ação sobrenatural da graça em nossas almas, que essa ação cessa. E nós voltamos para a musiquinha ordinarinha e chinfrim que o piano tem quando não toca o pedal da graça, o pedal maravilhoso!
E há, portanto, uma defasagem muito grande entre os dois modos de sentir e de fazer as coisas. Esta circunstância nos leva a perguntar o que é que nós devemos fazer em face desse fenômeno. Porque esse fenômeno, em última análise, é Deus que faz.
Em virtude do Pecado Original nós sentimos muitas vezes a “poquice” [pequenez] e o desagrado de nossa própria pessoa. A pessoa se sente mal dentro da própria pele. E fica com muita vontade de tomar contato com outros para não tomar contato consigo mesmo. E tem até a ilusão de que outro dentro da pele sente que está tudo muito agradável, mas que o “uno” na sua própria pele está muito desagradado. Então quer tomar contato com outro, para ver se traz para dentro de si mesmo um pouquinho do arejamento e do bem estar que a gente tem a impressão que o outro tem. Mas é a graça que está produzindo no outro esse efeito comunicativo, do qual a gente veladamente é mendigo, e estende a mão para obter alguma coisa.
Isso se dá muito na própria oração. Certos dias a gente vai recitar uma oração, a gente fica pasmo com a beleza da oração. Nos outros dias, a gente vai recitar a mesma oração, as reflexões que nós fizemos no dia anterior que nos deixaram pasmos com a beleza da oração, e inundados de contentamento com a beleza daquela oração, aquilo para nós não diz nada. E nós, embora saibamos que intelectivamente aquilo é lindo, nós não sentimos essa beleza. E nós ficamos completamente áridos.
E quantas e quantas comunhões há, quantos terços, quantas coisas assim em que isso se passa dessa maneira?
O Grupo. Há ocasiões em que nós estamos na vida do grupo, e temos a impressão de que estamos no píncaro de uma montanha habitada por anjos, que num instante não sendo habitada por anjos, mas por heróis. Ficamos “Ohhh! Que beleza!” No outro dia a gente entra: “Mas de novo isto?! Esta coisa… Essa mesma rotina todos os dias, de todos os modos! Que coisa! Não podia ser que Nossa Senhora me desse todos os dias aquela consolação? Dr. Plínio explicou: é Deus que tirou. Mas olha em que estado ele me deixou! E se isto é vida que se leve, a vida que a gente leva sem o pedal mavioso estar apertado?!”
Às vezes a pessoa fica com escrúpulo, pensa que é falta de fervor da gente. Outras vezes a pessoa cai numa espécie de desânimo e de modorra que abate, que prostra etc. E o resultado é que quando muitos no mesmo grupo atravessam juntos a mesma etapa, o convício do grupo tende a deteriorar-se.
É muito difícil alguém dizer o seguinte: “Eu hoje estou cheio de modorra, e vem aquele rapaz lá, que é membro do grupo, é irmão meu pela vocação, mas é ´pau` [cacete]! É horrivelmente pau aguentá-lo! Ele chega e me pede logo de cara um serviço difícil. E eu dou uma resposta atravessada, digo: “Para já, não! Para mais tarde, talvez… Peça-me depois, que eu depois resolverei”.
A gente tem a impressão que está o coitado à espera de qual é a hora em que ele pode perguntar se nós podemos fazer para ele aquele serviço de que ele está precisando. O coitado é um chefe nosso, a quem nós devemos colaboração, a quem nós devemos obediência. É esse que nós tratamos como coitado. E como ele não pode brigar com os seus súditos, como ele não tem meio de apertar os súditos como se fazia nos antigos conventos… Eu não sei se o senhor sabe que nos antigos conventos o frade que não andava bem, ia para uma prisão chamada aljube, e ficava na prisão os dias que o superior decretasse. E mais antigamente, em algumas ordens religiosas – a Igreja suprimiu isso – em algumas ordens religiosas um instrumento funcionava, chamado chicote e com liberdade! De maneira que o frade andava direito, porque as consequências eram terríveis!…
Bem, não tem isso, o superior não pode fazer isso, o superior acaba serrando de baixo, e o inferior acaba serrando de cima.
Mas, o que fez isto, fazendo isto pensava alcançar uma vitória. Mas é como deve ter ficado nas bocas de Adão e Eva o sabor do fruto proibido. Quer dizer, eu acho que nunca lábios humanos sentiram um sabor tão desagradável quanto Adão e Eva sentiram depois de ter comido o fruto proibido. Aquilo deve ter sido para eles de uma digestão péssima, dificílima! O mau sabor, o mau odor, eles devem ter procurado lavar a boca, não dava resultado… Pensaram em trocar o queixo, mas viram que seria dolorido e não havia meios para fazer isto etc., etc., se rolaram no chão.
Assim fica aquele que se deixa levar por esse estado de espírito. E assim fica um grupo quando todos estão passando por uma aridez e que essa aridez se faz sentir no convívio de todos.
Essa descrição lhes parece colher ao vivo, ou é uma descrição do irreal? Os que acham que isto é real levantem um pouco o braço, para eu ter uma ideia…
Agora, há nisso uma ignorância de um fato fundamental. Como Deus é quem dá a graça, e Deus é quem tira a graça, Deus não é capaz, é inconcebível, poder-se dizer isto: “Deus não é capaz”, Deus que é capaz de tudo, Deus entretanto não é capaz de fazer uma coisa que não concorra para nosso bem. E em consequência, é para nosso bem que Ele faz isto. E nós alguma vantagem temos nisso. Nós podemos não perceber, mas alguma vantagem temos nisso.
E como Ele não constituiu uma situação na qual tudo seja o funcionamento do pedal mavioso, o resultado é que se esse pedal funcionasse sempre, seria mau para nós. E que nós deveríamos ficar alarmados se houvesse uma sala do perpétuo pedal, em que se entrando se sentisse o mavioso continuamente. Nós deveríamos dizer: “Deus não deu isso para todos. Nesta sala há uma coisa que Deus não costuma dar. Não será uma fraude do demônio esse mavioso que tem aí dentro?” E não deveríamos entrar.
Acontece que nós somos concebidos no pecado original, e que temos que sentir em nós o tédio de nossas próprias pessoas. Temos que sentir em nós a sem graça, a “sengracês” de nossa própria vida. Temos que sentir e aguentar o peso da rotina. A rotina é a atmosfera comum da vida de gente séria, e da gente que ama a Deus.
E nós devemos nos habituar à rotina como condição de felicidade. Quer dizer, os senhores fixem bem no espírito esta afirmação. Os senhores veem as pessoas que levam uma vida rotineira, de vez em quando interrompida por um momento de lazer temperante, calmo, ou por um dia inteiro de repouso, ou dois dias de repouso também calmos, o que aguentou bem a rotina fica capaz de gostar do prazer.
Mas o sujeito que não aguentou bem a rotina, ele é um insaciável de prazeres, de deleites, de gostos, e quer constantemente estar com um novo deleite, um novo gosto. E se ele não tiver isto, ele se sente um infeliz, se sente um desgraçado. E não há o que o contente. E ele em extremo, em extremo, em extremo fim fica exposto à morte da filha do Onassis [Cristina Onassis]: o suicídio. Porque faz isso, não dá gosto, faz aquilo, não dá gosto, faz aquilo outro, não dá gosto, nada dá gosto, então pam! Vai para o inferno e fica aprendendo o que é que dá gosto! E ali é eternamente, não tem remédio!
Quer dizer, nós temos que entender que nós estamos na terra para expiar, que a vida é um vale de lágrimas, e que é preciso ter forças para verter as lágrimas que devemos verter, e para aguentar aquilo que é o peso da vida.
Quando nós temos esta honesta deliberação, e aguentamos de tudo, os pequenos gostos que de vez em quando Nossa Senhora nos manda, nos alegram, e as nossas almas se deleitam sobretudo quando não são gostos materiais, não são comedorias, nem “bebedorias”, nem “musicanças”, nem nada disso. Mas são graças, são consolações internas, como as que a gente pode sentir em certas ocasiões, quando reza o rosário, quando comunga ou qualquer outra coisa: é a maior felicidade que há na vida.
E a consequência disso é que nós devemos fazer da rotina, do desejo de viver em paz na rotina, compreendendo o que ela tem de realmente cacete – é uma repetição de coisas que a gente já sabe etc., etc. – mas necessária, algo que se faz com coragem porque Deus quis que se fizesse! E a gente oferece a Ele com alegria.
“Senhor, Vós me destes a vida. Vós me destes esta alma imortal, que eu sei que vai ser feliz por toda a eternidade, se eu cumprir a vossa vontade. Sei que os sofrimentos nessa vida são grandes, mas que essa vida é curta. E que em comparação com a eternidade ela não é senão um instante. Ajudai-me a atravessar isto, a transpor este vau;  dai-me forças para isto. Eu suportaria isto bem, e sei que, por vossa bondade nesta mesma vida, as vossas consolações não me faltarão!”
Isto aí é a própria definição da coragem.
Para uma pessoa guardar esse estado de alma, eu acabo de dizê-lo implicitamente, é preciso rezar. E na própria oração, que já uma coisa rotineira, por exemplo o rosário diário é rotineiro…
Se algum dos senhores me disser “Dr. Plínio, eu não pego no meu rosário sem me sentir tão feliz!”. Eu digo: “Que felicidade você sente quando mente?” Porque isto é uma mentira! Não existe isso!
Se alguém me disser: “Dr. Plínio, eu vi o senhor hoje puxar o rosário, e não pude lhe ver bem porque já estava caindo a noitinha na sala, e não pude lhe ver bem porque já estava caindo a noitinha na sala, mas julguei ver no senhor uma fisionomia de transporte de alegria, porque vós sois um apóstolo do rosário, e Nossa Senhora o enchia de deleite!”
Eu digo: “Não é verdade meu caro. Você está delirando! Eu peguei esse rosário na aridez, com o propósito de prestar atenção no que eu dizia, mas sabendo que minha atenção, sem culpa minha, me ia escapar pela mão mais de uma vez, e iria chegar até o fim na aridez, e queria essa aridez, uma vez que Nossa Senhora para mim não queria outra coisa senão a aridez. Está acabado!”
Isto também é com a comunhão. Chega a hora da comunhão: “Bem, eu vou receber Nosso Senhor Jesus Cristo. Então me lembro da oração do Centurião Cornélio: Senhor, eu não sou digno etc., etc. Penso que minha alma vai sentir um deleito pensando nEle, o Senhor, o Dominus… Domine non sum dignus ut intres sub tectum meum, sed tanctus dic verbo et sanabitur anima mea! Uhhhh!”
Não é nada disso! Isso é uma vez entre cem, entre duzentas! O normal é comungar sem sentir nada! E depois dizer a Deus: “Meu Senhor, eu não tive outra coisa a vos oferecer senão minha aridez, as minhas imperfeições. A aridez Vós me destes; as imperfeições eu as fabriquei. Aceitai a primeira e tolerai a segunda. Tende pena de mim!” Está acabado.
Mas, ser persistente, não arredar o pé! Esta é a nossa obrigação.
Daí acontece o seguinte: se nós tomarmos inteiramente esse estilo, acontece o seguinte: que nós passaremos a ter, sem perceber, no trato com os outros muita suavidade. Porque o mau humor desaparecerá de dentro de nós. A queixa, aquela amargura, as coisas não estão correndo como eu queria – isto tudo desaparecerá! A gente está aguentando, aguentando, aguentando!
  E isso faz com que a gente, sem perceber, eventualmente destile doçura e suavidade para com os outros. E o trato do homem que domina ao seu mau humor, pode ser um fator de bom humor para o pobre coitado com que se está em contato.
O ambiente todo muda. E determinadas coisas que podem dar-se num grupo – e que os senhores me dirão, ou me dirão se passa ou não passa no Grupo de Portugal – essas coisas desaparecem.
O que é que acontece quando o indivíduo não se conforma com a rotina?
Quando o indivíduo se conforme com a rotina, e vai haver uma reunião, o pensamento dele é o seguinte:
“Essa reunião pode ser que seja monótona, porque vai falar o fulano, que eu acho monotoníssimo. Nossa Senhora quer, portanto, nesse lance, multiplicar a monotonia pela monotonia, e eu vou ter uma reunião monotoníssima.
“Mas eu ofereço isto a Ela por alguma alma que Ela no momento esteja querendo salvar. Será a minha alma, será a alma desse ou daquele, ou daquele outro que eu tenho uma graça especial para ajudar, será uma alma que eu não conheço. Um fulano qualquer que estará perambulando pelas ruas de Vilnius ou de Moscou, para a futura TFP lituana, ou para a futura TFP russa, ou para a futura TFP afgã ou quirguiz, eu estou sofrendo por ele, ele não sabe, e eu não vou saber. Quando nós nos conhecermos, nós não saberemos, nem ele nem eu, que eu resgatei a ele. Mas durante essa reunião em que eu fiz isso, ele ficou sozinho passeando pela montanha dele, e a graça o visitou. E ele pensou tal coisa, e a graça sugeriu tal coisa, e foi o começo da conversão dele”…
Assim se faz apostolado!
Quando uma alma não está disposta a isso, como é que ela faz? Ela senta e diz: “Bom, não se devia tratar desse tema, porque o fulano que é o quidam no momento não sabe constituir temas. E depois, se pelo menos ele me consultasse a mim, para eu dizer a ele que tema devia ser, como seria bom para a causa do Grupo. Porque eu sei uma porção de coisas que eu poderia dizer a ele, e faria um bem extraordinário para o Grupo. Mas esse tipo não percebe o meu valor, não conhece o meu talento, não reconhece o meu talento entretanto muito maior do que o dele! Eu percebo que o meu talento é muito maior do que o dele! E eu vou assistir a reunião quieto. Quieto, não! Eu vou ser um caçador durante a reunião. O que eu puder interromper a ele para fazer uma objeção, para fazer uma pergunta que atrapalha etc., isto eu vou interromper.
“Se eu perceber um outro que está fazendo oposição a ele, eu apoio o outro. Eu digo: “Não, o senhor tem toda razão mesmo, é tal coisa assim!” Eu vou amargar a vida do meu superior”.
Ou se é um outro qualquer de que eu não gosto, e está sentado por exemplo a meu lado, ele me diz qualquer coisa, eu digo: “Não, não é verdade”. E interromper a reunião para discutir com ele diante dos outros. Sai um caos e a reunião dá em nada!
Mas, por quê? Porque eu entrei na reunião com vontade de sobressair, para ver se eu escapo do meu tédio, escapo da minha rotina. E ao menos uma vez eu tenho um papel saliente e representativo que eu sou louco para ter…
Bom, agora, há uma coisa que não escapa, e os senhores não tenham a esse respeito a menor ilusão: o amor-próprio se sente em qualquer um. Mas logo! E quando um sai com uma coisa que tem amor-próprio, tem oito, tem dez que já estão à procura para fazer uma caçada contra ele. E começa a pancadaria. E ele então se põe na posição chamada de “legítima defesa”. E a reunião fica uma reunião insuportável, de onde sai na cabeça de todos, quando termina a reunião, essa convicção: “isso não vai para frente!”
Eu não sei se eu estou descrevendo bem adequadamente situações possíveis?
(SP: Lamentavelmente reais).
Então eu lamento, mas é real então.
Depois, briguinha. Por causa da opinião que um dá, um outro entra em desacordo, e quanto mais fútil for o caso, tanto mais amargo é o corretivo que o indivíduo tem. Por exemplo, numa reunião está se cuidando do itinerário de uma caravana, e o sujeito diz por acaso: “Passa-se por (eu vou dar um nome que eu nem sei se existe em Portugal, eu tenho a vaga ideia de que existe) Aljustrel, e depois vai para não sei o quê, não sei o quê”.
O outro diz: – Aljustrel não é aí!
– Onde é?
– É no extremo-sul!
– Não, não é!
– Sim senhor, é! Eu já estive lá em Aljustrel!”
Está se vendo que ele está mentindo, para sustentar que Aljustrel fica onde ele disse. Começa um pega-pega. Saem todos com raiva uns dos outros, ecumênicos com toda espécie de cachorrada que encontrem, e mal à vontade dentro do Grupo. A ponto de às vezes criar num ou noutro a seguinte sensação: “Eu me sinto mais à vontade fora do Grupo do que dentro do Grupo”. Criada essa sensação, o demônio está do lado de fora da porta, convidando: “Vem cá!! Aqui tem uma coisa reservada para você!”. Os senhores sabem bem que coisa ele tem reservada! Não preciso contar para ninguém. “Aqui tem reservado para você! Pegue lá e vai para lá! Olha aqui, lá te reconhecem, lá te louvam, te exaltam, não sei mais o quê, não sei mais o quê. Ou lá tem uma moça que reconhece você melhor do que toda essa gente ali! Vai lá que você se diverte. Aí sim você passa um sábado agradável”, etc., etc. E lá vai a coisa para frente…
Donde é que veio isto? Na maior parte dos casos é porque a Providência quis nos provar com aridez, nós não quisemos aguentar a cruz da aridez, e vieram as tentações.
Está bem claro isso, meus caros?
(sim)
Bem, nesse lance de atividade em que a TFP vai se pôr em consequência desse simpósio, essas coisas podem pôr tudo a perder.
Eu não tenho a menor ilusão a respeito do seguinte: eu achei o nosso simpósio, com o favor de Nossa Senhora, fecundíssimo. Mas não pensem que eu acho que isto foi devido a tal ou tal predicado meu, que foi devido à presença de Dom Bertrand, à presença do meu João, do meu caríssimo secretário, ou do que seja, do que for. Não pensem isso. Foi a presença da graça! A graça inúmeras vezes se tornou sensível entre nós, e nós chegamos a perceber a alegria de quem tem Deus entre si, Deus estando conosco.
E, naturalmente, tudo nos pareceu doce. As resoluções, as explanações etc., tudo nos pareceu doce. As resoluções, as explanações etc., tudo nos pareceu doce, a atenção nos pareceu suave etc., etc. Se não tivesse tido a graça, eu poderia ter dito exatamente o que eu disse, essas reuniões teriam sido um martírio! Não tenham dúvida.
Mas, se Nossa Senhora quisesse de nós o martírio, nós devíamos estar prontos para esse martírio.
Agora, vamos passar para a execução. Eu estou certo de que na execução, se houver algumas horas de graça sensível, vai haver também horas de aridez indiscutível. E se as aridezes forem numerosas, e foram bem recebidas, a TFP portuguesa sobe como um rojão! Porque os senhores irrigarão com o seu sacrifício a ação que estão desenvolvendo.
Se, pelo contrário, os senhores não forem assim, e começarem a querer rejeitar a rotina, rejeitar a aridez, fabricar as consolações artificiais para levar uma vida gostosa, os senhores enterram o que está sendo feito. Mas depois não culpem a Providência… Pelo menos batam no peito e digam: “mea culpa, mea culpa, mea máxima culpa”.
Um deles, uma ocasião – mau humor, hein? – eu estava andando com ele de automóvel, subindo a Angélica, íamos num determinando ponto, e me pareceu que era melhor ele virar para um lado, e ele queria virar para outro. E eu disse amavelmente: “Não seria interessante irmos por outro lado?! Ele me brinda com esta gentileza: “Cretino!”.
Fiquei quieto, e esperei nada menos do que dez anos para poder lembrá-lo disso. Ele me disse que se lembrava perfeitamente, e que sabia que tinha feito mal. Se seu falasse antes desses dez anos, ele estourava.
São as almas que não se conformam com a aridez, com a vida de todos os dias. Não se conformam com o irmão da aridez, que é o “rio chinês”. Quer dizer, uma coisa que se passa, que se faz e que não deu certo. Todo o mundo pensou que desse certo, e errou, escangalhou. Então: “Está vendo? Isso não vai para frente, isso é assim mesmo! O que é que a gente vai fazer? A Providência nos abandonou, tarará, tarará, tarará!”.
“– Não senhor, não é verdade. Vamos confiar em Nossa Senhora. Se a Providência nos abandonou, vamos pedir perdão, e vamos tratar de nos emendar.
“– Mas eu não vejo no que é que eu andei mal!
“– Então esteja contente, esteja com a sua alma alegre, a sua consciência não lhe culpa de nada. Nossa Senhora quer prová-lo como provou ao Profeta Jó. Louve a Ela por causa disso.
“– Essas são palavras vazias e no ar!
“– São palavras da Escritura…
“– Lá vem você com a sua lógica!”
Mas, meu Deus, se até a lógica é uma razão para repelir uma pessoa…
Mas é o estado de espírito próprio a quem não quis carregar os pesos da vida, sobretudo o peso banal da vida de todos os dias, dos adiamentos de Deus, da hora em que Deus parece um devedor que não paga as suas duplicatas; das horas em que nós temos como que queixas de Deus.
A Escritura deixa transparecer essas como que queixas de Deus de modo muito curioso nos salmos. Há um salmo que aliás no São Bento se canta muito bem, não sei se é porque realmente tem queixas, mas enfim: “Quere obdormis? Oh, Deus! por que é que dormes? Porque está esse “rio chinês” [os vaivéns da vida], Vós não retificais esse traçado? Estais Vós dormindo, e os anos vão passando, e eu nesse trajeto cacete?!”.
Deixe! Deixe! Deixe!… confie! Confie! confie! Pense só em Nossa Senhora, não pense em mais nada. Esteja certo que este é o caminho mais direto, e que não é o “rio chinês”, é o aparente “rio chinês”, não é o real “rio chinês”.
São essas coisas da ação da graça, onde se nós não tivermos um espírito sobrenatural, compreendendo a preponderância em todas as ocasiões, em todas as circunstâncias do fator sobrenatural sobre os outros fatores, e como nós devemos estar continuamente nas mãos de Deus, com muito maior disciplina do que esse lenço que está nas minhas mãos: “Deus quis, isso se arranjará, etc., etc.”, se for feito assim, eu serei um homem de vida interior. Porque isto é a vida interior.
O meu apostolado será fecundo, porque estará cheio de graças. E eu serei um apóstolo invencível. Serei o varão elogiado por Dom Chautard. Se eu não fizer assim, eu não terei verdadeira vida interior, por mais que eu seja rezador. É uma coisa evidente. E eu serei o varão estéril, serei – segundo diz São Paulo, numa epístola dele – o bronze que soa, mas que não diz nada, que não toca, portanto. E assim uma porção de figuras.
A fecundidade do apostolado depende de a gente ter essa impostação. A suportabilidade de nossa vida depende de a gente ter essa disposição. E quando não tem, nada anda! Para andar, isto tem que ser assim.
Isso de tal maneira tem que ser assim, que não só quando se trata de coisas que estão dentro da ordem espiritual, e que dizem respeito diretamente à Igreja, isto deve ser assim, mas mesmo em coisas da ordem temporal que dizem respeito à Igreja de um modo não tão imediato, também isso deve ser assim.
(…) para a qual, aliás, eu ainda disponho de um pouco de tempo. De maneira que o que eu tinha que dizer era isso. Mas se quiserem me perguntar qualquer coisa etc., eu estou à disposição.
Eu me lembro agora de uma coisa. Eu tratei de resvalo disso, quando eu falei com os senhores sobre esse assunto. Mas eu quero voltar ao caso. É uma coisa que eu ia esquecendo.
Quando se estuda a história do Brasil, ao menos do lado brasileiro, e que se chega ao período imediatamente anterior à independência, a gente percebe que há um clima de fricção entre brasileiros e portugueses, que teve neles – do lado de aquém e de além mar – teve nuns e noutros um efeito curioso, que não é muito raro a gente encontrar na história da Revolução: briga, briga, briga e rompem. Algum tempo depois de romper, ambos os lados caem em si. E acabam percebendo que romperam pelo menos em grande parte por futilidades. E que eram tormentos que eram postos pelo demônio nuns e noutros, com maus entendidos, futricas e mexidas desse gênero, e que criavam um ambiente insuportável.
Cem anos depois da independência, ela não se teria feito. Na hora em que ela se fez, ela era meio incontenível.
Agora, por quê? Porque essa convivência entre dois povos foi azedada por pequenas diferenças, modos de ser, pequenas complicações etc., etc., como pode haver no Brasil…
(Também fatores maçônicos).
Maçônicos! A maçonaria atiça tudo isso. Mas ela faz isso manuseando demônios. Na maçonaria é muito mais fácil ser homem de vida interior para baixo, do que na Igreja ser homem de vida interior para cima. Então, daí decorre que essas fricções serviram muito para aumentar a encrenca etc.
A gente vê também com a história da monarquia. Cem anos depois da queda da monarquia, é muito mais fácil falar em plebiscito do que na ocasião da queda da monarquia, quando ela foi derrubada por fricções, por imbecilidades de toda ordem, mas um Governo ditatorial republicano proibiu o plebiscito. E os que eram republicanos acharam natural. Foi cem anos depois que se criou um clima por onde as pessoas disseram: “É verdade, precisa fazer esse plebiscito!” E vão fazer o plebiscito.
São roces, mal entendidos, etc., etc., não apenas inimizades profundas que criam isto.

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