Beato Notker, o gago (7 de abril): um grande esforço, em qualquer empreendimento, nunca é tão grande como quando se faz por um ideal religioso

Santo do Dia, 7 de maio de 1971

A D V E R T Ê N C I A

O presente texto é adaptação de transcrição de gravação de conferência do Prof. Plinio Corrêa de Oliveira a sócios e cooperadores da TFP, mantendo portanto o estilo verbal, e não foi revisto pelo autor.

Se o Prof. Plinio Corrêa de Oliveira estivesse entre nós, certamente pediria que se colocasse explícita menção a sua filial disposição de retificar qualquer discrepância em relação ao Magistério da Igreja. É o que fazemos aqui constar, com suas próprias palavras, como homenagem a tão belo e constante estado de espírito:

“Católico apostólico romano, o autor deste texto  se submete com filial ardor ao ensinamento tradicional da Santa Igreja. Se, no entanto,  por lapso, algo nele ocorra que não esteja conforme àquele ensinamento, desde já e categoricamente o rejeita”.

As palavras “Revolução” e “Contra-Revolução”, são aqui empregadas no sentido que lhes dá o Prof. Plínio Corrêa de Oliveira em seu livro “Revolução e Contra-Revolução“, cuja primeira edição foi publicada no Nº 100 de Catolicismo, em abril de 1959.

 

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Bem-aventurado Notker, o gago (840-912), representado dando golpes no demônio (Wikipedia)

 

Os dotes, as qualidades humanas do homem comum, mediano, são muito elásticas. Assim, com a aplicação, o esforço, o ardor, o desejo sério de desenvolvê-las, qualquer pessoa consegue resultados verdadeiramente notáveis. Mas é preciso que exista esta aplicação.
Em termos diferentes, se os senhores prestam atenção bem de perto ao que fizeram todos os homens que a qualquer título foram grandes na vida, notarão que eles conseguiram ser grandes por causa de uma aplicação muito séria e muito profunda de seu esforço em determinado ponto. Diz-se às vezes: Fulano tem grande facilidade para tal coisa; Sicrano tem grande facilidade para tal outra. – O que significa essa facilidade? Algumas pessoas têm nativamente facilidade para certas atividades, é bem verdade.
Mozart, por exemplo, era criança ainda e já compunha melodias, partituras excelentes. Mas quando a se vai ver qual é a diferença que há entre sua obra do tempo de criança, o que indicava sua facilidade para a música, e a qualidade que conseguiu no ponto terminal de sua vida, observa-se que há um trajeto grande percorrido. E tal trajeto não foi realizado sem esforço, sem uma aplicação da vida inteira. O que a vida de Mozart demonstra, pois ele não foi outra coisa senão músico durante toda sua existência. Dedicou toda sua atividade, toda sua energia a isso.
Alguém dirá: Bom, ele poderia talvez, se tivesse aplicado mais energia, ter sido um músico maior. Quem sabe se essa aplicação não é o contrário da facilidade? quem sabe se levou uma vida relativamente fácil e produziu assombrosamente? – Neste caso, deve-se dizer que, se ele tivesse levado uma vida aplicada, ainda teria dado muito mais do que deu.
Quer dizer, para a pessoa realizar a obra prima de sua vida, para ela produzir tudo quanto seria capaz, é sempre necessário uma grande aplicação. Pode ser que sua obra seja exímia em comparação com a obra de outro, mas exímia em relação ao que ela poderia fazer sem uma grande aplicação, ninguém faz absolutamente nada.
Ora, a grande aplicação nunca é tão grande como quando a pessoa a faz movida por um ideal religioso. O ideal religioso – e sobretudo na religião verdadeira – é o que mais desenvolve no homem a expansão saudável de todas as energias. Os senhores têm um exemplo característico disso no que se refere às artes e à guerra.
Nas artes, os senhores veem que em geral todas as civilizações aplicam o melhor de seu talento e de sua capacidade na produção religiosa. Os senhores considerem, por exemplo, o que a arte dos países católicos produziu de melhor foram as catedrais. O  que a arte árabe produziu de melhor foram as mesquitas e daí por diante. O que a arte grega produziu de melhor foram os templos. Quer dizer, o ideal religioso é por natureza o que mais movimenta o homem, quando este se deixa penetrar por aquele ideal.
Muito mais verdade é isso em relação à verdadeira religião Católica, Apostólica, Romana, religião sobrenatural e por causa disso incute aos homens uma fortaleza que não tem nenhuma comparação com os impulsos naturais ou preternaturais que as outras religiões incutem.
Então, em consequência disto temos a ideia de que uma pessoa que realmente, abnegadamente, com todo o empenho de seu espírito religioso – máxime sendo católica -, esta pessoa se entrega a um esforço sobre si e pode conseguir um grande resultado. Para que seja verdadeiramente abnegada, a pessoa não deve fazer o seguinte cálculo: Ah, eu não sabia que a gente ficando religiosa seriamente adquire um grande talento. Então eu vou agora, para adquirir um grande talento, ficar religiosamente abnegada… – Isso não é abnegação. É transformar a religião num instrumento para fazer crescer sua própria capacidade. A religião de si não é instrumento, ela é um fim, um ideal. É abnegado quem faz isso por puro idealismo, quer dizer, por amor de Deus, sem a preocupação de si mesmo, desinteressadamente por Deus. Esse consegue grandes coisas.
Essa verdade, que tem mil fatos que a ilustram, os senhores encontram na ficha de hoje, tirada da obra de Rohrbacher, “Vida dos Santos”. Trata-se de um bem-aventurado do qual eu nunca ouvira falar, não sei se algum dos senhores conhece: bem-aventurado Notker O.S.B. (840-912 – em latim: Notker Balbulus)). Foi declarado bem-aventurado pelo papa da renascença Leão X:
“Notker nasceu no cantão de Zurique, na Suíça, no ano de 840. Ele recebeu instrução de grandes mestres da época. Entrou como monge na abadia de São Gal [uma das abadias mais famosas da Suíça] e ali viveu ensinando os meninos candidatos à vida religiosa”.
Os senhores podem ter a impressão de um seminário qualquer… Sobretudo os que não conseguem ter a vivência exata do valor das coisas religiosas de que falávamos outro dia. Mas nessa época em que se atribuía à religião o valor adequado, ser professor num seminário – ainda que em seminário menor -, era geralmente exercer um cargo ao qual se dava a maior importância.
Os senhores precisam lembrar-se que na organização social e política da época, a primeira classe era o clero, não era a nobreza, nem eram os burgueses ricos, menos ainda era a plebe (os trabalhadores manuais). E formar os que haveriam de participar da primeira classe social, era desenvolver uma atividade pedagógica de primeira grandeza.
“Notker, que era musicista, tornou-se célebre como autor de sequências, algumas das quais passaram para a liturgia”.
É uma grande glória para um compositor de música, que a liturgia tenha incorporado algumas de suas obras. Porque os senhores sabem que até João XXIII, o mais acurado bom gosto presidia a escolha dessa sequência, dessas melodias incorporadas na liturgia. Não que todas elas fossem obras primas de música, mas sempre havia um critério muito elevado que justificava uma tal inclusão.
“Como historiador, deixou uma vida de Carlos Magno e obras hagiográficas”.
Tema também muito importante. Naquele tempo se dava mais importância a escrever uma vida de Carlos Magno do que hoje que se dá a escrever uma vida de não sei… de Roosevelt ou de Churchill, porque nenhum homem contemporâneo conseguiu em nossos dias o prestígio que Carlos Magno obteve. Eu, aliás, considero que depois de Carlos Magno não houve um só homem que tivesse o prestígio que ele teve. Prestígio como Carlos Magno, creio que na história não se conhece.
“As crônicas de São Gal…”
São as crônicas do convento e que narram tudo quanto lá sucedeu.
“…a ele se referem assim:…”
Aí os senhores verão esse homem de produção exímia como era.
“Ele era fraco, gago e cheio de defeitos físicos”.
Os senhores estão vendo, portanto, como ele carregava elementos negativos consigo.
“Pobre de corpo, mas não de espírito”.
É um homem cheio de defeitos físicos.
“A boca gaguejava, porém não a alma, diziam os cronistas contemporâneos”.
Vejam os senhores que beleza!
“Porque voltado sem cessar para as coisas do alto, mostrava nos aborrecimentos a paciência…”
Quer dizer, a capacidade de aguentar o aborrecimento. A força para carregar a cruz, paciência quer dizer isso.
“…em todas as coisas, a suavidade. Era rigoroso em tudo o que dizia respeito às obrigações da vida comum”.
Quer dizer, era um homem enérgico, que sabia exigir o cumprimento do dever.
“Tímido e desajeitado, quando era tentado de repente, sabia fazer frente ao demônio”.
Quer dizer, quando era inopinadamente tentado, ele contra o demônio vencia a timidez, enfrentava esplendidamente.
“Na oração, na leitura, no ensino, ele era infatigável, era – para tudo dizer – a morada mais perfeita de que tenha exemplo neste [?] dons do Espírito Santo”.
Não se pode fazer de um homem maior elogio: morada perfeita dos dons do Espírito Santo. É um homem que tem em grau eminente fé, esperança e caridade, as virtudes cardeais e todas as outras virtudes.
Os senhores compreendem bem que este homem tem que possuir grande valor pessoal. É evidente. E isto apesar de tão poucas qualidades naturais, um corpo cheio de defeitos, com o condicionamento que às vezes o corpo dá à alma.
Os senhores observam, entretanto, como ele conseguiu uma bela vitória sobre si. E como resultado de tal vitória, tornou-se um homem famoso em seu tempo. Por quê? Porque não quis ser famoso, porque dedicou-se pela Igreja sem outras preocupações. E o amor de Deus habitando inteiramente, de um corpo enfermiço, ele tirou os meios para ser um grande homem.
Aí os senhores têm a justificação da ideia de que o amor de Deus leva um homem a fazer coisas extraordinárias e tirar de si coisas grandes, ainda quando ele seja pequeno.
“Honrado em São Gal desde o momento de sua morte, ele morreu e já começou a ser venerado como santo, que ocorreu no ano de 912. Foi beatificado no ano de 1513 pelo papa Leão X”.
Os senhores têm aí portanto uma biografia notável.
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A vida de Carlos Magno, escrita pelo Bem-aventurado Notker

Eu vou estender um pouquinho o Santo do Dia, porque como algum tempo eles não se fazem, estou com várias perguntas para responder.
(Pergunta: Que relação há entre a microlice, a poquice, a preguiça e o tema que o Sr. desenvolveu hoje?)
A microlice, a poquice e a preguiça, são defeitos corolários.
A preguiça faz com que o homem seja sempre tão poca quanto sua natureza lhe permite. O senhor considere, por exemplo, um Churchill. Basta olhar para o carão dele de bulldog sublime para se compreender que estritamente poca, ele nunca seria; não lhe foi dado isso. Mas seria tão poca quanto sua natureza permitiria, se fosse um homem preguiçoso.
A microlice é um defeito que leva a subestimar-se, a menosprezar-se e, portanto, não se aplicar, não ter largueza de horizontes, gostar das coisas pequenininhas, do que é vulgar etc. Seria um sinônimo de pusilanimidade, que é o contrário da magnanimidade, pela qual se apreciam as grandes coisas, os grandes horizontes.
É evidente que ou a preguiça faz com que o pusilânime, o microlótico não saia disto, ou reduz a isso o homem que teria forças para mais. De maneira que são, portanto, defeitos correlatos.
Que relação tem isto com esta ficha hagiográfica?
Estou imaginando o beato Notker sendo apresentado em trajes contemporâneos para muitos daqui. Olharem para ele e dizer: Que mocorongo entrou agora para o Grupo! Liquidar a mocoronguice desse homem deve ser uma coisa difícil…
Os senhores estão vendo provavelmente um homem que devia ser um indivíduo que em francês se qualifica de “chétif”, acanhadinho, pequenininho, azedinho, ressentidinho, como um lulu da Pomerânia furioso (risadas) ou encabulado. Lulu da Pomerânia é um cachorrinho assim desse tamanho pequeno, uma coisinha que a gente tem medo de pegar na mão e que se desfaça…
Ele poderia ser um homem assim: boca torta, não sei nem de que jeito etc. Por que ele se elevou acima de tudo isso? Uma das razões foi que não teve preguiça, porque é muito duro tirar de um natural pobre assim grandes resultados. O bem-aventurado Notker teria sido provavelmente um poca, um microlô, se tivesse sido preguiçoso.
Não sei se minha resposta responde à sua pergunta.
(Aparte: Uma das piores consequências da vaidade, da megalice seria de impedir que as pessoas sacassem todo o possível da própria personalidade?)
Sim, porque eu ainda não vi uma pessoal realmente vaidosa, mega e que seja esforçada. O mega é um sonhador, imagina facilmente coisas do outro mundo.
Assim, por exemplo, um rapaz me contou o seguinte: quando a rainha da Inglaterra andou aqui por nossos países da América Latina – eu não quero dizer em que país – ele sonhou de olhos abertos o seguinte: de repente, ele estava em casa e receberia um telefonema da Rainha da Inglaterra, que tinha ouvido falar de suas notáveis qualidades e queria conhecê-lo. E isto porque ela tinha visto uma sua fotografia. E que então, na viagem, ela tinha tomado essa fotografia dele para enviar um seu adido para visitá-lo e apresentar as homenagens da Rainha. Esta, após debater questões com o rapaz, resolveu levá-lo para a corte da Inglaterra, porque um homem destes não podia deixar de ser aproveitado… E que se a pobre pátria dele lhe fechava os olhos – o senhor está vendo que não se tratava de um rapaz muito ilustre -, ao menos ela lhe fazia justiça…
Quando o sujeito chega a fazer um sonho destes, ele perde a coragem de trabalhar durante um mês!…
(Risadas)
Fica-se quase com vergonha de ser homem, quando a gente pensa uma coisa dessas! Perde a coragem de trabalhar… Tenho certeza de que essa pessoa seria outra se não fizesse esses sonhos megas dessa natureza. Porque o mega nunca faz um sonho assim: Vou trabalhar sério, vou me cansar durante 30 anos na obscuridade até que, afinal, um dia…
Não quer saber nem de obscuridade, nem de trabalhar durante trinta anos, nem fazer algo sério, nem duro. Mas somente sonhos… Resultado: dá na preguiça!

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