Conferir o Evangelho com Pedro (por D. Geraldo de Proença Sigaud)
Catolicismo Nº 142, Outubro de 1962, pág. 5
Dom Geraldo de Proença Sigaud, Arcebispo de Diamantina
Creio que a mais breve e concisa definição da Igreja Católica é a que dá São Paulo quando, no primeiro capítulo da Epistola aos Romanos (1, 16), assim caracteriza o Evangelho: “virtus Dei in salutem” — o poder de Deus para a salvação dos que crêem. Na. Igreja Católica temos o poder divino que empreende a salvação dos homens de todas as raças e culturas: “judaei primum et graeci” (cf. loc. cit.) — primeiro do judeu, e em seguida do gentio.
Antes de Pentecostes, a situação era quase esta: os homens a seguirem o caminho da perdição, e Deus os entregando à sua sorte. Sem dúvida, também então a misericórdia divina procurava a salvação do pecador, dando-lhe a graça suficiente, ao menos para rezar. Mas com Pentecostes a graça, antes rara e medida, torna-se como um destes nossos verões chuvosos em que o dom das águas abundantes se casa com o tépido beijo do sol, provocando um exuberante, irresistível e universal crescimento. Com a fundação da Santa Igreja passou o inverno frio e estéril: “jam hiems transiit” (Cant. 2, 11), e começou a primavera e o estio.
Entre as grandes graças que Jesus Cristo concedeu à sua Esposa figura, em lugar proeminente, a graça dos Concilias Ecumênicos.
A instituição que a teologia denomina Concilio Ecumênico é uma instituição “sui generis” e especialíssima. Ela consiste na reunião oficial de todo o Episcopado católico, convocado pelo Santo Padre “in Concilium”. Não é bastante o convite feito a toda a Hierarquia para ir a Roma. Pode acontecer que grande parte dos Bispos existentes se reúna ali para uma solenidade, um congresso. Assim aconteceu em 1.° de novembro de 1950, quando da proclamação do dogma da Assunção da Santíssima Virgem. Naquela data, a Basílica de São Pedro viu reunidos mais de setecentos Bispos de todos os quadrantes. Mas não era um Concilio. Quando o Papa convoca a Hierarquia para o Concilio, todos são obrigados a comparecer, salvo impossibilidade real, que deve ser reconhecida pela Santa Sé. A convocação é feita com o objetivo de se decidirem questões importantes para a vida da Igreja, sejam elas de caráter doutrinaria, disciplinar ou administrativo.
Uma vez assim reunidos os Bispos de todo o orbe, em torno do Papa ou de seus Legados, o Concilio passa a funcionar e a gozar de sua natureza especifica admirável.
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O que faz do Concilio uma graça imensa para a Igreja não é propriamente o encontro dos Bispos entre si, e com o Papa. Não é a troca de ideias, o conhecimento mútuo, “a caridade recíproca, o estudo dos problemas mundiais. Tudo isto representa grandes vantagens, mas são aspectos secundários. O que dá uma importância transcendental ao Concilio é o conferir o evangelho com Pedro, como fez São Paulo (cf. Gal. 1, 18; 2, 2).
Em que sentido o Concilio realiza este conferimento do evangelho? Em dois sentidos que se completam.
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Vejamos o primeiro, mais imediato.
É próprio às contingências de uma comunidade de âmbito mundial, como a Santa Igreja, envolta nas lutas da vida, ver aparecerem serias divergências doutrinarias e disciplinares entre os seus orientadores. Isto é próprio da condição humana, e pode acontecer e tem acontecido também na Santa Igreja. Sem dúvida, este fato em si é doloroso e grave, e cheio de graves consequências. Se considerarmos a situação atual do Catolicismo, verificaremos que no momento ocorre algo desta natureza. Há um século a Santa Sé luta contra a penetração do liberalismo nos meios católicos, e os pontificados de Pio IX e Leão XIII se caracterizaram pela combate contra este inimigo. São Pio X se imortalizou pela luta contra o modernismo. Mas nem o liberalismo nem o modernismo foram inteiramente vencidos, e grandes setores do Catolicismo de hoje estão eivados destes erros. Neste meio século, outro gravíssimo inimigo penetrou nas nossas fileiras: o socialismo. Temos católicos “socialistas”, “socializantes” e até “católicos-comunistas”. Quantos católicos professam a tese de que todo o regime do capitalismo é intrinsecamente mau, e que o comunismo só é mau enquanto ateu! Nas questões de ascese vemos igualmente reinar em vastos setores uma grande confusão.
A doutrina e a orientação da Santa Sé, porém, são claras, nítidas e seguras. Quem quiser saber o que Roma pensa dos problemas modernos não precisa de outra coisa mais do que estudar as Encíclicas, os Discursos papais e os decretos do Sínodo Romano, há pouco realizado, que concretizam o pensamento de Sua Santidade o Papa João XXIII, o pensamento, a doutrina do atual Pedro. Indo a Rama, nós, os Bispos católicos, poderemos comparar nossas ideias, opiniões, doutrinas e orientações com as do Santo Padre. Se formos dóceis, que benefícios não traremos para nossas Dioceses, e que união profunda não nascerá deste aferimento de nosso evangelho com o de Pedro!
Esta vantagem provém da graça da infalibilidade pessoal do Romano Pontífice quando define assuntos da fé e da moral. O magistério do Papa é o padrão absoluto da verdade. Os mestres da verdade, os Bispos, irão a Roma conferir seu magistério com o de Pedro. Os metros de todo o mundo têm o mesmo comprimento, porque aferidos com o mesmo metro-padrão, a barra de platina-irídio que se conserva em Paris. O evangelho do Papa é comparável a este metro-padrão. Ele contém a verdade infalível. Acomodar, igualar nossa pregação à do Papa é igualá-la à verdade.
Falando da unção sacerdotal de Aarão, comenta o Salmista que, ao sagrar seu irmão primeiro Sumo Sacerdote, Moisés derramou-lhe óleo santo sobre a cabeça em tal abundância, que a unção escorreu ao longo do rosto, e ungiu e perfumou a barba de Aarão. “Sicut unguentum in capite, quod descendit in barbam, barbam Aaron” (51. 132, 2). Assim a infalibilidade pessoal do Santo Padre beneficia cada Bispo que com ele confere o seu evangelho. Por via de uma participação extrínseca, os Bispos dão a seu magistério o cunho de infalível.
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Mas a graça do Concilio é muito mais profunda. A ação do Espírito Santo sobre o Episcopado mundial presente ao Concilio não se limita a este conferimento extrínseco entre o magistério falível de cada Bispo e o magistério infalível do Vigário de Cristo. A graça do Concilio é muito maior. A infalibilidade deste é uma infalibilidade própria. É verdade que ele não pode existir sem a presença do Papa, ou pessoal ou mediante Legados. Mas, uma vez legitimamente reunidos em Concilio os Bispos do mundo, em torno do Santo Padre ou de seus representantes, está em funcionamento o Concilio, e desde este momento passa a atuar o Espírito Santo com uma ação nova e extraordinária. Começa um trabalho duplo, de doutrinação externa e de iluminação interna. Servindo-Se do Sumo Pontífice, dos Bispos, dos teólogos e do estudo pessoal como de instrumentos de sua ação, o Divino Paraclito vai esclarecendo as questões, resolvendo as dificuldades, abrindo as perspectivas, alargando os horizontes, refutando erros, corrigindo equívocos. Ao lado desta ação de doutrinação externa, Ele vai iluminando as inteligências dos Prelados presentes e movendo-lhes os corações com sua graça. O trabalho do Espírito Santo se faz assim através de graças externas e internas. Este trabalho costuma ser lento, e tanto está sujeito às deficiências dos instrumentos humanos de que Deus Se serve, como depende da colaboração dos homens com a ação da graça que ilumina e move cada um dos Padres conciliares.
Por isto a história de um Concilio é cheia de peripécias, de imprevistos, de empecilhos, de soluções que às vezes constituem recuos que causam preocupação, para depois se transformarem em avanço e progresso. Num trabalho lento do Espírito Santo vai fermentando a assembleia conciliar. A princípio talvez boa parte dos Bispos estivesse desorientada. Mas a ação do Espírito Divino vai mudando esta situação. Servindo-Se de instrumentos variados, Ele vai fazendo que um número sempre maior de Padres conciliares se ponha do lado da doutrina verdadeira. Assim, após um trabalho aturado dos teólogos e Padres, o número dos que discordam vai diminuindo, até que uma perfeita ou quase completa unanimidade se
obtenha em torno da verdade. Chegado a este ponto, praticamente todo o Episcopado da terra pensa da mesma maneira. Cria-se a unanimidade em torno da verdade, base única e insubstituível da união : “unitas in veritate, unitas in caritate” — união na verdade para que haja união na caridade.
Que graça admirável esta que o Espírito Santo concede à Igreja, de uma infalibilidade coletiva! Já é uma imensa graça a infalibilidade pessoal do Papa. Esta infalibilidade no Concilio como que atinge a maioria do Episcopado, que assim “confere seu evangelho com Pedro”, já não só por uma comparação externa, mas por uma iluminação interna.
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Por isto os Concílios não podem ser muito breves. É necessário que haja exposições de teses, objeções, discussões, conversas particulares, estudo, meditação, muita oração, a fim de que a luz do Espírito Santo vá penetrando as inteligências, uma por uma, e aos poucos as divergências, que talvez fossem muitas no começo, se vão desmanchando e deem lugar a uma solida unanimidade de convicções. Não é necessário que todos os Padres conciliares cheguem à mesma convicção. Juiz do momento em que as deliberações devem ser consideradas suficientes é o Santo Padre. Ele poderá mandar proceder à votação, mesmo que a unanimidade absoluta não tenha sido obtida. Isto fica a critério da sua prudência. Mas o normal é que as comissões estudem os assuntos e os expliquem aos Bispos, fornecendo-lhes os argumentos, até que uma grande maioria se coloque do lado da verdade. Este trabalho é extremamente delicado, mas é também excepcionalmente importante. Porque a unanimidade de magistério nascida do Concilio não deve ser fruto da legítima e muitas vezes necessária imposição da autoridade do magistério papal, mas fruto da ação do Espírito Santo através do estudo e meditação dos próprios Padres conciliares.
Meditemos sobre a grandeza deste aspecto da graça do Concilio, dessa graça insigne que Nosso Senhor Jesus Cristo concedeu à sua Esposa. Reúnem em Roma Bispos de todos os quadrantes da terra. Muitos deles têm uma mesma doutrina, uma idêntica visão do mundo, do apostolado, da ascese, dos deveres dos católicos na hora presente, dos perigos que os espreitam, da atitude a ser tomada diante do mundo, do comunismo, da moda, da Revolução, do modernismo, do racionalismo. Outros, ao invés, defendem (com a melhor das intenções, sem dúvida) pontos de vista diferentes e até opostos, tanto no terreno doutrinário, como no prático, litúrgico, disciplinar. Com franqueza apostólica, caridade e humildade profunda, todos expõem e defendem as suas convicções. Cada um pode e deve falar francamente, mesmo que incorra o perigo de defender o erro, — contanto que esteja disposto a abandonar suas opiniões para se submeter à decisão do Concilio. Em Trento o Papa Paulo III garantiu e defendeu este princípio fundamental para o êxito de um Concilio.
Surgirão assim grupos de Bispos que em pontos fundamentais de fé e moral sustentarão uma doutrina oposta à que outros defendem. Cada um exporá com franqueza seu ponto de vista, seus argumentos, suas objeções. A Sagrada Escritura, os Papas, os Concílios passados, os Santos Padres, Doutores e teólogos, a razão ao serviço da Fé, desfilarão na defesa das várias opiniões. O Soberano Pontífice, pessoalmente ou por seus Legados, dirigirá os debates, sem impor sua doutrina. Aos poucos se operará o esclarecimento dos conceitos, se revelará a força dos argumentos, se alargará o círculo dos que defendem a verdade, e no fim esta brilhará com tal esplendor, que ofuscará todas as opiniões contrarias e sujeitará todas as inteligências ao suave domínio de sua luz. Assim o Espírito Santo terá realizado de novo o que realizou no primeiro Pentecostes, quando todos os povos ouviram, nas mais diversas línguas, os Apóstolos pregarem a mesma verdade: “magnalia Dei” (At. 2, 11) , as maravilhosas obras de Deus.
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Esta união de ideias, de modos de ver, de pensamento, cuja falta tanto prejudicaria à Igreja, é o grande fruto que o Concilio deve produzir. Dela provirá uma renovação interna na Santa Igreja e um novo surto de santidade e perfeição.
Por isto o Concilio é uma grande graça que Jesus Cristo concede à sua Esposa bem-amada. É o veículo que torna possível o “ut omnes unum sint” (Jo. 17, 21) — que todos sejam uma só coisa.
O espetáculo maravilhoso da unidade na verdade e na caridade fará brilhar a Igreja com tal luz aos olhos dos cristãos separados que, como afirma o Santo Padre João XXIII, este espetáculo contribuirá poderosamente para atrair ao grêmio católico aqueles que ainda não lhe deram a sua adesão.
Se estudarmos a história dos Concílios, verificaremos que sempre constituíram um grande benefício para a vida católica. De muitos deles, à primeira vista, a influência foi mais negativa, e consistiu na condenação solene de algum erro fundamental. Assim, Concilio de Nicéia se celebrizou pela fulminação do arianismo, que negava que a pessoa do Filho é consubstancial ao Pai. O de Trento se caracterizou pela condenação do protestantismo. Mas, se examinarmos os resultados positivos destas santas Assembleias, veremos que eles também são maravilhosos. Nicéia, por exemplo, robusteceu a fé dos católicos e fomentou a florescência dos séculos IV e V, que gerou um Santo Ambrosio, um Santo Atanásio, um São Jerônimo, um Santo Agostinho. Embora não tenha posto fim ao arianismo, que continuou sua marcha de ruínas, a ponto de São Jerônimo poder dizer que naquela época o mundo despertou do sono e se admirou de ser ariano, o Concilio feriu de morte a heresia e retemperou as energias da Igreja.
No Vaticano II não há notícias de que alguma heresia especial será condenada. Mas todo o liberalismo, todo o modernismo, todo o existencialismo, todo o socialismo serão, por certo, alvo das decisões do Concilio. Estas heresias sairão dele feridas de morte, assim o esperamos, e a Hierarquia inteira voltará a suas circunscrições orientada para a realização de um Catolicismo sempre mais autêntico e total, que impregne todos os aspectos da vida individual, familiar e social. Encontramo-nos em plena heresia laicista, que ignora o reinado social do Sagrado Coração. O Concilio mobilizará as almas para a grande tarefa da penetração e do domínio de todos os aspectos da vida social pelo Evangelho, de sorte que Jesus Cristo seja o Rei dos corações e da sociedade. Mobilizar a Hierarquia e o laicato para a construção do reinado social do Sagrado Coração e do reino de Maria, será a grande tarefa e o grande fruto do II Concilio Ecumênico do Vaticano. Ele assim terá levantado a bandeira da luta contra o comunismo em todas as suas formas, contra o comunismo que é a negação total do reinado do Sagrado Coração sobre a vida humana, mormente sobre a vida social, e que afirma e impõe como único dono dos destinos humanos e das instituições humanas o Estado sem Deus e o Estado contra Deus. Na santíssima Assembleia que está para se inaugurar será decidida a sorte do comunismo e será selada a sua derrota total; em vez de uma humanidade sem Deus, cimentada no ódio e na inveja, o Concilio gerará uma humanidade segundo Deus e firmada na caridade e na fraternidade, brotadas da chaga do sacrossanto lado de Cristo, transpassado na Cruz.
No Concilio, mais uma vez, e de forma intensíssima, se realiza a definição paulina da Igreja: “Virtus Dei in salutem”.