Demagogia, o sumo do despotismo

 “A Notícia”, Rio de Janeiro, 2 de outubro de 1981

 

Plinio Corrêa de Oliveira

 

blank

Dom João VI, Rei do Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves de 1816 a 1822

 

blank

Nikita Kruschev, primeiro secretário do Partido Comunista da União Soviética de 14 de setembro de 1953 a 14 de outubro de 1964, sucessor de Stalin (foto Wikipedia, Dutch National Archives, The Hague, Fotocollectie Algemeen Nederlands Persbureau)

 

D. João, por graça de Deus, Rei do Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves daquém e dalém mar em África, Senhor de Guiné, e da Conquista, Navegação, e Comércio da Etiópia, Arábia, Pérsia, e da Índia etc. – e Nikita Kruschev, déspota da União das Repúblicas Socialista Soviéticas, da Polônia, da Alemanha Oriental, da Tchecoslováquia, da Hungria, da Romênia, da Bulgária, etc. Que contraste chocante entre os dois clichês.
D. João VI se apresenta em pose oficial, com as insígnias das Ordens militares do Reino. Tudo faz lembrar, na gravura, a distinção e a nobreza do ambiente de corte nas primeiras décadas do século XIX.
Kruschev, pelo contrário, vestido como um pequeno burguês, deixa transparecer toda a vulgaridade de atitude de um demagogo revolucionário do ano de 1964.
Em qual dos dois será mais vivo o amor à população, o senso das limitações do próprio poder, o respeito aos direitos dos governados, a noção da justiça com que o Poder Público se deve haver para com todos e cada um?
Para os espíritos superficiais, o amor ao povo, o respeito aos seus direitos, o horror ao despotismo são indissociáveis da demagogia, do cafajestismo e da vulgaridade. Pelo contrário, a elevação do porte e do trato, as maneiras distintas, o decoro no exercício das funções representativas, são indissociáveis do orgulho, da injustiça e da dureza de alma.
Trata-se aqui de um preconceito que não resiste à menor análise, pois o que é bom atrai o que é bom, e o que é mau atrai o que é mau. Assim, em si mesmo o respeito e o amor aos governados levam o governante a se apresentar com distinção. E, pelo contrário, o desprezo ao povo induz o déspota, pela própria natureza das coisas, a adotar maneiras vulgares e brutais. Tomar a vulgaridade demagógica como sintoma necessário de amor ao povo, é desfigurar a fundo a realidade.
No confronto entre D. João VI e Kruschev, estas verdades são frisantes.
Kruschev é o representante máximo de um sistema no qual o Estado é detentor de todo o poder, e as pessoas, às quais se nega todo e qualquer direito, não são mais do que insignificantes formigas. E isto é assim, não só na prática como na teoria. Pois, como bem expôs o Exmo. Revmo. Sr. D. Geraldo de Proença Sigaud, S.V.D., em sua Carta Pastoral sobre a Seita Comunista, a doutrina marxista nega radicalmente a existência de todo e qualquer direito.
Por isto mesmo, os imensos domínios de Kruschev constituem uma vasta senzala, apresentada pela propaganda comunista como um paraíso, mas inexplicavelmente murada e fortificada, de forma que ninguém a pode visitar, e dela ninguém pode sair. Se alguém tentar escapar dessa senzala paradisíaca, deve ser morto “in actu”, como se estivesse cometendo o mais grave dos crimes!
Mesmo assim, tais são as delícias dessa senzala-paraíso, que continuamente há infelizes que procuram dela escapar, preferindo sujeitar-se a todos os perigos, a desfrutar a ventura de ser governado por Kruschev.
Vejamos agora um exemplo de senso do direito dos súditos, no reinado de D. João VI. Quanto poderia aprender, lendo o documento abaixo, o vibrante e enfunado Presidente da SUPRA, Sr. João Pinheiro Neto…
Andavam sendo feitas algumas desapropriações despóticas e  injustas, no Reino do Brasil. Algumas desapropriações… enquanto o comunismo é a desapropriação de tudo, pessoas e bens. Alarmada por violências e injustiças que para nosso agro-reformismo socialista e botocudo não são nada, e para Kruschev não são senão o começo da sabedoria, eis o que a Coroa pondera e resolve, na justificação de motivos e no texto do decreto de 21 de maio de 1821.
*  *  *
DECRETO DE 21 DE MAIO DE 1821
Proíbe tomar-se a qualquer [um] coisa alguma contra a sua vontade, e sem indemnização.
Sendo uma das principais bases do pacto social entre os homens a segurança de seus bens; e constando-me que com horrenda infração do Sagrado Direito de Propriedade se cometem os atentados de tomar-se, a pretexto de necessidades do Estado, e Real Fazenda, efeitos de particulares contra a vontade destes, e muitas vezes para se locupletarem aqueles, que os mandam violentamente tomar; e levando sua atrocidade a ponto de negar-se qualquer título para poder requerer a devida indemnização: Determino que da data deste em diante, a ninguém possa tomar-se contra sua vontade cousa alguma de que for possuidor, ou proprietário; sejam quaisquer que forem as necessidades do Estado, sem que primeiro de comum acordo se ajuste o preço, que lhe deve por a Real Fazenda ser pago no momento da entrega; e porque pode acontecer que alguma vez faltem meios proporcionais e tão prontos pagamentos: Ordeno, nesse caso, que ao vendedor se entregue Título aparelhado para em tempo competente haver sua indemnização, quando ele sem constrangimento consinta em lhe ser tirada a coisa necessária ao Estado, e aceite aquele modo de pagamento. Os que o contrário fizerem, incorrerão na pena do dobro do valor a benefício dos ofendidos. O Conde dos Arcos, do Conselho de Sua Majestade, Ministro e Secretário de Estado dos Negócios do Reino do Brasil, e Estrangeiros, o tenha assim entendido, e o faça executar com os despachos necessários.
Palácio do Rio de Janeiro em 21 de Maio de 1821.
 Com a Rubrica do Príncipe Regente.
CONDE DOS ARCOS
*  *  *
Como se vê, muito teriam que aprender com o governo do suave e sutil Monarca bragantino os nossos demagogos indígenas, e o sinistro e apalhaçado ditador soviético.
Mas, então, tudo andava bem sob D. João VI, perguntará alguém?
Não dissemos tal. Em 1821, Portugal – como aliás o Ocidente todo – se encontrava em um triste período de decadência da civilização cristã. Disto dá mostra o próprio decreto que citamos, com sua lamentável referência “rousseauniana” ao pacto social. Mas enfim, decadente embora, era ainda a civilização cristã. Pelo contrário, no regime comunista, o que está imperando é a civilização satânica.
E o que há de mais evidente, de mais normal, de mais indiscutível, do que a maravilhosa aptidão da civilização cristã para promover tudo quanto é nobre e elevado, bem como para suscitar e favorecer o respeito a todos os direitos individuais?
Ao mesmo passo, o que há de mais certo do que o amor do demônio a tudo quanto é vulgar, chulo, reles, e à violação sistemática e despótica de todos os direitos?

Contato