Desfazendo explorações maritainistas

Catolicismo, Nº 42 – Junho de 1954, págs. 5-6

Plinio Corrêa de Oliveira

 

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Publicamos hoje, com subtítulos desta redação e diretamente traduzido da “Acta Apostolicae Sedis”, o texto integral da importantíssima alocução dirigida pelo Santo Padre Pio XII, gloriosamente reinante, em 6 de dezembro p.p., aos membros da União dos Juristas Católicos Italianos, reunidos para estudar um tema de palpitante atualidade: “nação e comunidade internacional”.

Nesta alocução, o Sumo Pontífice deu importantes ensinamentos doutrinários, e diretrizes práticas muito precisas, sobre dois problemas que vinham de há tempo preocupando a opinião católica:

1) como considerar a formação dos grandes blocos nacionais e a estruturação eventual de uma organização mundial das nações?

2) que atitude deveriam tomar os países católicos se a condição para que se realizasse tal organização fosse a liberdade, para os hereges, ou pagãos, de praticar em seu território cultos contrários à Santa Igreja?

Estas duas questões, distintas em si mesmas, mas muito afins, evocam outra mais alta, isto é, a das relações entre o Poder Espiritual e o Temporal, a Igreja e o Estado. Expliquemos por quê.

A Cristandade medieval

Na Idade Média, a Europa, homogeneamente católica, formou uma família de nações sob a direção espiritual vigorosa e constante dos Papas, e a presidência temporal mais ou menos efetiva, e mais ou menos honorífica, dos imperadores do Sacro Império Romano Alemão. Era a Cristandade. Teoricamente, e muitas vezes também na prática, esta família de nações constituía um só bloco a defender a civilização cristã contra os maometanos, ou contra os bárbaros que infestavam as fronteiras orientais da Cristandade.

No plano interno dessa comunidade, os Papas exerciam a função de verdadeiros mantenedores do direito natural e do direito cristão, principalmente no tocante às relações entre os diversos países católicos, e de defensores supremos da Fé, mobilizando quando necessário o gládio do Estado para a debelação das heresias.

Esta função tem sido muito estudada. Dos numerosos livros que sobre ela se tem publicado nenhum, talvez, seja tão sugestivo quanto a monumental compilação de atos pontifícios sobretudo medievais, apresentada sob o título de “Acta Juris Gentium Pontificia” por dois professores da Universidade do Sagrado Coração de Milão, o Conde Giorgio Balladore Pallieri e Giulio Vismara (Milão, Società Editrice “Vita e Pensiero”, 1946).

Nela se lê (pág. 7, nº 24), entre outros documentos, a famosa carta “Apud Urbem veterem” de 27 de Agosto de 1263, do Papa Urbano IV a Ricardo, Rei eleito dos Romanos:

“Aquele que rege o céu e a terra, isto é, aquele que conhece a ordem do céu e pode constituir na terra a imagem da ordem celeste, pode também derivar das coisas superiores exemplos para as inferiores; e, assim como constituiu no firmamento celeste dois grandes luzeiros para que alternadamente iluminem o mundo, assim também, na terra instituindo no firmamento da Igreja Universal seus maiores dons, a saber, o Sacerdócio e o Império, para o regime pleno das coisas espirituais e mundanas, discriminou de tal maneira as funções de ambos os poderes que por sua formal diversidade jamais se contrariassem um ao outro. Antes pelo contrário, na execução do governo cometido em razão de seu ofício concordem na união dos fins. Assim o inegável proveito da concórdia de ambos proporcionará tanto a mútua defesa quanto os auxílios mútuos, e alcançará que mais livremente se mantenha a justiça, venha a paz ao mundo, se assegure a tranquilidade e se fomente a união. Com efeito, o Império é orientado para a salvação pela autoridade sacerdotal, e, auxiliado pela proteção desta, serenadas perturbações iminentes, se torna tranquilo e estável. O Sacerdócio por sua vez deve ter um refúgio piedoso e seguro na mansidão e veneração do Imperador. Presidindo pelo fastígio do Império romano deve este desempenhar, com relação à Igreja, o ofício de especial advogado e precípuo defensor. Na fortaleza de seu braço defendam-se as liberdades da Igreja, e mantenham-se os direitos destas liberdades; extirpem-se as heresias; amplie-se o culto da Fé cristã, debelados os inimigos desta, conserve-se o povo cristão na beleza da paz e repouse numa opulenta tranquilidade”.

E na pág. 8 (nº 27), se encontra o seguinte texto ainda mais famoso, de Bonifácio VIII, extraído da Bula “Unam Sanctam”, de 18 de novembro de 1302:

“A fé nos urge a crer e afirmar uma Santa Igreja Católica, e Apostólica, e nós o cremos com firmeza e o confessamos. Fora desta Igreja, não há salvação, nem remissão dos pecados, consoante o que diz o Esposo no Cântico dos Cânticos: ‘Uma é a minha pomba, a minha perfeita. Uma é sua mãe, eleita sua progenitora’. Ela representa um só corpo místico, cuja cabeça é Cristo, como de Cristo a cabeça é Deus. Nessa Igreja, há um só Deus, uma só fé, um só batismo.

“Uma foi, de fato, ao tempo de Noé, a arca que prefigurava uma só Igreja, arca essa que… teve um só piloto e chefe, e fora da qual, segundo lemos, toda a subsistência foi destruída na terra. A esta única Igreja veneramos, segundo as palavras do Senhor pelo Profeta: ‘Tira, Senhor, das chamas minha alma, e das garras do cão minha única’. Rezou Ele por sua alma, isto é, por si mesmo, a cabeça e o corpo, e a seu corpo chamou sua única Igreja, única por causa da unidade do Esposo, da fé, dos sacramentos, e da caridade da Igreja. Esta é aquela única e inconsútil túnica do Senhor, que não foi dilacerada…

– “Portanto, esta Igreja una e única tem um só corpo, uma só cabeça, não duas cabeças como se fora um monstro. Jesus Cristo, e o Vigário de Cristo, Pedro com seu sucessor, consoante as palavras de Jesus Cristo a Pedro: ‘Apascenta as minhas ovelhas’. As minhas, disse Ele, de maneira geral, e não singularmente estas ou aquelas; pelo que se entende que lhe entregou todas. Eis que os gregos, ou outros que se dizem não entregues a Pedro, são forçados a confessar que não são ovelhas de Cristo, porquanto diz o Senhor em São João que há um só rebanho e um só Pastor.

“Nesta Igreja, e em seu poder, se encontram duas espadas, a espiritual e a temporal, segundo nos ensinam os Evangelhos. Com efeito, aos Apóstolos que diziam: ‘eis aqui duas espadas’ – aqui, isto é, na Igreja – não respondeu o Senhor que era demais, mas que era bastante. E é certo que aquele que nega que no poder de Pedro há o gládio temporal entende mal ao Senhor quando exclama: ‘Coloca tua espada na bainha’.

Uma e outra espada pois, a espiritual e a material, se encontram no poder da Igreja: a material, para ser usada em seu benefício; a espiritual, para que a própria Igreja a use. A segunda se encontra na mão do Sacerdote, a primeira, na dos Reis e soldados, mas sob o arbítrio e a moderação do Sacerdote. É necessário, com efeito, que uma espada esteja sob outra espada, e que a autoridade temporal se submeta ao poder espiritual. Diz, com efeito, o Apóstolo: ‘Não há poder que não venha de Deus’: as coisas que vêm de Deus são ordenadas. Não seriam, no entanto, ordenadas se a espada não estivesse sob a espada, e a inferior não fosse ordenada pela outra em benefício das coisas supremas.

“Com efeito, não é conforme à ordem do Universo que todas as coisas se disponham imediatamente, e sim que a ordem se faça pela ação dos médios sobre os ínfimos, e dos superiores sobre os inferiores. Ora, é preciso afirmarmos que o poder espiritual tem uma dignidade e nobreza superiores ao poder temporal, o que é tanto mais evidente quanto maior é a excelência das coisas espirituais sobre as temporais. O que aparece claramente em razão dos dízimos, das benções, da santificação, e do próprio Governo de todas as coisas. Pois, consoante à verdade, é o poder espiritual que institui e julga o poder terreno, se este não for bom.

“Assim, aplica-se à Igreja e ao poder eclesiástico o vaticínio de Jeremias: ‘Eis que hoje te constituí sobre os povos e os reinos, e o que segue’. Portanto, se prevarica, o poder terreno é julgado pelo poder espiritual; mas se prevarica o espiritual menor, é julgado pelo que lhe é superior; e se prevaricar o supremo, somente Deus, e não o homem, o poderá julgar, segundo o testemunho do Apostolo: ‘O homem espiritual julga a todas as coisas, ele mesmo, porém, por ninguém é julgado…’ Esta autoridade, ainda que dada ao homem e exercida por homem, não é humana, mas propriamente divina, conferida a Pedro por lábios divinos, a ele e aos seus sucessores na pessoa dele, a quem Jesus chamou pedra firme, quando lhe disse: ‘O que ligares, etc.’ Todo aquele pois que resiste a esta autoridade assim disposta por Deus, resiste às ordenações de Deus, a não ser que, à maneira de Maniqueu, imagine que há dois princípios, o que julgamos falso e herético, pois atesta Moisés que Deus criou no princípio, não nos princípios, o céu e a terra.

Portanto, declaramos, dizemos, definimos e pronunciamos que é absolutamente necessário para a salvação que toda criatura humana esteja sujeita ao Romano Pontífice“.

Folheando a riquíssima compilação de Balladore e Vismara, salta aos olhos a profunda influência que estas concepções tiveram na atuação do Papado. Com efeito, na designação dos Imperadores, nas contestações sobre a legitimidade de sua eleição, na sua eventual excomunhão e deposição, na nomeação e destituição de Reis como os da Sicília, Córsega, Aragão, no proteger os soberanos contra as injustas revoltas dos súditos e os súditos contra as opressões dos soberanos, no regular os problemas internacionais de ordem moral como o respeito aos tratados, os direitos dos náufragos, dos viajantes, dos cruzados, dos peregrinos, dos estrangeiros, dos prisioneiros de guerra, no condenar as cunhagens de moedas fraudulentas, no dispor sobre a situação dos judeus, no incitar à guerra contra a mouraria, no promover a paz entre os príncipes cristãos, e em mil outras atitudes dos Papas ainda, nota-se o reflexo dos princípios doutrinários que acima mencionamos.

O laicismo moderno

Em suma, esta ordem de coisas representa um pleno – ou pelo menos amplíssimo – aproveitamento de todos os recursos do Estado para promover a glória de Deus: luta contra os hereges e infiéis, repressão dos crimes, propagação da Fé, estímulo à virtude com toda a força da lei.

Com os tufões da Renascença, do humanismo e do protestantismo, esta ordem de coisas, já abalada pelos legistas do ocaso da Idade Média, foi sendo aluída. Ela agonizou ao longo dos Tempos Modernos, e morreu com a Revolução Francesa. Depois de 1789 tudo isto se transformou em reminiscência histórica, e o mundo afundou em pleno laicismo.

De fato, a Revolução instituiu um Estado que nega sejam claras as provas da divindade da Igreja, um Estado que se fixa em face ao problema religioso numa atitude de dúvida oficial e definitiva, e considera a Igreja de Deus, as seitas heréticas ou cismáticas, os cultos pagãos e idolátricos com o mesmo olhar de indiferença, displicente e céptico. Todos podem viver à vontade, que o Estado lhes garante plena liberdade e se desinteressa de suas respectivas querelas, exigindo apenas que respeitem a ordem pública e os bons costumes.

Este o laicismo rubro de matiz ateísta. Na verdade, há formas de laicismo róseas, e de tons muito diversos. O Estado pode ser leigo e deísta… Reconhece a existência de Deus, mas julga impossível saber qual a religião do Deus verdadeiro. Mantém-se pois simpático a todas, e equidistante delas.

Esta a situação que prevaleceu geralmente até 1917. Mas há ateísmo e ateísmo. Há ateus que são tais porque “não sabem” se Deus existe. E os há que “sabem” que Deus não existe. Ao primeiro tipo de ateísmo corresponde o Estado leigo. Ao segundo, o Estado que persegue toda e qualquer religião. É este diametralmente o oposto do Estado medieval.

Tal tipo de Estado surgiu na Rússia com o triunfo do comunismo, tentou implantar-se na Espanha com as abomináveis atrocidades da ditadura que a guerra civil derrubou, deitou as garras depois da última conflagração sobre a Bulgária, a Iugoslávia, a Albânia, a Rumânia, parte da Áustria e da Alemanha, a Hungria, a Checoslováquia, a Polônia, parte da Finlândia, a China, parte da Coréia, parte da Indochina, a Indonésia, a Guatemala. O império do ateísmo hodierno é um dos maiores impérios de todos os tempos, e constitui a serviço do Demônio algo de análogo – é ele geograficamente maior – ao que foi outrora a serviço da Igreja a monarquia imensa dos Habsburgos.

A força de uma reminiscência

Dissemos pouco acima que num mundo assim constituído a organização temporal da Europa medieval, toda posta ao serviço da Igreja, era apenas uma reminiscência. Mas uma reminiscência pode ser uma grande força, quando se baseia num alto ideal e empolga muitos homens.

Exemplo impressionante da força das reminiscências é certamente a chamada Renascença, que revolucionou a Europa por puro amor a um passado morto havia cerca de mil anos.

Ora, a reminiscência do Estado sacral da Idade Média também tem seus efeitos nos dias de hoje, e especialmente entre os católicos.

Como evitar que um homem seriamente imbuído da verdadeira Religião, formado na meditação dos princípios propostos por todos os Santos – por Santo Inácio, por exemplo, na meditação do princípio e fundamento, ou na das duas bandeiras – deseje com toda a alma aproveitar para a glória de Deus todas as criaturas, inclusive o Estado com todos os seus meios de ação?

Como evitar que um homem de fé, que sabe que a Igreja apresenta provas claras e certas de sua divindade; que Deus dá as graças necessárias para se verem estas provas; que a recusa destas provas e destas Graças é uma injúria a Deus – como evitar que tal homem sofra com todo ato de ceticismo, e máxime com a profissão oficial de ceticismo de toda uma sociedade representada pelo Estado leigo?

Como evitar que um fiel, realmente compenetrado do que dizem os autores espirituais sobre a violência do desregramento das paixões humanas pelo pecado original, e a subtileza das ciladas do demônio, receie sério perigo para as almas com a propaganda de seitas heréticas que lisonjeiam de todos os modos o orgulho e a sensualidade aos homens?

Por todo o dinamismo de seu amor de Deus, as almas zelosas tendem a amar aquele passado magnífico. E Leão XIII delas se fez eco quando exclamou:

Tempo houve em que a filosofia do Evangelho governava todos os Estados. Naquela época, a influência da sabedoria cristã, e sua virtude divina, penetravam as leis, as instituições, os costumes dos povos, todas as categorias e todas as relações da sociedade civil. A Religião instituída por Jesus Cristo, solidamente estabelecida na posição que lhe é devida, florescia então por toda a parte, graças ao favor dos príncipes e a proteção legítima dos magistrados. O sacerdócio e o Império estavam ligados entre si por uma feliz concórdia, e uma amistosa reciprocidade de bons ofícios. Deste modo organizada, a sociedade civil produziu frutos superiores a toda expectativa, cuja memória, consignada em inúmeros monumentos, subsiste e subsistirá sempre, de tal modo que nenhum artifício dos adversários logrará corrompê-la, ou obnubilá-la. Se a Europa cristã jugulou as nações bárbaras, e as fez passar da ferocidade à mansidão, da superstição à verdade; se repeliu vitoriosamente as invasões muçulmanas, se manteve a supremacia da civilização, e se se mostrou sempre e por toda a parte guia e mestra em tudo que honra a humanidade; se galardoou os povos com a verdadeira liberdade sob suas diversas formas; se fundou com muita sabedoria uma multidão de obras para o alívio das misérias, é fora de dúvida que deve muitas graças à Religião, com cujo auxílio empreendeu e levou a termo tão grandes coisas. Todos estes bens durariam ainda se tal acordo entre os dois poderes tivesse perseverado, e poder-se-iam operar coisas ainda maiores se a autoridade, o ensinamento, as advertências da Igreja tivessem encontrado docilidade mais fiel e mais constante. Mas esse pernicioso e deplorável gosto de novidades que o século XVI viu nascer, depois de ter transformado antes de tudo a religião cristã, em pouco tempo, por um natural desenvolvimento, se alastrou a todos os degraus da sociedade civil. É a tal fonte que cumpre fazer remontar estes princípios de liberdade desenfreada sonhados e promulgados por entre as grandes perturbações do século passado, como princípios e fundamentos de um Direito novo, desconhecido até então, e em desacordo, em vários pontos, não só com o Direito Cristão como com o Direito Natural” (Immortale Dei, 1-XI-1885).

Daí a um combate acérrimo e muito louvável contra o laicismo não há distância. E desta posição de combate para uma rejeição absoluta, incondicional, de qualquer situação que não seja a ideal, o passo é pequeno. Muitos o teriam dado imprudentemente, se não fosse o ensinamento da Igreja, superior às cogitações dos homens, até dos melhores, como o céu é superior à terra.

Tal é o dinamismo do zelo, com seus anelos, seus problemas, por vezes seus exageros. Destes últimos, o mais das vezes, se deve dizer o que de Santa Teresa de Jesus diz a Igreja: que foi admirável até em seus erros.

A traição do católico liberal

Muito diversa é a tibieza, com suas prudências, com suas acomodações, com suas covardias, com sua inteira falta de confiança no sobrenatural.

Frouxo na fé, o católico liberal crê, sem saber muito exatamente porque. De onde nada lhe parece mais explicável mais fácil de ocorrer, mais naturalmente frequente do que a dúvida, o ceticismo, a neutralidade religiosa. Seu espírito padece de uma enfermidade profunda. A verdade e o erro, o bem e o mal não se diferenciam muito para ele. O princípio de contradição, mola fundamental do espírito humano, funciona nele com todas as delongas, as indecisões, a impotência de mola velha, gasta, fraca.

Por todas estas razões, e porque é comodista, não gosta de lutar. E, ademais, tem medo da luta. As lutas da Igreja são sempre ininteligíveis se se abstrai da Providência. Ora, o liberal tem fé tíbia. O sobrenatural o deixa mal à vontade. Ele raciocina habitualmente no campo natural, e julga fazer um heroísmo quando por vezes se eleva a plano mais alto. Como certos pássaros mais feitos para andar do que para voar, que só se mantêm no ar a título de exceção, num voo curto e penoso que consome as energias de todo o seu organismo. Não confiando em Deus, tem mil razões excelentes para recear a todo momento derrotas. E por isto a única política que sabe fazer, que gosta de fazer, que costuma fazer, é a das concessões. A um tal liberal, nada perturba mais do que o receio de um choque entre a Igreja e esse Moloque que é o neopaganismo moderno. E sua vontade é de sumir na terra quando vê um Pio XII afirmar com destemor:

“Oh! Não Nos pergunteis quem é o inimigo, nem sob que aspecto se apresenta. Ele se encontra em todo o lugar e no meio de todos: sabe ser violento e astuto. Nestes últimos séculos tentou realizar a desagregação intelectual, moral, social da unidade no organismo misterioso de Cristo. Ele quis a natureza sem a graça; a razão sem a fé, a liberdade sem a autoridade; às vezes a autoridade sem a liberdade. É um inimigo que se tornou cada vez mais concreto, com uma ausência de escrúpulos que ainda surpreende: Cristo sim, a Igreja não! Depois: Deus sim, Cristo não! Finalmente o grito ímpio: Deus está morto; e até Deus jamais existiu. E eis, agora, a tentativa de edificar a estrutura do mundo sobre bases que não hesitamos em indicar como principais responsáveis pela ameaça que pesa sobre a humanidade: uma economia sem Deus, um Direito sem Deus, uma política sem Deus. O inimigo se esforçou e se esforça por que Cristo se torne um estranho nas universidades, na escola, na família, na administração da justiça, na atividade legislativa, nas assembleias das nações, onde quer que se decida a paz ou a guerra”.

As reminiscências medievais causam terror ao liberal. São seu pesadelo contínuo. E nada lhe parece mais perigoso do que o católico que as louva nos dias de hoje e, pior que isto, advoga resolutamente sua restauração.

Tese e hipótese

À vista destas tendências opostas, a Santa Sé tem tomado uma atitude que nem todos têm entendido como devem.

Lembremos antes de tudo, que os canonistas distinguem, no conjunto da admirável ordem de coisas vigente na Idade Média quanto às prerrogativas do Papado, os direitos exercidos pelo Papa enquanto Vigário de Jesus Cristo e os direitos que exercia em virtude da suserania feudal constituída livremente em favor do Romano Pontífice – em geral por louvável devoção – por muitos reis e chefes de Estado. Feita esta importante distinção, compreenderemos melhor o pronunciamento dos Papas:

I – A indiferença do Estado em matéria religiosa é um grande pecado que:

a) atrai sobre ele a cólera de Deus. Fato muito importante para os povos enquanto tais, pois as nações não têm vida eterna e expiam neste mundo mesmo, os seus pecados coletivos;

b) Funda toda a vida jurídica e moral sobre base falsa, pois no laicismo absoluto nenhum direito e nenhuma lei tem razão de ser senão pela força, e os Estados fundados sobre a força são debilíssimos. E no laicismo deísta a lei natural fica sujeita às interpretações variáveis dos homens e facilmente sofre deformações monstruosas. É o caso do divórcio, admitido em muitos países que professam esse laicismo, como os Estados Unidos;

c) Por fim, ainda que o laicismo deísta respeite todo o direito natural, não respeita as normas do direito oriundas da Revelação, e com isto cumpre mal seus deveres para com a única Igreja verdadeira, o que redunda em imenso detrimento para as almas.

II – Assim, o Estado religiosamente indiferente tem em si mesmo os germens da decomposição e da ruína, que todas as forças do dinheiro e das armas não podem remediar.

III – Esta a tese. Contudo, há circunstâncias em que os católicos devem aceitar como um mal menor a liberdade de cultos para os acatólicos. É este o caso, por exemplo, dos países em que há muitos habitantes de outras religiões e o fato de o Estado tomar uma atitude religiosa oficial provocaria uma guerra civil em que a nação poderia desaparecer. Por múltiplas razões de bom senso, vê-se que aí há um bem maior a ser salvo, e que o mal menor consiste em tolerar a pluralidade de cultos.

IV – Um mal menor, porém, não é necessariamente um mal pequeno. Amputar as pernas é um mal imenso, se bem que seja um mal menor em função da perda da vida. Por isto, os católicos não devem aceitar a indiferença do Estado como um fato consumado, definitivo, e de pouca monta. Deplorando-a com todas as veras da alma devem alimentar em si o nobre anseio da união entre a Igreja e o Estado, e devem considerar sua maior infelicidade a separação. Mais. Devem agir com todas as forças para que as circunstâncias imensamente dolorosas que obrigaram a uma tal tolerância sejam quanto antes removidas, e a união se possa restabelecer. O indiferentismo do Estado deve ser uma chaga aberta no coração de todo católico zeloso.

Transposição de um problema

Pio XII em sua alocução transpôs o mesmo problema para a esfera internacional. Na época da bomba de hidrogênio, em que se receia um colapso da civilização, comparável apenas ao dilúvio, o Papa vê como desejável a constituição de um organismo internacional. Fala aí como estadista, que mede probabilidades e perigos, pesando detidamente e com grande experiência e amplas informações as circunstâncias concretas. Por certo, um organismo internacional poderia favorecer a realização da república universal desejada pelas forças secretas. Mas de outro lado o desenvolvimento da ordem natural das coisas pede como complementação da estrutura jurídica dos povos civilizados um organismo internacional. A carência deste organismo pode precipitar uma guerra fatal. Pio XII, como estadista experimentado, pesando sem dúvida um perigo e outro, pende para a organização internacional. E ao mesmo tempo, com autoridade de Sumo Pontífice, traça as condições em que ela seria legítima sem ofensa à soberania dos Estados, mas sem dar também a esta soberania um sentido exageradamente amplo, que a doutrina católica não pode aceitar.

E depois o Papa passa a outra questão. Se a constituição desse organismo exigir a admissão da liberdade de culto, como agir? Pio XII vê bem que, no caso concreto, tratando-se de organizar Estados ateus, leigos, acatólicos, católicos, seria irrisório propor-lhes como base a Revelação. É preciso pois ficar no terreno da lei natural. Sem renunciar ao passado, sem excluir a possibilidade de uma liga de nações católicas vinculadas pela Fé, dentro da comunidade internacional, Pio XII aceita lealmente esta posição como mal menor, e raciocina em função dela.

Em que termos? Precisamente nos termos de seus Antecessores. Se para salvar o Estado de uma comoção profunda é legitimo admitir a liberdade de cultos na esfera nacional, para salvar o mundo de uma guerra, mais do que isso, de um cataclismo, é legítimo admitir a liberdade de cultos na esfera internacional. Nada há de mais lógico.

Os fiéis devem pois lamentar imensamente que o mundo esteja religiosamente dividido, e não seja possível estruturá-lo na única base sólida, perfeita, durável, que é a católica, apostólica e romana. Não podem e nem devem esperar de uma estruturação puramente natural, senão o pouco que ela pode dar e um “pouco” muito precário.

Mas se este “pouco” for o adiamento de um conflito catastrófico, que talvez com o tempo e a mudança das circunstâncias se possa evitar, é ainda assim um bem tão altamente precioso que Pio XII aberraria do ensinamento de todos os seus Predecessores se decidisse de modo diverso.

* * *

Quisemos publicar a integra da alocução do Santo Padre e comentá-la, para mostrar quanto é infantil a pretensão dos que entre nós vêm nela a Magna Carta do “maritainismo”. Em outro número, analisaremos certos tópicos do documento, que deixam ainda mais claro quanto é pueril esta suposição.

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