“A tradição e a continuidade familiar no projeto de Código Civil Brasileiro”

Em um ciclo de conferências sobre a questão do divórcio, que marcou época em São Paulo no ano de 1966, coube a Plinio Corrêa de Oliveira desenvolver o tema em epígrafe. O numeroso público que lotou o auditório da Federação do Comércio foi honrado com a presença de sacerdotes, do então ministro do Supremo Tribunal Federal, Dr. Pedro Chaves, de ministros e desembargadores do Tribunal de Alçada do Estado de São Paulo.

O Ministro Pedro Chaves abre a sessão e o Professor Plínio Corrêa de Oliveira pronuncia a conferência sobre o tema em epígrafe.

Ministro Pedro Chaves: Eu tenho, neste momento, a insigne honra de declarar aberta esta sessão. Devia fazê-lo de pé e a alma de joelhos em homenagem à vibração cívica de São Paulo ante a ameaça que paira sobre a família brasileira, numa hora conturbada em que a subversão pretende atacar os alicerces da sociedade. Mas vamos antes ouvir a palavra do Doutor Plínio Corrêa de Oliveira, um nome que é um relicário das mais altas virtudes cívicas, morais e intelectuais do nosso tempo; um homem a quem a Pátria já tanto deve e que ainda mais vai dever, porque Sua Excelência empresta o valor da sua cultura e o fulgor da sua inteligência pelas melhores causas, pelos mais belos ideais de São Paulo e do Brasil. Com a palavra Sua Excelência. (aplausos) blank

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O Prof. Plinio Corrêa de Oliveira discorrendo sobre o tema “A tradição e a continuidade familiar no projeto do Código Civil Brasileiro”

Dr. Plinio: Excelentíssimo Senhor Ministro Pedro Chaves, dignos componentes desta mesa, reverendíssimos senhores sacerdotes, minhas senhoras e meus senhores. Não sei verdadeiramente como começar, porque depois das palavras tão generosas com que houve por bem referir-se à minha pessoa o Sr. Ministro Pedro Chaves, eu deveria um agradecimento que não tem proporção com os vocábulos que eu possa encontrar para este fim.

Com efeito, é bem verdade que dos elogios que um homem possa receber, na sua atuação pública, o de um magistrado é o mais imparcial, é o mais carregado de densidade e de valor moral; mas quando esse magistrado se encontra no ápice das honras e dos encargos da magistratura, sobe muito de ponto a honra que com isto ele faz referindo-se elogiosamente a alguém; mas quando esse magistrado é o Senhor Ministro Pedro Chaves, em quem São Paulo admira um padrão lídimo, autêntico e altamente expressivo de cultura, de valor moral e de integridade, então realmente não se tem o que dizer, a não ser o desbotado, mas desta vez, tão comovido, muito obrigado.

Minhas senhoras e meus senhores, eu devo tratar na noite de hoje do problema do divórcio considerado debaixo de um ponto de vista ligeiramente diverso daquele com que habitualmente é tratado.

Há na controvérsia divorcista, como ela comumente existe, um modo de tratar a questão, que está mais ou menos, que se tornou mais ou menos clássico, se tornou mais ou menos definitivo e que, em última análise, consiste no seguinte: divorcistas e anti-divorcistas analisam a instituição da família para perguntar qual é a sua verdadeira finalidade, no que consiste dentro dela a obtenção da felicidade da parte dos cônjuges e dos filhos. Depois de se perguntarem isto, então levantam a questão: o divórcio é um meio de conseguir a obtenção desta finalidade? Ou, pelo contrário, ele é um meio que afasta dessa finalidade? Ele é um meio que conduz à felicidade dos cônjuges e dos filhos? Ou é, pelo contrário, um meio que arruina, que destrói a felicidade verdadeira dos cônjuges e dos filhos? E em torno deste assunto a controvérsia divorcista se desenvolve indefinidamente.

Vista assim a questão, ela se cinge a considerar, então, a família no seu elemento primário, no seu aspecto célula, constituída apenas de pai, mãe e filhos, e a influência dos pais sobre os filhos, a coesão dos irmãos, é habitualmente considerada de um ponto de vista que nós chamaríamos de preponderantemente pedagógico ou didático.

Em outros termos, qual o valor dos ensinamentos pré-ministrados pelos pais aos filhos? Qual o valor do divórcio ou da indissolubilidade para assegurar a eficácia desses ensinamentos? Qual é o modo pelo qual a alma do esposo e da esposa se unem dentro da vida de família? Com a indissolubilidade isto se consegue ou não consegue?

Então o problema fica reduzido a uma questão de formação, de comunicação de princípios, de acerto de inteligências, de definição de vontades, mas tudo habitualmente considerado de modo tal que eu ousaria dizer, de um modo um bocadinho cartesiano, não se toma em consideração que a família não é uma instituição convencional, que ela não resulta apenas da livre conjugação de algumas pessoas, mas que ela é uma instituição de caráter natural e que ela carrega consigo uma porção de outras influências, uma porção de outras riquezas que lhes vêm exatamente de sua condição natural.

E que essas influências e essas riquezas, se bem que na vida de família não ocupem o lugar preponderante, porque na realidade da família o ensino dos bons princípios, a formação da boa moral, o ato livre de vontade pelo qual o indivíduo cumpre o seu dever em circunstâncias até espinhosas, é sempre o elemento fundamental; entretanto, é indispensável para que essa vida intelectual e moral da família se desenvolva inteiramente com a suavidade, com a harmonia, com a força natural que lhe é própria, é indispensável tomar em consideração um outro fator. E esse fator ou esse duplo fator vem a ser, exatamente a hereditariedade, de um lado; e de outro lado, a tradição.

A tradição e a hereditariedade, como nós veremos, comunicam à vida de família um calor vital, fazem dela um fato natural com uma porção de desdobramentos de ordem psicológica e de ordem afetiva, que facilitam enormemente a realização das finalidades da família; e, em conseqüência disto, a vida de família se encontra impregnada de capacidades, de forças germinativas que, como nós veremos daqui a pouco, constituem a própria alma do Estado, a própria alma da sociedade. E se não se tomar isto em consideração, nem se conhece bem o benefício que a família presta ao indivíduo, nem o benefício que ela aufere ela mesma destes fatores, nem o serviço verdadeiro que ela presta ao Estado.

Ora, do ponto de vista do divórcio, é capital nós conhecermos nesta amplitude a vida de família, pois, se nesta amplitude se pode sustentar, como nós veremos, e se deve sustentar que a família é a célula que comunica à sociedade a sua vida, e não apenas uma pequena pedra, ou um pequeno conjunto de pedras sobre as quais se estrutura o edifício social, quer dizer se a família é algo de vivo e não apenas algo de inerte, então se deve reconhecer que a vida social dependendo da boa vitalidade da família, é uma questão de salvação pública que pende da resposta da seguinte pergunta: se realmente a vida social e a vida familiar são compatíveis ou não com o divórcio.

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O Prof. Plinio chegando ao auditório da Associação Comercial de São Paulo

Como não lhes será difícil ver, esta temática afasta, amplia o quadro do debate divorcista. Afasta o empate de seu quadro habitual, para abrir para ele todo um outro horizonte, e neste horizonte me parece que se depreende, se apura, se verifica com uma facilidade enorme que o divórcio é destrutivo da própria vida social.

Assim, portanto, a tese desta noite é que há um tipo de sociedade que é o único tipo de sociedade verdadeiramente viva, um tipo de sociedade que vive da vida da família e, em segundo lugar, que esta vida da família que comunica a sua vitalidade à sociedade, que esta vida da família não pode ser mantida e nem desenvolvida com a instituição do divórcio.

Assim introduzido o assunto, como é fácil perceber, eu me vejo obrigado a sair, desde logo, do tema imediato do divórcio para explicar um pouco melhor o que é que vem a ser esta vida da família, esta projeção da vitalidade familiar dentro da sociedade. Em uma palavra, o que vem a ser uma sociedade orgânica e viva por contraposição a uma sociedade androgênica e morta.

Não farei muitas citações. Não as farei porque a matéria já é de si muito vasta, e eu não a quero alongar ainda com citações. Não as farei também porque as citações se acumulariam enormemente ao longo do tema, pois que os escritores que daqui a pouco citarei – uns por alguns aspectos e outros por outros – tratam do assunto. De maneira que eu me referirei apenas aos escritores em que remotamente eu me inspirei, com o acréscimo de reflexões próprias.

Os escritores em quem eu me inspirei são todos eles, ou principalmente, são eles da escola tradicionalista do século passado. São: Joseph de Maistre, De Bonald, Blanc de Saint-Bonnet, sobretudo o grande Le Play, do qual divirjo em alguns assuntos fundamentais, mas que versou com inexcedível competência os assuntos referentes à família; Donoso Cortês, já citado com tanto acerto e com tanto brilho nesta série de conferências pelo Ministro Ítalo Galli; Vasquez de Melia, Balmes e Nocedal, dos grandes tradicionalistas espanhóis; o Conde Solaro della Margarita, italiano; João de Ameal e algo de Eça de Queiroz, no que diz respeito a Portugal.

Há documentos pontifícios que também trataram da matéria com muito acerto e muito brilho. Antes de tudo, Pio XII, no seu famoso trecho a respeito de povo e de massa que oportunamente citaremos; depois também Pio XII, em alguns dos seus conhecidos discursos à nobreza e ao patriciado romano, e em João XXIII, com o princípio da subsidiariedade que ele enunciou com uma precisão e com uma força maior do que todos os seus antecessores na Encíclica Mater et Magistra. Este é o material que serviu para a construção das reflexões que eu passo a expor no momento.

Para nós termos uma idéia não apenas teórica, mas uma idéia viva do que seja uma sociedade orgânica, seria talvez interessante nós remontarmos há alguns séculos atrás.

Quando o Império romano vivia ainda no esplendor de sua glória e na pujança de suas instituições administrativas e judiciárias, jurídicas, era ele sulcado por estradas admiravelmente bem tratadas, muitas das quais, ao menos em parte, ainda subsistem em nossos dias. Estas estradas ligavam entre si as cidades que se disseminavam pelo Império, e eram relativamente percorridas quer pelas tropas que deviam assegurar a defesa das fronteiras e a submissão das províncias, quer também por um grande número de viajantes, maior do que hoje se pensa, que ora a pé, ora a cavalo, ora no veículo de super-luxo do tempo (que eram os grandes comboios de carros de boi, que organizavam expedições com oito, dez carros de boi, que levavam até neve para fazer sorvete para os viajantes de luxo), percorriam, então, em todas as direções o Império.

Mas quando os bárbaros invadiram o Império, e com a influência bárbara a incultura se apoderou de toda a Europa, o Estado romano ruiu, as estradas começaram a ser pouco freqüentadas, elas se romperam porque as pontes, que as continuavam em muitos lugares, por falta de conservação, acabaram ruindo também. E com isto em muitos lugares o mato invadiu as estradas, os centros urbanos diminuíram extraordinariamente de densidade, e as pequenas cidades passaram a viver uma vida isolada, uma vida profundamente isolada e uma economia isolada.

Essa vida e essa economia transformou, por assim dizer, cada cidade numa ilhota. E cada ilhota destas como uma espécie de unidade econômica auto-suficiente, em que os habitantes eram obrigados a tirar todos os meios, todos os recursos do próprio solo para viver numa economia de subsistência direta, sem comércio, e por causa disto também, a vida de alma na pequena comunidade foi tomando uma configuração típica e inconfundível. Em cada lugar começa a aparecer uma arquitetura própria, uma indumentária própria, trajes regionais próprios, os dialetos vão se formando. Por outro lado, os costumes vão se diferenciando e quando nós chegamos aos primórdios do século XI, pelo século XII, nós encontramos a Europa toda ela transformada num mosaico de pequenos mundos avulsos, cada um estuante de vitalidade própria.

Desta vitalidade nós podemos bem ter uma idéia, se nós nos reportamos ao que dela ainda existe hoje. Todo turista que vai à Europa se encanta em conhecer os trajes regionais, as arquiteturas regionais, as danças regionais, que são os remotos e resistentes resquícios exatamente desta proliferação de variedades na Idade Média. Remotos resquícios que nos dão idéia de como em cada lugar, em cada ponto, foi se formando como que uma cultura própria e uma civilização própria, que já era muito diferente da que existia a poucas léguas mais além.

Esta proliferação, esta vida estuante, como se vê bem, vinha de baixo para cima. Eram os indivíduos, eram as famílias que, em coletividades muito pequenas onde o poder público se afirmava pouco, naturalmente comunicavam a sua força vital e a sua influência ao ambiente. E era, portanto, uma ordem de coisas em que o indivíduo, a família, o costume lideravam muito mais do que a autoridade jurídica propriamente constituída.

Esta situação começou a mudar a partir do século XII, mais ou menos, ou século XIII, quando as guerras entre os feudos decaem, quando a Europa começa a conhecer uma relativa paz, quando a ação dos cavaleiros andantes no extermínio dos bandidos desinfesta, acaba de desinfestar as estradas, e em que o comércio então começa a circular. Ao mesmo tempo em que o comércio circula, as barreiras desses pequenos mundos se modificam, e ao mesmo tempo que essas barreiras se modificam, vai começando a formar-se de aqui, lá e acolá, vão começando a se formar grandes cidades, vai surgindo nos vários reinos uma capital, o rei e a figura do rei se destaca e ele constitui uma corte, tudo caminha para a centralização.

E essa centralização vai do século XIII, numa marcha ascensional até o século XVII, e no começo do século XVIII, com Luís XIV na França, e com reis que tiveram um pouco o tipo de Luís XIV, antes ou depois dele, como foi por exemplo o rei Felipe II, na Espanha, ou como foi Pedro, o Grande, na Rússia, ou como foi Catarina, a Grande, na Rússia, etc.

O que sucede então é que essa concentração vira completamente o jogo das influencias e nós a sentimos melhor do que em qualquer lugar, considerando a corte de Luís XIV.

É uma corte paradigmática. O rei é o rei sol. Ele se considera o rei como se deve ser rei: é o modelo perfeito e acabado do rei. Uma nobreza, ao lado dele, que se considera e é tida por toda a Europa como o modelo perfeito e acabado da aristocracia de salão. Um conjunto de estadistas que a Europa reputa modelos perfeitos e acabados de estadistas do tempo. Um conjunto de grandes damas que são o protótipo da elegância, da graça e da beleza feminina do século. Até a Cátedra Sagrada entra dentro desse movimento e aparece o grande Bossuet, um pouco depois o grande [Jean Baptiste] Massillon, que são tidos como o modelo perfeito do orador sacro na Europa.

E assim, nós temos então que, se forma um centro que é o centro modelar no qual se espelha toda a França, no qual não se espelha apenas toda a França, mas se espelha também toda a Europa, em proporção maior ou menor, e há então o fenômeno do “afrancesamento” da Europa, espelha-se toda a Europa, e que nos apresenta um quadro diametralmente oposto.

Por toda a parte vão ruindo as influências locais. Por toda a parte os fatores característicos vão desaparecendo e aparece um centro que está dotado dos melhores técnicos ou dos melhores especialistas em tudo, desde a arte de conversar até a arte de dirigir finanças ou de dirigir exércitos ou de ocupar a tribuna sagrada, e este centro imitado por todos, transforma a situação. A vida, a propulsão social não vem mais da base para cima, mas vem do alto para baixo; não vem mais do corpo social, impelindo a cabeça da sociedade, mas vem pelo contrário, da cabeça da sociedade modelando a vontade; um corpo social que se torna inerte e que se deixa dirigir por ela completamente.

esta orientação centralizadora, ao contrário do que parece, não cessa com a Revolução Francesa. Comitê du Salut Public teve uma influência centralizadora e uma soma de poderes muito maior do que a de Luís XIV, mas Napoleão teve uma soma de poderes maior do que o do Comitê du Salut Public, e em geral os historiadores e os juristas franceses estão de acordo em afirmar que um Chefe de Estado francês de nossos dias tem, no fundo – é verdade que circunscrito pela lei, mas enfim, dentro do âmbito da lei, – ele tem uma influência, uma capacidade de dirigir o corpo social, muito maior do que Luís XIV no total de sua glória.

Mudou o jogo de influências: passou-se da monarquia mais ou menos aristocrática para a democracia. E nessa democracia, evidentemente, o rei passou a ser o povo. E então, no mesmo centro dirigente se passam as coisas de um modo um pouco diverso. Há uma verdadeira “doxocracia”, como dizia Marcel de Corte. Quer dizer, há um conjunto de técnicos, há um conjunto de especialistas que discutem entre si, que disputam entre si a respeito da solução a ser dada aos problemas, eles são apoiados por máquinas de propaganda, por sistemas de propaganda, eles têm a seu serviço a imprensa, o rádio, a televisão, o cinema, enfim, todos os meios comuns de propaganda, e com isso influenciam o eleitorado.

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Aspecto do auditório da Federação do Comércio de São Paulo durante as conferências

O eleitorado-rei decide a favor de uns ou a favor de outros, mas a impulsão principal continua a vir da capital, de técnicos que afluíram para a capital, que se dissociaram dos respectivos centros de vida, que vivem da vida artificial da capital, que através da capital comandam a propaganda e obtêm, através das eleições, o mando necessário para realizar aquilo que desejam.

De maneira que, em última análise, continua ser que a capital com os seus valores típicos continua a dirigir de fora para dentro a sociedade, e que os elementos regionais e os elementos locais vão cada vez mais perdendo a sua influência, perdendo a sua capacidade de movimentação.

resultado desta situação, o resultado deste jogo é a depauperação do homem contemporâneo. Cada um de nós tem a sensação de viver como um grão de areia isolado dentro da multidão.

Nós, de tal maneira nos habituamos aos meios de propaganda, de tal maneira nos habituamos a um estímulo de fora de nosso espírito e de nossa mente, que nos dê material para pensarmos, para refletirmos, etc., que já se tem visto esta coisa que se apresenta para mim a última palavra do assunto na matéria: são torcedores de futebol que em estádio de futebol assistem a partida com o rádio no ouvido, porque sem o auxílio de alguém que lhes diga o que está acontecendo e que eles também estão vendo, eles não conseguem tomar uma atitude individual e própria em face do fato que ele está presenciando.

Eu vi, há pouco tempo atrás, numa revista francesa, um fato característico, tratava-se de uma charge característica, era uma revista publicada em vésperas de Natal. Então, há uma televisão diante da qual estão sentados dois meninos, sentadinhos um ao lado do outro, muito direito, e olhando entusiasmados uma cena que representa o Papai Noel que, numa casa hipotética, representada pela televisão, entra pela lareira. Nisso, eles ouvem um barulho e eles vêem um Papai Noel de verdade que está entrando pela lareira da casa deles. Suponhamos que seja o pai que quer levar presentes, a charge não especifica isso. Então, as crianças fazem ao Papai Noel verdadeiro um sinal indignado: “Pare e não se mexa, para ver o que está acontecendo na televisão”. A charge diz algo contra esta gradual renúncia nossa a um movimento que venha de dentro para fora de nós, a um movimento que exprima algo que sai de nós e que se projeta para fora e, para exprimir a nossa inércia, para exprimir a nossa passividade diante de estímulos imensos organizados extrinsecamente a nós, e que vão nos conduzindo a todos nós para rumos que nós verdadeiramente não percebemos, e que nos estarreceriam se nós pudéssemos percebê-los.

Ainda hoje eu folheei a revista Paris Match, um número recente da revista Paris Match, e encontro uma fotografia de página inteira de uma – não sei como dizer, uma play-girl, não sei bem dizer o nome correto, eu me confesso pouco informado nesse gênero de assuntos, mas enfim – uma play-girl vestida pela mãe em trajes ultra-masculinos, e ela mesma numa atitude masculina brandindo uma espécie de tacape. A mãe tinha sido ela mesma uma vedete quando era moça, e então a revista publica junto uma fotografia da mãe quando era moça. A mãe, quando moça, ultra-feminina, correspondendo ao último estágio do tempo em que a mulher quanto mais feminina, tanto mais disso se jactava e tanto mais era apreciada pelo homem, e está recebendo carícias de um homem ultra-másculo, que presumivelmente é o pai da menina que está lá. E eu pensei comigo: se essa moça, quando ela era moça e que ela se jactava em ser tão feminil, previsse que a filha dela houvesse de ser esse grande molecão de sexo feminino que está aqui, ela desmaiaria, ela recusaria a idéia. Mas como é que ela foi levada à aceitação deste fato por tal forma que, em última análise, ela nem se deu conta disto? É pelos estímulos que vêm de fora para dentro: “é moda, agora faz-se assim, resolveu-se fazer desse jeito, a moda vai evoluindo”; ela não raciocina a respeito do fato e dentro de algum tempo o que é que nós temos? Ela está completamente transformada naquilo que num ensaio eu tive ocasião de chamar “uma baldeação ideológica inadvertida”. No caso aí seria uma baldeação cultural inadvertida. Ela se vê completamente transformada por uma baldeação cultural ou psicológica inadvertida por causa destes estímulos que vêm de fora para dentro e que lhe vão impondo modelos, estilos, modos de ser, talvez em desacordo com as tendências mais profundas do seu ser.

Esta situação Pio XII a descreveu muito bem na sua famosa rádio-mensagem de Natal de 1944. Ele disse o seguinte: “O Estado não contém em si e não reúne mecanicamente num dado território uma aglomeração amorfa de indivíduos. Ele é, e na realidade deve ser, a unidade orgânica e organizadora de um verdadeiro povo. Povo e multidão amorfa, ou como se costuma dizer, “massa”, são dois conceitos diversos. O povo vive e se move por vida própria. A “massa” é de si inerte e não pode ser movida senão por fora. O povo vive na plenitude da vida dos homens que o compõe, cada um dos quais, no seu próprio posto e no seu próprio modo, é uma pessoa consciente das próprias responsabilidades e das próprias condições. A “massa”, ao invés, espera o impulso de fora, fácil joguete nas mãos de quem quer que desfrute os seus instintos ou impressões, pronta a seguir por vezes hoje esta, amanhã aquela bandeira. Quem de nós já não presenciou fatos assim ?”

“Da exuberância da vida de um verdadeiro povo, a vida se difunde abundante, rica, no Estado em todos os seus órgãos, infundido-lhes com vigor incessantemente renovado, a consciência da própria responsabilidade, o verdadeiro senso do bem comum. Da força elementar da “massa”, habilmente manejada e utilizada, o Estado pode também servir-se nas mãos ambiciosas de um só ou de vários que as tendências egoísticas tenham agrupado artificialmente. O mesmo Estado pode, com o apoio da “massa”, reduzida não mais do que a uma simples máquina, impor o seu arbítrio à parte melhor do verdadeiro povo; em conseqüência, o interesse comum fica gravemente e por largo tempo atingido e a ferida é bem freqüentemente de cura difícil.”

Os senhores têm aí a descrição eloqüente feita pelo imortal Pio XII das conseqüências desta situação a que nós chegamos.

Então alguém me dirá: “Para o Sr., então, qual é a solução? O sr. disse que houve esse estuar de vida quando houve um ruir de estradas. Quando as estradas se reconsertaram, a vitalidade desapareceu. Então, a conseqüência: é preciso mandar bombardear as estradas e fazer com que todo mundo se afogue no isolamento. O lugarejo, o lugarejo bem perdido no fundo da selva é para o sr. a unidade da cultura e da civilização. A grande cidade, para o sr., é um dragão que devora a civilização. O sr. não oferece caminho nesse seu raciocinar.”

a resposta é muito simples: não é verdade, de nenhum modo, que é porque esses lugarejos, que é exclusivamente ou principalmente porque esses lugarejos se isolaram, que eles formaram de tal maneira uma vida própria. O Brasil está cheio, infelizmente, de lugarejos muito isolados que vegetam, dentro dos quais uma cultura, uma civilização, nada de próprio aparece, sedentos por isso da televisão e do rádio, tão amorfos quanto qualquer indivíduo que mora em grande cidade. Circunstancialmente, é bem verdade que a ruptura das estradas favoreceu, mas de um modo ocasional, um outro fato de uma origem muito mais profunda e muito mais importante. E é sobre esse fato que eu passarei a vos entreter durante um instante.

O fato é o seguinte: é que a Idade Média, apesar dos numerosos defeitos que teve – e não há época humana que não os tenha tido ou não venha a tê-los – a Idade Média foi, segundo afirmou bem o Papa Leão XIII, uma época de intensa vida religiosa. E o próprio da verdadeira vida religiosa, quando ela é bem entendida e bem vivida, é de estimular em cada indivíduo a própria personalidade, é de fazer com que aquilo que nele há de originário, de único e de inconfundível se exprima com toda a força, com toda a nitidez, e em conseqüência, a formação religiosa verdadeira forma homens de personalidade fortíssima. E é por isso que já se pode dizer que não há nada de mais parecido do que dois santos. Mas, ao mesmo tempo, não há nada de mais diferente do que dois santos. Porque, se é verdade que eles são parecidos na santidade, é verdade também que em todo o seu modo de ser, a diferença individual ressalta com uma nitidez enorme, formando personalidades que estão per diametrum opostas uma à outra debaixo de uma porção de pontos de vista fundamentais, de uma importância transcendental.

São Tomás de Aquino nos explica muito bem a razão de ser disto. Ele nos ensina na Suma Teológica e na Suma Contra Gentilis, ele nos ensina que Deus quis criar a atual ordem de coisas com um mundo de criaturas diferentes, porque por esta forma cada criatura tendo uma nota individual, característica e própria, que é o traço dominante de sua personalidade, então, em razão e em conseqüência disto, cada criatura deve brilhar com toda a sua sadia originalidade. O que não quer dizer nenhum pouco extravagância, mas sobretudo não quer dizer cópia, não quer dizer imitação, não quer dizer mentalidades fabricadas em série.

E é pela justaposição de muitíssimas criaturas que, a seu modo, cada uma reflete a Deus, é por esta justaposição que o homem pode ter durante a sua vida uma noção global do que seja Deus Nosso Senhor, mais ou menos como um sol que se reflete numa multidão de pequenos espelhos, e então, juntando todos o espelhos se pode ter uma certa noção do que é este sol na sua totalidade. E por causa disto, nós chegamos à conclusão de que é fundamental para a execução dos planos da Providência, é fundamental para a própria boa ordem da criatura humana no que ela tem de interno e de toda a criatura, que aquilo que é dela típico, aquilo que é dela característico ressalte com toda a nitidez e que, portanto, todas as suas características se desabrochem, se desenvolvam, se afirmem e triunfem na luta da vida, as suas sadias e as suas legítimas características. E foi exatamente isto que levou à formação desta prodigiosa originalidade da Europa Medieval, e foi e é exatamente este grande bem que nós devemos cultivar e considerar, como veremos daqui a pouco, como sendo o próprio bem fundamental da sociedade humana.

Como chamar a esta virtude? Eu me perguntei longamente isto. Falo aqui em face de teólogos, de moralistas, me parece que a única palavra adequada para exprimir isto, desde que ela se entenda no sentido inteiramente relativo, é uma palavra que se encontra na terminologia eclesiástica, que se encontra especialmente nas escolas morais e teológicas franciscanas da Idade Média, que se encontra, por exemplo, em São Boaventura, e que é a asseitas.

A asseitas é a condição de Deus, aquilo que é característico de Deus, pelo qual Ele tudo tem de si, tudo faz de si e nada recebeu de ninguém. Deus é o único do qual propriamente se pode dizer que Ele tem asseitas, porque é só Deus perfeito, eterno, absoluto, que nada recebeu de ninguém e nada pode receber de ninguém.

Mas nós poderíamos considerar, ao par desta asseitas infinita, desta asseitas absoluta, nós poderíamos considerar uma minúscula “asseitas” com quinhentas aspas de cada lado, relativa, contingentepequenina, que é a pequenina asseitas da criatura humanaque tudo recebeu de Deus, mas que tem uma zona interna de sua alma, que tem um ponto interno de seu ser, que tem uma nota característica de sua individualidade – zona, ponto, nota, – que é recebida de Deus, mas que em relação às outras criaturas não é recebida de ninguém, que é algo que ela tem e que ela exterioriza, que ela manifesta, que ela afirma, com isso ela se dá, mas ela não recebe. E ela é o ponto inicial de um movimento que é um movimento que nasce dela e que não é um movimento que nasce de fora dela.

Então, se nós imaginarmos um mundo de asseitas, um número enorme numa sociedade de individualidades que assim, retamente, procuram se exprimir e procuram se manifestar, nós teremos então uma vida individual estuante; uma vida individual que como um jorro fecundíssimo, pervade todas estas partes da sociedade, todos os domínios da vida pública e da vida privada, e que constitui aquela vida do povo, e não aquela situação inerte e morta da massa da qual há pouco tempo vos falava o Santo Padre Pio XII.

Esta asseitas assim configurada – nós passamos então agora para uma outra parte de nossa exposição – esta asseitas o que é que recebe da vida de família? Ela recebe da vida de família a bem dizer quase tudo. Esta asseitas, quer dizer, esta condição nossa pela qual cada um de nós é ele próprio e o mais humilde dos homens é uma obra prima insondável de Deus, que nenhum outro homem, seja ele incomparavelmente maior, conseguiria realizar daquele modo. Esta asseitas é uma força profunda que está dentro de nós, esta asseitas, enquanto força profunda dentro de nós, evidentemente há algo que tende a sair, que tende a se manifestar, a se afirmar, mas que nasce tímida, que nasce frágil ao mesmo tempo que é profunda e que precisa de toda espécie de apoios, e na vida de família é que a asseitas encontra verdadeiramente o seu apoio. Qual é o apoio da vida de família? É, em primeiro lugar, a hereditariedade.

A respeito da hereditariedade, – fator misterioso, mas que é preciso tomar em conta quando se trata destas coisas, – a respeito da hereditariedade o Santo Padre Pio XII teve também um trecho, um ensinamento de grande importância nos seus discursos e rádio-mensagens se encontra isto: é um discurso de 5 de janeiro de 1941 ao Patriciado e à Nobreza Romana. Diz ele o seguinte:

“Desta grande e misteriosa coisa que é a hereditariedade, quer dizer, o passar de uma estirpe, o passar através de uma extirpe, perpetuando-se de geração em geração, de um rico acervo de bens materiais e espirituais, a continuidade de um mesmo típico físico e moral, conservando-se de pai para filho, a tradição se une, através dos séculos, nos membros de uma mesma família; desta hereditariedade, dizemos, se pode sem dúvida entrever a verdadeira natureza sob o aspecto material, mas pode-se também e deve-se considerar esta realidade de tão grande importância na plenitude de sua verdade humana e sobrenatural. Não se negará certamente o fato de um substrato material à transmissão dos caracteres hereditários. Para estranhar isto, precisaríamos esquecer a união íntima de nossa alma e do nosso corpo, e em quão larga medida as nossas mesmas atividades mais espirituais dependem de nosso temperamento físico. Por isso, a moral cristã não deixa de lembrar aos pais as grandes responsabilidades que lhes cabem. Mas o que mais vale é a hereditariedade espiritual, transmitida não tanto por esses misteriosos liames de geração material, quanto com a ação permanente daquele ambiente privilegiado.”

E o Papa então deixa de falar aqui da hereditariedade biológica e passa a tratar da tradição. Então diz ele:

“A hereditariedade espiritual transmitida não tanto por esses misteriosos liames da geração material, quanto com a ação permanente daquele ambiente privilegiado que constitui a família, com lenta e profunda formação das almas na atmosfera de um lar rico de altas tradições intelectuais, morais e, sobretudo cristãs, com a mútua influência entre aqueles que moram numa mesma casa, influência essa cujos benefícios e benéficos efeitos se prolongam muito além dos anos da infância e da juventude, até o fim de uma longa vida, naquelas almas eleitas que sabem fundir em si mesmas os tesouros de uma preciosa hereditariedade, com o contributo de suas próprias qualidades e experiências. Tal é o patrimônio mais do que todos precioso, mais do que os bens da fortuna material, que iluminado por firme fé, vivificado por forte e fiel prática da vida cristã em todas as suas exigências, elevará, aprimorará e enriquecerá as almas de vossos filhos.

Aqui está, como vós vedes, a definição do que é o interior do lar. Há uma ação recíproca entre a hereditariedade e a tradição. Uma família, porque tem uma hereditariedade definida, ela, pelo impulso dos fatores biológicos atuando sobre os fatores psíquicos e formados por sua vez pelos valores da fé e da cultura, esta família constitui um pequeno mundo interior próprio. Mundo interior no qual cada pessoa que nasce se encontra, a bem dizer, maravilhosamente instalado, porque, como aquilo nasceu de um substrato comum existente entre todos os membros da família, aquilo corresponde exatamente à asseitas de cada um no que ela tem de mais profundo. Ela estimula cada um a ser aquilo que ele é. Ela, ao mesmo tempo que favorece o desabrochar sem timidez das características da família da pessoa, por isso mesmo estimula também o desabrochar das características individuais ligadas às da família. E assim, dentro da família, pela força da hereditariedade, se constitui aquele primeiro ambiente compreensivo, homogêneo, desinibidor que leva a pessoa a desabrochar, a se abrir e a se desenvolver.

Mas, ao lado disto há a tradição. Cada família transmite o seu modo de ser a outra geração, e com este transmitir há uma caracterização cada vez mais forte, e com esta caracterização a tradição reforça a vida biológica, a hereditariedade biológica, porque há qualquer coisa de extrínseco que acaba atuando sobre a própria vitalidade da família e depois tendo um reflexo biológico. E assim, tradição e hereditariedade, numa simbiose, produzem o ambiente dentro do qual a família dá o inteiro desabrochar do indivíduo.

Então, o que é que acontece? Os srs. devem figurar aí não uma pequena família-célula – pai, mãe e filhos – mas uma família-célula numerosa, com muitos filhos. E depois uma família-célula que está ligada a um grande número de parentes de vários graus, de vários lados, que freqüentam a casa e que dão movimento à casa. Tudo isto constitui uma espécie de três distâncias. A primeira distância é a minha casa, toda ela afim comigo. Uma outra distância é das casas mais distantes de minha família, algo parecidas, algo diversas; e depois, uma terceira distância, é a rua, que é o ponto de encontro fortuito e casual de todas as semelhanças e de todas as dissemelhanças.

Se eu sou apoiado por estas três distâncias, se eu posso me expandir nestas três dimensões, quando eu chego à rua eu tenho atrás de mim, eu tenho ao meu lado minha parentela toda que se apresenta nos lugares públicos, nos lugares de diversão, pensando como eu, sentindo como eu, impondo-se como eu. Eu enfrento a popularidade ou a impopularidade porque eu tenho um quadro no qual me apoiar, eu tenho elementos para expandir a minha asseitas.

Quão diversa é a situação da família minúscula, da família pequena, pai, mãe e filhos vivendo dentro de uma vida de lar que, por ser constituída de poucas pessoas, tem pouca variedade. E, diria o Conselheiro Acácio, que tudo quanto é pouco variado é monótono, e sendo monótono, se tende a fugir. E a gente foge indo para a rua, trazendo a rua para dentro de casa, sob o aspecto de duas, três televisões em várias salas, para a gente se esquecer que está dentro de casa e para ter a sensação que está na rua.

A gente chega à rua, chega isolado; o menino que chega ao colégio, isolado; o moço ou a moça que entra na sociedade, isolada, não têm apoio de ninguém, tem uma moda, tem um modo de ser, fabricado pela propaganda ab extrinseco e que se impõe: “Você querendo ser, tem que ser deste jeito, porque todo mundo é assim. Se você não quiser, há contra você a perseguição do ridículo, a perseguição da caçoada, a perseguição do ostracismo, mas você tem que ser deste jeito se você não quiser sofrer esta tríplice perseguição.”

Resultado: insegurança interior, titubeamento, dúvida, isolamento, capitulação. Ao cabo de dez anos deste fenômeno, ou de vinte, se a pessoa não tiver uma personalidade mais ou menos definida, está com a televisão acompanhando o jogo de futebol, e está procurando ver no jornal a descrição do acontecimento que presenciou, para saber o que aconteceu, etc., etc. Quer dizer, nós temos, então, a destruição desta asseitas. (aplausos)

Entendida assim, conjugadamente com a hereditariedade e a tradição, entendida assim a vida de família, nós já compreendemos o efeito que a vida de família produz sobre a formação da opinião pública. A opinião pública não é mais o mero produto do jornal, ou do rádio ou da televisão. O jornal, o rádio, a televisão continuarão a ter sua influência nesta formação, mas esta influência da opinião familiar, que é o que mais importa a cada um, porque é o ambiente no qual ele está e nós percebemos então que a opinião pública acaba sendo uma contextura dentro de uma tal sociedade. Contextura de opiniões familiares e que a unidade da formação da opinião pública não é mais o órgão publicitário onipotente em face do indivíduo microscópico, mas é o órgão publicitário onipotente agindo, mas encontrando a ação filtradora da família latu sensu, das relações da família, que já não são propriamente parentesco, mas são famílias de famílias num sentido mais vasto, depois no sentido menor da família célula, e depois ainda no sentido menor da família indivíduo.

E nós perceberemos, então, que uma dupla corrente se estabelece. De um lado é a influência de baixo para cima que influi, que modela a opinião pública e recebe por sua vez a ação modeladora dos grandes veículos de formação. Mas de outro lado também, como o meio de propaganda para ser eficiente precisa ser popular, é o rádio, é a televisão, é a imprensa que começa a sofrer a influência da opinião das famílias ou das opiniões das famílias, de maneira tal a poder conservar verdadeiramente o prestígio.

Então nós compreendemos que isto que é mutável, que é instável, que é falível, que é precário, que é caprichoso como é hoje a opinião pública em qualquer parte do mundo, que isto se torna então contínuo, se torna estruturado, se torna normal, se torna saudável e constitui para os próprios órgãos de difusão em grande parte do pensamento, uma proteção contra solicitações tantas vezes tirânicas da demagogia. Os Srs. vêem então o que é a opinião pública considerada dentro dessa perspectiva.

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Mas ao mesmo tempo que isto se dá assim, nós devemos pensar um pouco a respeito de um problema que nos aproxima da questão do divórcio, que já se vai divisando ao longo destas considerações, de um problema que é o da escolha dos cônjuges. A escolha do cônjuge hoje, normalmente e quando se abstrai desta condição de uma sociedade toda baseada na família, normalmente a escolha do cônjuge obedece a três critérios diferentes, e se aceitarem a expressão, a três escolas diferentes.

Há, antes de tudo, a escola caprichosa, romântica: “Vou me casar com aquela (ou ela vai se casar com aquele), porque viu e gostou”. E o casamento é isto mesmo: quanto maior o impacto, quanto maior a atração recíproca, para essa escola, tanto maior será a felicidade.

Há uma outra escola que diz o contrário: “Cuidado com esta lorota! É preciso pensar muito… depois vem a decepção. Pense no dinheiro, porque o dinheiro fica. Ela é rica? Ela serve para favorecer a sua carreira? Então, muito bem! Se ela não é rica, se ela não serve para favorecer a sua carreira, porque é que você vai se amarrar com ela? Daqui a três ou quatro anos você não está mais gostando dela, suposto que ela continue a gostar de você, que é uma incógnita, que você na sua vaidade não quer considerar… então, do que vai adiantar este casamento? Vá atrás dos bens palpáveis.” E é a segunda escola.

Bem, há uma terceira escola e esta escola é tão mais equilibrada, é tão mais razoável, é tão mais normal. Se nós consideramos como a vida de família, através da hereditariedade, através da tradição, através do ensinamento dos bons princípios, que sempre ocupam o primeiro lugar, através destes fatores, modela as almas no que elas têm de mais profundo, então não é difícil encontrar dentre pessoas do mesmo ambiente social, entre pessoas aparentadas em um grau mais ou menos distante – porque o casamento entre parentes próximos é desaconselhável – mas aparentadas em grau mais ou menos distante, ou das tais relações que já não são bem de família, nem de parentesco, mas de uma intimidade que se data não se sabe de quando, então aí se modelam afinidades tão profundas, tão estáveis, tão razoáveis, vindas de uma tradição que é de tal maneira comum a ambos, que há como escolher, dando o substratum da boa escolha e substratum da boa escolha é uma afinidade pré-existente, não decorrente do capricho, não decorrente do mero interesse, mas que tome em consideração o fator simpatia individual, com todos os seus imponderáveis, algo de ponderável dentro da avaliação das situações econômicas recíprocas, mas tudo isto precedido, coexistente e seguido desse grande fluxo da hereditariedade e da tradição, que modelou esta profunda afinidade possível entre um número enorme de pessoas, entre um número enorme de almas.

Então, para efeitos da consideração do divórcio, que daqui a pouco nós veremos, nós devemos ter bem em vista esta idéia que é a asseitas individual desenvolvida pela família, através do ensino dos bons princípios, da hereditariedade e da tradição que prepara as afinidades profundas que não existem no mundo, que nós poderíamos chamar da rua, no mundo que nós poderíamos chamar do inteiro isolamento de almas que não tiveram uma família ‘asseitística‘, e que se formaram como puderam, ao sabor do acaso, e que se encontram em lugares de diversão pública ao sabor do acaso também, e que por isso mesmo fazem casamentos que têm – hélas! como é lamentável dizer – toda a precariedade, todo o incerto de tudo aquilo que é obra do acaso. Fica este dado, portanto, como que posto de lado e nós o retomaremos daqui a pouco.

 *   *   *

Vamos passar agora a considerar o efeito da família sobre o conjunto da estrutura social. Assim como a família produz o profundo entrelaçamento das almas e através desse entrelaçamento consegue dar à sua própria instituição uma organicidade magnífica, assim também ela tende a transbordar de seus próprios quadros, projetando a sua influência para quadros diversos.

Quais são esses quadros? É normal que parentes tenham afinidades e, portanto, tenham profissões parecidas. É normal que tendo profissões parecidas eles, por isso mesmo, tenham negócios juntos. E é normal que a família, em muitos casos, passa a se tornar uma unidade de produção econômica, ou considerada numa época ou em várias épocas.

Nós tivemos no passado – Funck Brentano o desenvolve muito bem no seu tratado L’Ancién Régime – nós tivemos no passado famílias que fundaram verdadeiras dinastias ao longo dos séculos e das gerações, não apenas, como talvez pensareis – dinastias de reis, dinastias de fidalgos, dinastias de potentados -, mas dinastias muito mais modestas: dinastias de relojoeiros, dinastias de fabricantes, de artesãos de cristal, dinastias de professores. Nesta mesa ilustrada pela presença de tantos magistrados, me apraz lembrar aqui as dinastias de magistrados que, através dos séculos, se sucediam nos bancos do alto dos quais se distribuía a justiça, dinastias que concorreram poderosamente para o desenvolvimento da vida européia antes da Revolução Francesa, e que continuaram tais depois da Revolução Francesa, em muitos casos, e em muitas situações.

Funck Brentano cita esse caso muito ilustrativo de um Maître Pinon, lenhador no tempo de Luís XIV. Ele era comprovadamente descendente de lenhadores, ininterruptamente lenhadores desde o tempo de Carlos Magno, e que tinham abatido as primeiras árvores nas primeiras florestas da França ainda selvagem. Quando esse homem atingiu uma idade provecta – digamos 80 anos, não me lembro qual era a idade, no momento – quando ele atingiu essa idade, o rei da França mandou-lhe, precedidos por uma escolta de soldados, corneteiros etc., mandou-lhe umas fivelas de prata e umas insígnias, uma faixa com cores diversas para ele usar nos atos da corporação a que pertencia, e vinha, juntamente, um oferecimento de um título de barão. Uma tão grande e tão contínua fidelidade ao métier sugerira ao “rei sol” a idéia de elevar à nobreza esse homem. E ele deu essa resposta cheia de sabor: “Diga a Sua Majestade que lhe agradeço do fundo da alma, mas eu prefiro ser o primeiro lenhador da França, a ser o último dos seus barões.” E continuou lenhador. (Aplausos)

Desta unidade de produção cultural – eu omiti as dinastias de artistas, as dinastias de intelectuais que a Europa conheceu – desta extravasão da vida de família, constituindo portanto uma espécie de familiarização a partir da asseitas, através da família, familiarização de toda a vida social, nós passamos, então, à constituição dos municípios.

O município tantas e tantas vezes expresso em grupos de famílias que eram ligadas a outros grupos de famílias, e que constituíam a cidade pequena toda formada de famílias de famílias. E eu vejo algum dos senhores que me dirá mais uma vez: “Está aí de novo a cidade pequena. Não se pode então fazer nada de bom na cidade grande?” E eu respondo: Eu conheci São Paulo num tempo – e creio não ser o decano da sala com os meus 57 anos, não vou levantar este problema indiscreto, mas creio não ser o decano – eu conheci São Paulo num tempo em que a cidade, ainda menor do que hoje, ainda não era uma babilônia, ainda não era uma babel, já era uma bem grande cidade. A cidade era dividida em bairros expontânea e organicamente estruturados. Nestes bairros não havia essa seleção que me parece tão antinatural: bairros ricos de um lado e bairros pobres de outro, mas conviviam paternalmente. Por exemplo, no meu bairro, que talvez alguns dos srs. tenham conhecido, o bairro de Campos Elíseos, a casa do grande senhor e da grande dama ao lado de casas da pequena burguesia e casas de trabalhadores manuais, formando uma espécie de cidadezinha dentro da cidade. Cidadezinha dentro da cidade onde os apoios, os auxílios se faziam de alto a baixo, de família à família, e em que havia uma tal intimidade de família, guardadas as hierarquias e as proporções, que se podia dizer que o bairro era um verdadeira grande família. Era uma grande família numa cidade já grande. É incrível, mas naquela São Paulo tão pequena em comparação com a de hoje, a força de atração do bairro era tão grande que quando uma senhora se vestia para ir à cidade, isto era assim uma pequena expedição, e em geral as lojas mandavam os sapatos, os tecidos, os artigos para serem escolhidos em casa, para as senhoras não fazerem essa violência de serem arrancadas do seu próprio bairro.

O que é isto aí? Os srs. dirão: caipirismo! Quantas vezes o caipirismo não é nenhum caipirismo mas é a vida real, a vida viva, a vida palpável em confronto, em contraste com aquilo que é irreal, que é artificial, que é morto, e que do alto do seu desdém olha para esse pretenso caipirismo e é o que se chama de snobismo.

Esta vida de família formando as cidades, formava também as regiões. Em quantos lugares esta piramidalização de famílias chegava a formar uma região dominada pela influência de uma certa família, a tal ponto que um grande sociólogo francês, quando se lhe perguntou o que é que ele achava que era uma região, ele disse: “A única definição possível de região é uma zona dominada pela influência de uma grande família. Isto é uma região”. Hoje uma região é o trilho de uma estrada de ferro, é uma linha de ônibus. Naquele tempo era a força aglutinante de uma grande família.

Os srs. vêm então, através disto, a projeção da influência familiar no Estado. Porque se a região, porque se o município, porque se a profissão são dominados pela família, evidentemente qualquer que seja a forma de governo – e sobre a questão das formas de governo falaremos daqui um minuto – qualquer que seja a forma de governo, evidentemente, o que se dá é que esta influência das famílias, vinda de baixo para cima, penetra de mil modos, de mil formas no organismo do Estado. E penetrando no organismo do Estado e embebendo com a sua vitalidade, inspira o Estado; é um élan de vida que orienta o Estado, é um élan de convicções que circunscreve a ação do Estado. O Estado, os próprios dirigentes do Estado fazem parte de famílias, fazem parte desta pululação de vida, e eles mesmos sabem que não podem a seu talante modificar os rumos do Estado, porque eles estão baseados numa sociedade que não é uma sociedade de meros indivíduos, não é uma sociedade “doxocrática”, mas é uma sociedade de vida e tradição definidas, que como numa imensa caudal pode certamente marcar os rumos do barco que essa caudal navega.

E então o dirigente do Estado, o detentor do poder público traça ou não traça os rumos? Traça-os certamente, ele tem o poder, o poder está nas suas mãos. Mas traça os rumos como traça o capitão que está dirigindo um barco num rio caudaloso: ele traça os rumos, mas no sentido do rio e dentro das margens do rio. É por esta forma que o Estado toma estabilidade, que o Estado toma continuidade, que o Estado toma consistência. E então, de baixo para cima, a vida de família até no Estado penetra e dá ao Estado uma contextura da qual dificilmente, nesses nossos tempos de anorganicidade, nós poderíamos ter uma noção.

É inútil dizer aos srs. que esta vida de família assim concebida oferece seus inconvenientes. Tudo quanto nesta existência se apresenta, oferece inconvenientes. Mas não querer ter a vida de família – esta vida de família de que eu falo – não querer tê-la de medo dos inconvenientes, é mais ou menos como se uma pessoa fizesse o seguinte raciocínio: muita gente tem morrido de câncer no braço, então é melhor cortar o braço para não vir a ter câncer. Quer dizer, é um non sense. Se esta vida é indispensável, é preciso tê-la, é preciso tratar de ver como evitar esses inconvenientes.

Quais são esses inconvenientes? O maior, para mim, o fundamental desses inconvenientes resulta do fato de que por falta de um valor do qual eu falarei no fim desta reunião, e ao qual eu aludirei apenas de passagem, porque transborda dos limites desta conferencia, por falta da presença deste valor, a asseitas em vez de ser um movimento generoso pelo qual a pessoa se afirma, mas afirma se comunicando, afirma querendo dar-se e não apenas querendo reter tudo para si, a asseitas se transforma num movimento egoístico e invasor. Eu expando a minha personalidade sim, mas a custa da do outro que tem que ser como eu e não pode ser de outra maneira do que sou eu. E se é de um modo diferente, eu o esmago, eu o comprimo, porque eu só quero que seja como eu sou, e o querer que eu seja como eu sou é secundário, querer que sirva os meus interesses, eu me imponho, eu me sirvo de meu prestígio, eu me sirvo de minha influência, eu me sirvo de minha tradição, eu me sirvo de meu dinamismo, eu me sirvo – ó suprema arma! – do meu dinheiro, mas eu me imponho e todos hão de fazer aquilo que eu quero, porque eu quero e porque me convém, e o que me convém é a plenitude dos bens na plenitude do poder, é a adoração dos outros, a excelsitude de minha própria pessoa.

Quando de modo confuso ou explícito, de modo enorme ou de modo pequeno, à maneira de um teto que desaba ou simplesmente de um filete de água que mina aos poucos a estrutura pessoal e isto vai se introduzindo nas vidas de alma de certas pessoas, e depois de certas famílias, nós temos então a família que se transforma em oligarquia. E a família oligárquica é a família fechada aos valores novos, é a família que recusa a possibilidade de que uma outra família mais recente, mas que através de justos títulos de benemerência e de valor pessoal se vai afirmando, acabe sentando-se ao lado dela e acabe participando da sua influência e seu poder.

É a recusa de que um indivíduo excepcional, de uma categoria inferior, possa subir até a condição de um indivíduo de uma categoria superior. É o estabelecimento de um regime de casta, como à maneira da Índia, inteiramente fechado, de onde nunca se sai, para onde nunca se entra e que se conserva intacto através dos séculos.

A organização familiar, como eu descrevi, pode ser comparada às águas de uma piscina, renovadas discretamente, mas certamente, de maneira a evitar a estagnação. Não são nem a torrente revolta do nouveau richismo, da aventura e da improvisação, nem a estagnação que recusa todos os valores novos, mas são a família com o seu desembaraço, com a sua naturalidade, aceitando valores novos sem temer, porque ela se sente segura daquilo que é uma de suas grandes forças: a força de aglutinação. E aquilo que não tem força de aglutinação não vive.

Por outro lado, esta organização da família assim concebida, esta organização evidentemente impede um certo tipo de família que se transforma num colete de ferro para seus membros e que não admite a exceção. Toda a família viva joga com a exceção com facilidade, com desembaraço, não teme a exceção. Se alguém quer seguir outra profissão, se alguém quer emigrar do círculo de família para outro local, isto é livre, é facultativo, é concedido de boa vontade, contanto simplesmente que isto fique numa linha de exceção mais ou menos rara ou mais ou menos freqüente, de acordo com os jogos do imprevisto de tudo quanto é verdadeiramente vital.

Esta organização assim, como é claro, se coaduna com qualquer forma de governo: com a forma de governo monárquica, aristocrática, democrática, ou com uma conjugação em modos variados destas três formas de governo. Di-lo a razão que mostra desde logo que a organização da família não é incompatível com a forma de governo. Di-lo a experiência histórica que nos mostra, para não irmos além da Idade Média, cidades de forte base familiar, ao mesmo tempo, umas democráticas, outras aristocráticas, outras com um certo fermento monárquico. Ou então as grandes monarquias da Idade Média na base familiar. Esta questão, portanto, nada tem a ver com o problema das formas de governo.

Assim, minhas senhoras e meus senhores, fica dito o que deveria dizer-se para compreender o que é uma sociedade vital, o que é uma sociedade familiar, o que é esse fluxo da vida partindo das profundidades do indivíduo e subindo até as culminâncias do Estado ou até os largos horizontes da opinião pública, [e que] modelam um tipo de sociedade do qual dificilmente se tem uma idéia nos dias que correm.

  *   *   *

Resta-me agora abordar a questão do divórcio. Divórcio e não desquite, bem entendido, porque a configuração dos dois casos é inteiramente diversa, e em todas as épocas haverá lamentavelmente necessidade de separações, mas não separação com um novo casamento, que caracteriza o divórcio. Vamos agora pensar no divórcio.

É um pressuposto de toda a afirmação anti-divorcista – que já foi aludido aqui em conferências anteriores, e que não me cabe no memento demonstrar – que é impossível, uma vez concedido o divórcio, circunscrevê-lo a casos pouco numerosos. Qualquer razão que se admita como título suficiente para o divórcio, torna fácil o pretexto para que os cônjuges desagradados um do outro, procurem configurar aquela situação e obter o divórcio. O adultério, por exemplo. A opinião pública não tem censuras definidas para o adultério praticado pelo marido. Marido e mulher querem separar-se, basta que a mulher acuse o marido de adultério, ele declarará que sim e faz-se o divórcio. Um acordo sobre a divisão de bens será suficiente para manter a mútua combinação num caso deste. Quer dizer, não havendo diferenças neste ponto, faz-se o divórcio e acabou-se. Quantas outras maneiras há de fraudar a lei e de fazer um divórcio que acaba sendo pouco ou mais ou menos um divórcio de livre consentimento.

Imaginai agora uma família onde existe este divórcio por livre consentimento, ou onde existe a possibilidade desse divórcio por livre consentimento. Esta possibilidade já trinca a fundo a confiança de um cônjuge no outroEle sabe que ao sabor dos caprichos, que na sentimentalidade humana são tão vários e tão inesperados, é possível que aquela existência que se conjugou à dele e que deveria à dele estar conjugada, na máxima intimidade para todo o sempre, que aquela existência poderá se separar de um momento para o outro.

Em muitas ocasiões, ela ou ele viverão de sobressalto e na espreita. E com isto não haverá aquela confiança completa, aquela fusão completa de personalidades, que faz exatamente com que o lar constituído por cônjuges que se escolheram bem, seja capaz de dar aquela harmonia, aquela homogeneidade, que eu apontei como uma condição para a asseitas se desenvolver. E assim mesmo, nos lares onde o divórcio não existe, a perspectiva do divórcio vai ser um veneno que vai, não direi estancar, mas ao menos prejudicar profundamente e em incontáveis lares, aquela harmonia, aquela coesão que são indispensáveis para que a hereditariedade e a tradição se definam, se formem e atinjam a sua plena expansão.

Por outro lado, imaginem o divórcio. O divorcio foi concedido e a esposa se casa com outro, e o esposo se casa com outra, e restaram os filhos do primeiro casal. Qual é a homogeneidade que se pode querer entre o filho da outra ou o filho do outro, no lar onde o menino ou a menina vê alguém que substitui o seu pai ou a sua mãe, que é o rival feliz, que é o rival vitorioso, que ali entrou e se impôs? E depois vai para o outro lar, de seu pai ou de sua mãe, e encontra ali um ou uma rival, que também está bem instalada.

Qual é, nesta interpenetração de hereditariedades, de influências nascidas da briga, nascidas do conflito, qual é a harmonia possível? Qual é o entrelaçamento de solidariedades possível? Qual é a asseitas possível?

Não, a família assim retalhada, costurada e descosturada, ao sabor de paixões, ao sabor de impulsos, ao sabor de caprichos, de circunstâncias várias, esta família assim é como uma célula que se corta, é como um ser vivo que se corta; se produzir frutos, serão frutos amargos, minguados e temporãos. Dela não pode sair esta rica vida individual que é a condição para a vida coletiva, para a vida da sociedade, de maneira que ela não seja massa, mas seja verdadeiramente um povo. Ou o divórcio e a morte, ou a indissolubilidade conjugal e a vida da sociedade. (aplausos)

 

PARTE IV

Vós vereis agora, no seu conjunto, o projeto do professor Orlando Gomes como retalha a família, não só sob o pretexto de uma anulação de casamento por erro de pessoas, ele virtualmente introduz o divórcio entre nós, mas outras medidas que ele estabelece visam igualmente a desconjunção entre os cônjuges e o esquartejamento da vida de família.

Considerai a preferência dada por ele à separação de bens, de tal maneira que salvo declaração expressa em contrário, se presume que o casal se constituiu com base na separação de bens. Ninguém que tenha critério pode ser contrário de modo absoluto à separação de bens. Há circunstâncias que impõe essa separação, mas são imposições tristes, necessárias, mas tristes. O normal da família é que onde cada um se dá inteiramente ao outro, não fique como uma arrière pensée, uma trouxa com ouro, que deve valer só para um e não deve valer para o outro. A comunidade de pessoas traz naturalmente a comunidade de bens como fato geral, como fato habitual, como fato normal, compreendendo ou comportando exceções, é bem entendido. Ora, o projeto do Prof. Orlando Gomes exatamente o que pede é uma preferência declarada pela separação de bens.

De outro lado, como seria preciso – e eu não vos ameaço de fazer uma outra conferência para estender este ponto de que eu agora vou tratar – como numa família bem constituída, onde o homem entra com o valor das suas qualidades de homem. E a mulher entra com o incomensurável valor das suas qualidades mais subtis de compreender, mas tão importantes, tão profundas e tão indispensáveis do espírito e da afetividade verdadeiramente feminil, como numa conjunção assim de vida. Tudo na natureza prepara marido e mulher, máxime no casamento constituído dentro da estrutura familiar de que eu acabo de falar, e com as garantias e cautelas que esta estrutura permite, como tudo postula uma fusão completa de intenções e uma entrega de cada um de todas as suas possibilidades para fazer, do melhor modo possível, aquilo que lhe é próprio fazer.

Eu me lembro aqui no momento de uma carta do grande Joseph de Maistre à sua filha, a Duquesa de Montmorency. Ela era um pouco feminista e escreveu ao pai dizendo que não compreendia por que uma mulher não podia ser diplomata, não podia ser isto, não podia ser aquilo, aquilo outro, e porque então não se franqueava à mulher todas as carreiras. E ele respondeu, não sem muito espírito: “Minha filha, é verdade que as mulheres podem fazer muitíssimas coisas que fazem os homens, mas os homens não podem fazer esta coisa extraordinária que uma mulher faz por obra da natureza, e que uma mulher continua, por obra da manutenção, do calor vital dentro do lar, a mulher faz uma obra-prima que um homem não é capaz de fazer: a mulher faz o filho”.

Esta afirmação indica bem a conjugação dos dois destinos, ela indica bem como estes destinos se devem fundir e como, portanto, esta bipartição, este desconjuntamento da autoridade, parte na mão de um, parte na mão de outro, quase dá a impressão de duas espadas que se dão a um e a outro para duelarem e para se agredirem, em de vez de ser o casamento um instrumento de harmonia e de cooperação.

  *   *   *

Por outro lado, nós temos a torpíssima disposição do código que confere à concubina uns tantos direitos nascidos do fato do concubinato. Está a meu lado, o Des. Silvio Cintra, que tratou deste assunto com tanta coragem. Concordar que a união precária e ilícita, enquanto ilícita, seja geradora de direitos, é subverter toda a ordem moral. Mas é mais ainda: é afirmar que a relação entre o homem e a mulher, relação legítima segundo a natureza e que o sacramento torna sacrossanta, que esta relação pode existir não para constituir esta família asseitística, vital de que eu acabo de falar, mas uma união precária que a qualquer momento se desconjunta. E assim se procura colocar como base da sociedade o caos, o nada, o efêmero, o pior dos efêmeros que é o efêmero que traz em si os germes de desagregação e morte daquilo que é lícito.

*   *   *

Nestas condições, nós vemos que o divórcio, no fundo dessa sociedade que eu descrevi, aparece como uma coisa monstruosa. Ele é a negação de tudo, ele é a destruição de tudo. É só isto?

Quando nós imaginamos uma sociedade sem asseitas, sem vida familiar quente e estuante, nós temos, como foi dito várias vezes, uma sociedade dirigida de fora para dentro, nós temos uma massa. Essa sociedade pela fraqueza da matéria-prima de que ela trata, essa sociedade vai ser obrigada a se deixar dirigir cada vez mais, apela cada vez mais para o poder público, porque só o poder público tem força, só o poder público tem meios de se impor, tem meios de dirigir e de orientar. E o resultado é que a sociedade vai se tornando cada vez mais invasora, ela vai se tornando cada vez mais prepotente e o fim dessa evolução é evidentemente o comunismo. E então, nós compreendemos como o totalitarismo e o comunismo são o resultado normal da aprovação deste projeto Orlando Gomes, contra o qual, com a cooperação inestimável de vários senhores ministros do Tribunal de Alçada, desembargadores e de um ilustre ministro do Supremo Tribunal Federal, está lutando a Sociedade Brasileira de Defesa da Tradição, Família e Propriedade.

*   *   *

Vós acabais de ver, minhas senhoras e meus senhores, vós acabais de ver nesta conferência que se estende já por setenta minutos, e que aqui agora encerro, vós acabais de ver o que significa no lema desta Sociedade a palavra “família”. Não é uma palavra vazia, não é uma pura fórmula abstrata, por mais valores que nessa fórmula pode-se conter. É um fermento de vida, é uma condição de existência, é um fator fundamental de progresso, é o próprio hálito, é o próprio sopro de tudo quanto na sociedade se afirma, se desenvolve, tende para o futuro, trazendo atrás de si os valores da tradição; resiste à morte e se fixa, realizando uma dessas obras históricas que só sociedades assim sabem de fato realizar.

Só o que é natural é que vive, só o que é natural que progride, e se nós temos esse fato assombroso de que a Europa, pequena península da Ásia, a Europa entretanto se transformou, ao cabo de alguns séculos, no continente que deu o maior deslumbramento de valores culturais e técnicos que a humanidade conheceu, engendrando depois esta América, que lhe acompanha o passo e na qual a Europa se ampara, e que por sua vez se ampara na Europa para o prosseguimento da Civilização Cristã nos dias em que vivemos, se tudo isto se deveu, tudo isto a Europa teve, ela o teve porque ela teve uma organização profundamente familiar.

Organização, vida profundamente familiar, de que poderia haver exemplos a granel, entre os quais, por exemplo, a base familiar do mais famoso dos exércitos europeus. O que é o exercito alemão? Quem foi ele mesmo no tempo do nazismo, nos infelizes tempos do nazismo, o que foi ele a não ser um exército de uma nação militar apoiada e estimulada pelas famílias de yunkers da Pomerânia, do resto da Prússia?

Assim, portanto, o que nós temos é o brilho, o valor da instituição familiar e nós lutamos pela sobrevivência do Ocidente, nós lutamos pela sobrevivência da Civilização Cristã quando, com todas as veras de nossa alma, nós da direção e vós, meus caros jovens de São Paulo e de tantos Estados do Brasil aqui presentes, vós vos apresentais num trabalho ao qual eu presto aqui homenagem com todo o meu coração. Vós vos apresentais deixando interesses privados, deixando estudos, obtendo acomodação nos vossos empregos, vós vos apresentais nas praças desta cidade e de outras do Brasil, com o abaixo assinado tão festejado e tão aplaudido pela nação brasileira, afirmando que o Brasil não deseja a reforma do código civil do professor Orlando Gomes. (aplausos)

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Não me resta senão uma palavra a dizer: tudo quanto aqui foi dito a respeito da família e que é a mais entusiástica e também a mais meticulosa glorificação deste princípio vital da sociedade, tudo quanto aqui foi dito, entretanto, postula um princípio anterior. Não é este o lugar, nem o momento de dizer que todo o bem que há nas sociedades humanas só atinge sua plenitude, só se preserva de perigosíssimos fatores de deterioração com algo que eu diviso aqui com o meu olhar enlevado, com toda a força de minha fé, diviso de longe, com todo o amor: é a Santa Igreja Católica, Apostólica, Romana, esposa de Nosso Senhor Jesus Cristo. Olho aqui para o santuário, olho aqui para o sacrário, olho aqui para a Eucaristia, que é o vinho que gera as virgens e que é o pão dos fortes, que inspira à vida de família o senso do sacrifício necessário para a realidade quotidiana, tão sublime e por vezes tão prosaica, dos sacrifícios que a vida de família exige.

Olho para o sagrado lar de Nazaré, para Jesus, para José, para Sua Mãe Santíssima Maria, olho para uns e para outros como termo no qual não entro porque está além do meu assunto e está fora do meu assunto, mas eu quero encerrar o meu assunto com o fitar este termo ideal e com os lábios lembrar esta frase: “Vós e só Vós, ó Senhor Jesus, sois o Caminho, a Verdade e a Vida.” (aplausos)

Ministro Pedro Chaves: Antes de encerrar esta sessão, quero agradecer mais uma vez a honra que me foi conferida de presidi-la. Quero agradecer a participação de tantas senhoras, de tantos cavalheiros e desta Sociedade, que é nossa esperança, que recebeu aqui também o apoio da presença de representantes do clero católico, da magistratura togada da nossa terra, de nossos pensadores, dos nossos chefes de família, de nossas mães de família, que representam todas estas virtudes que foram postas em relevo pela palavra admirável que acabamos de ouvir do Professor Plínio Corrêa de Oliveira. O que eu lamento apenas é que tenha passado tão depressa esta hora em que Sua Exa. nos tenha encantado com a sua palavra e com as suas lições – uma hora e um quarto – e lamento ainda mais a posição que fiquei colocado de suceder Sua Exa.

Com estas palavras, se Sua Exa. me permite, eu encerraria a seção.

Dr. Plinio: Mais uma vez eu devo agradecer a bondade do Senhor Ministro Pedro Chaves. Eu peço vênia ao Presidente da sessão para comunicar ao plenário a situação atual de nossa campanha e abaixo assinado.

Nós estamos no momento com 685.000 assinaturas de brasileiros opostos ao projeto O. Gomes. A campanha está durando hoje, atingindo 28 dias em 57 cidades do Brasil. As assinaturas recolhidas em São Paulo são no total de 202.500. Eu vos convido a todos para a próxima sessão em que, com chave de ouro, vai ser encerrado este ciclo de conferências brilhantes em tudo, exceto no que diz respeito ao dia de hoje, este ciclo de conferências que já fulgura e vai fulgurar para o Brasil inteiro, pois que estas conferências vão ser objeto de uma larga difusão pela Sociedade Brasileira de Defesa da Tradição, Família e Propriedade.

Eu vos convido para vir a esta sessão, mas o convite é puramente formal, é apenas uma gentileza para o ilustre Ministro Pedro Chaves, porque, quando se sabe que é ele que vai falar, todo mundo se sente convidado. (aplausos)

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