Egoísmo: obstáculo para conhecer as almas dos outros e ver nelas um reflexo de Deus

Santo do Dia, 14 de maio de 1976

A D V E R T Ê N C I A

O presente texto é adaptação de transcrição de gravação de conferência do Prof. Plinio Corrêa de Oliveira a sócios e cooperadores da TFP, mantendo portanto o estilo verbal, e não foi revisto pelo autor.

Se o Prof. Plinio Corrêa de Oliveira estivesse entre nós, certamente pediria que se colocasse explícita menção a sua filial disposição de retificar qualquer discrepância em relação ao Magistério da Igreja. É o que fazemos aqui constar, com suas próprias palavras, como homenagem a tão belo e constante estado de espírito:

“Católico apostólico romano, o autor deste texto  se submete com filial ardor ao ensinamento tradicional da Santa Igreja. Se, no entanto,  por lapso, algo nele ocorra que não esteja conforme àquele ensinamento, desde já e categoricamente o rejeita”.

As palavras “Revolução” e “Contra-Revolução”, são aqui empregadas no sentido que lhes dá o Prof. Plínio Corrêa de Oliveira em seu livro “Revolução e Contra-Revolução“, cuja primeira edição foi publicada no Nº 100 de “Catolicismo”, em abril de 1959.

 

Hoje, dia 14 de maio, é festa de Santo Ampélio, o Ferreiro. Confessor do século V.
Tenho uma ficha sobre a biografia desse Santo:
A vida de Santo Ampélio, apelidado “o Ferreiro”, é toda lendária. É dado como originário do Egito, ferreiro de profissão. Desejando a perfeição, procurou os solitários da Tebaida, a eles prestando serviços variados, inclusive de sua profissão. Certa vez, o demônio transformou-se numa jovem impudica, e foi tentá-lo. O ferreiro com um ferro em brasa nas mãos para queimá-la, espantou-a para sempre. Já velho, deixou a Tebaida e foi para as imediações de Gênova, onde levou vida de santificação e contemplação. Santo Ampélio é o padroeiro dos ferreiros.”

 

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Estátua de cera de Santo Ampélio, dentro da qual há relíquias do Santo, na igreja a ele dedicda, em Bordighera, na província de Imperia (Itália).  Fotografia de Bettylella – Opera propria, Wikipedia, CC BY-SA 4.0 

Bem entendido, dizer que a vida dele é toda lendária é um modo de dizer… Se ele está canonizado pela Igreja, tem-se certeza de que ele existiu, é que de fato foi santo. Muitas vezes, naquelas canonizações primeiras não eram feitas regularmente. Era uma inspiração do Espírito Santo a todo o povo, que fazia com que a voz do povo considerasse que alguém era santo. E era de fato santo.
E aí estava também engajada a autoridade da Igreja, embora sem o processo regular inteiramente de canonização, que se faz hoje em dia.
Como os Srs. estão vendo, os dados biográficos desse santo são muito pobres e, portanto, pobre tem que ser por força o “Santo do Dia” que a respeito dele eu possa fazer.
Podemos imaginar mais ou menos o que seria a vida de Santo Ampélio como ferreiro ambulante nas Tebaidas do século V.
No século V precisamente a instituição eremítica estava ganhando o seu verdadeiro feitio. Porque durante os séculos anteriores – III e IV sobretudo -, o Império Romano do Ocidente e do Oriente se perseguiam muito os católicos. A vida deles era extremamente difícil. Muitos deles, como os senhores sabem, fugiam para o deserto para não serem presos, para não serem torturados. E ali eles passavam uma vida, às vezes longa, até 90 anos ou mais, na tranquilidade absoluta do deserto, rezando a Deus e pedindo pela Igreja Católica de tal maneira perseguida.
Mas, nessa terra, Deus não permite que a vida de ninguém seja sem provações grandes. E sobretudo são provações grandes e até heroicas, daquelas pessoas que Deus ama mais e que Ele destina a prestarem um serviço mais especial à Igreja.
Esses eremitas indo para a Tebaida, os senhores não devem imaginar que o único martírio que eles sofriam era do isolamento e do silêncio – o que era certamente um martírio. Os srs. podem imaginar no homem que tem instinto de sociabilidade e, portanto, a tendência comunicar-se, o que pode representar de sofrimento passar sem ver absolutamente ninguém durante 40, 50 anos, a não ser um ou outro raro visitante que ia de vez em quando, e que ninguém sabia bem exatamente quem era. Porque às vezes podia ser uma alma necessitada que ouvia falar daquele eremita e então empreendia uma viagem arriscada para lhe pedir orações, outras vezes era um bandido que estava fugindo da polícia, das autoridades, era um criminoso político, algum lunático, algum maníaco, às vezes até um possesso do demônio que estava correndo por aquelas zonas.
Depois é preciso acrescentar essa coisa que é curiosa e é real: os lugares muito ermos, muito isolados, se não são lugares muito abençoados, às vezes são lugares especialmente infestados pelos demônios. Então, por exemplo, certos baixios, certas grutas muito profundas, certos lugares onde nunca vai ninguém, são lugares onde facilmente o demônio se põe. Os demônios procuram como lugar de permanência habitual de onde eles saem para fazer infestações, geralmente lugares destes, às vezes até lugares horríveis: pântanos, locais com mau cheiro etc., etc. E esses eremitas se situavam onde podiam; nem sempre podiam escolher os seus lugares; às vezes lugares lindos, às vezes lugares feios. Estavam ali, portanto, sofriam todo o isolamento e, às vezes, a presença do preternatural.
Mas isso é nada; o homem é de tal maneira feito para a reflexão, de tal maneira feito para a luta e para a dor, que quando o homem foge da luta e da dor e se põe no deserto, dentro de sua alma nascem os problemas, nasce a luta e nasce a dor. E acaba tendo provações interiores que são muito mais terríveis que as provações exteriores.
O que é uma provação interior?
Um eremita vai para o eremo, nos primeiros tempos sente uma alegria, consolação, as graças de Deus inundam sua alma; de repente aquilo vai se afastando e perde toda a unção primeira. Ele começa a se sentir isolado, começa a se sentir triste e, de repente, começa a tentação a zumbir dentro da alma dele. E com a tentação, começam as infestações diabólicas às vezes.
Ele se sente deprimido, se sente abatido, sente com mal estar, com problemas, com questões. Começam as tentações, e a pior das tentações é a tentação contra a Fé. Ele é convidado pelo demônio a pôr em dúvida a própria Religião Católica. Os demônios aparecem às vezes aos eremitas e fingem festins de Roma, de Alexandria, de outros lugares em que eles estão, eles têm alucinações. Tudo acontece!
* Os eremitas do Bairro da Luz 
Pois no século V o número de eremitas era muito grande, mas já não era determinada mais pelo medo das perseguições – que acabaram com a invasão de Roma pelos bárbaros e com Constantino – mas era determinado pelo medo das grandes cidades, medo de se perderem nas grandes cidades, pela vontade de oferecerem a Deus o holocausto de sua solidão.
E houve tantos e tantos eremitas nessa época que se chegou a dizer que os desertos estavam formigando de eremitas.
Em todas as épocas da civilização cristã houve eremitas em grande quantidade. A nossa época é que é a infeliz época sem verdadeiros eremitas.
Os senhores sabem que eu costumo ir com frequência à tarde, na Igreja da Luz, fazendo minhas orações na ida e na volta.
E nunca deixo de me lembrar, quando passo por lá, que as histórias de São Paulo contam que o bairro da Luz era povoado por eremitas, que moravam ali nas voltas e contornos do rio Tietê, tornadas particularmente poéticas pela névoa que existia naquele tempo, em certas épocas do ano, sobretudo no Tietê, naquela zona mais úmida, e pela quantidade enorme de garças que voavam de um lado para outro, e que encantavam Frei Galvão quando ele passava por lá. Tão diferente, tão diferente do bairro da Luz de hoje em dia…
Esses eremitas tão numerosos eram servidos às vezes por ambulantes, que iam visitá-los, que iam levar coisas, que faziam caridade para eles etc.
E este era um ferreiro.
* Um curioso turismo das almas empreendido por Santo Ampélio
Os srs. podem imaginar que vida curiosa e que forma única de turismo, o turismo das almas…
Um homem que é ferreiro de profissão, e que vai gratuitamente de ponto em ponto para visitar um eremita; mais adiante tem um que fez tal milagre, mais adiante tem outro que se destaca por tal outra virtude; mais adiante tem uma eremita que é célebre porque é mãe de um imperador.
Assim vai conhecendo alma por alma e vai revisitando os itinerários conhecidos e prestando serviços de bater ferro, fazer alguma peça de que eles precisam para alguma coisa para facilitar a sua vida material.
Provavelmente sem falarem, provavelmente recebendo do eremita algum conselho – se eles pediam – para sua própria vida espiritual. E depois vai mais adiante.
E sendo um verdadeiro “Guide Bleu” – é o grande guia de turismo da Europa –, “Guide bleu” dos esplendores espirituais do deserto: “Se quer conhecer alguém que tem o dom da profecia, vire por ali e desça lá, naquela gruta lá tem um velho. Mas se quer conhecer alguém que é heroico nas penitências, suba e vá até o alto daquele morro, lá há um jovem que se flagela de um modo admirável. Mais adiante tem um que se levanta a tal medida assim do solo, quando chega ao meio-dia, para saldar Nossa Senhora! E mais adiante, quando chegar a noite, vá ver dormir na paz, enquanto uivam as feras lá fora, o grande eremita tal, cujo sono é edificante e traz paz a todo mundo que o contempla…”
Provavelmente este Santo, com seus dons de ferreiro, Santo Ampélio provavelmente ele foi um visitador, um turista da santidade, pelos desertos; e ele era movido com certeza pelo encanto, pelo entusiasmo que lhe causava o contato com almas tão extraordinárias.
* “Os verdadeiros monumentos deste mundo são as almas dos homens” 
Se essa hipótese – que é uma hipótese perfeitamente plausível – for verdadeira, então sabemos qual é a virtude que podemos imitar de um santo tão desconhecido no geral de sua biografia. E a virtude é esta de ele nos pedir e nos comunicar uma dupla graça: a graça de termos desejo de conhecer as almas, termos o discernimento para perceber como são as almas – acompanhada da graça de admirar em cada alma aquilo que é reto, aquilo que é segundo Deus. De admirar em cada alma aquilo que ela seria se ela fosse inteiramente fiel e o grau de fidelidade que dentro dela existe e que faz dela um reflexo especial de Deus.
Saber também discernir nas almas o que é ruim
Eu lhes garanto que uma pessoa que passasse sua vida apenas estudando e conhecendo as almas, levaria uma vida muito mais “entretenida” do que se fizesse qualquer outra coisa. Certamente mais do que se tomasse um avião para ir de Chandannagar [Índia] e indo de Chandannagar para Delhi, de Delhi para Shangai, de Shangai para não sei que ponto da América do Sul, do Norte ou da Suécia, vendo coisas, entrando em aeroportos, hospedando-se em hotéis, vendo monumentos e ficando com a alma vazia…
Os verdadeiros monumentos deste mundo são as almas dos homens. E não há nada mais belo, mais interessante, mais atraente, do que a gente conhecer as almas.
Eu confesso aos Srs. que o pouquinho que a experiência e o contato com as almas me tem dado, faz com que nas poucas viagens que eu fiz, ainda o que me interesse mais é conhecer as almas, inclusive as almas dos homens sem alma… Até essas são interessantes de conhecer, a contrário sensu.
* Interesse até por um homem sem “alma”
Eu me lembro que uma vez viajei do Rio para Paris, ao lado de um sujeito que vinha da Indonésia, e era um holandês que ia descer em Londres, e que não tinha alma. Eu olhei para ele de soslaio e disse [para comigo]: “Mas que horrível. Isso é uma longilínea posta de carne; ele não tem alma, não tem nada! O que é esse homem?” Deve ser interessante conversar para conhecer a alma de um homem sem alma.
Então eu fiz um comentário com ele a respeito da rapidez do avião. E conversamos alguns trechos da viagem. E fiquei vendo o vazio de um homem completamente sem alma que se sentia bem no corpo – porque era evidente que ele tinha uma invejável saúde, e fazia disso a sua alegria; mas que ficava sempre comprimindo uma alma que persistia em voltar e dizer a ele que não estava satisfeita. De maneira que havia nele, ao lado de muita saúde, horas de tanta tristeza, de tanta amargura e de tanto vazio, que eu disso fiz para mim um tema de meditação e – eu lhes garanto – de “entrenimento”.
Mais ainda, quando eu converso com uma pessoa, com duas, às vezes com duzentas, eu me entretenho em olhar para as almas, me entretenho! Aliás, é impossível que os Srs. não percebam eu olho para as almas. E muitas vezes me alegro – não será talvez sempre –, mas muitas vezes me alegro. SEMPRE aprendo alguma coisa, e sempre saio com maior capacidade de conhecer minha alma, conhecendo as almas dos outros.
* Nosso Senhor estava constantemente voltado para a contemplação do Padre Eterno e nas almas com quem tratava
Então, aqui está um convite para os Srs. todos começarem a ser “amatoris animarum”, da categoria de gente que ama as almas, que gosta de conhecê-las.
Está muito tarde, vamos terminar agora.
Haveria algo na vida de Nosso Senhor, que seria um exemplo adequado para isso? Toda a vida de Nosso Senhor é isso. A gente toma tudo quanto Ele fazia, a gente nota que fazia em função de um conhecimento perfeito das almas com quem Ele tratava. E tudo ajustado às condições e às necessidades das almas com quem Ele tratava.
Quer dizer que Ele estava constantemente com a mente posta no Padre Eterno e nas almas com quem Ele tratava; olhando essas almas, considerando, logo no primeiro olhar.
Por exemplo com o moço rico do Evangelho. Diz o Evangelho que Nosso Senhor olhou e o amou. Quer dizer, viu a alma dele e a amou por causa da fidelidade dele.
E assim por diante… Quantas outras ocasiões que a gente percebe… Quando Ele tratava com os fariseus e tudo o mais, era a alma que Ele via até o fundo, conhecia até o fundo. E por isso Ele, com Sua sabedoria, Sua santidade infinita, remexia até o fundo dos acontecimentos dos povos com quem Ele tomava contato.
Nós podemos imaginar qual era a alegria de Nosso Senhor quando Ele olhava para Nossa Senhora, e quando Ele via a alma perfeitíssima dEla. É uma alegria de que nós não podemos ter uma ideia da alegria que Ele tinha com isso. Nós podemos, entretanto, ter uma ideia indireta por aí: se o ver a Imagem de Nossa Senhora de Fátima Peregrina na Sede de Seu Reino, quando a Imagem mostra algo de alma, de tal maneira nos encanta, de tal maneira atrai as multidões – na Venezuela 40 mil pessoas para verem a Imagem, não foi certamente para vê-la em sua materialidade, mas para verem uma expressão de alma numa Imagem – e nós, como ficamos encantados vendo aquela expressão de alma!
Os srs. podem imaginar vendo Nossa Senhora pessoalmente, qual seria nossa impressão? Qual seria nossa sensação? É simplesmente incalculável!
Está bem. Isso levado a que auge, era o que Nosso Senhor tinha quando Ela olhava para Nossa Senhora. Mas Nossa Senhora tinha também quando olhava para Ele. E na troca de olhares apenas, quando se encontravam e quando Ele dizia: “Minha Mãe!” E Ela dizia: “Meu Filho!” O que entrava aí de comércio de almas! A relação mais nobre, mais alta, mais perfeita que houve em toda a História. Foi essencialmente uma relação de alma.
* O egoísmo é o obstáculo que nos impede de conhecer as almas dos outros
Então, um convite para os srs. também: serem dos que gostam de pensar nas almas; procurem conhecer as almas, procurem interessar-se pelas almas. Isso é que os senhores devem ser.
Há um obstáculo para isso?
Estou me deixando arrastar pelo assunto, mas eu já termino.
Há um obstáculo para isso? Existe. É quando a gente está tratando com os outros, e não pensa nas almas deles; pensamos em nós mesmos. Aí a gente fica incapaz de conhecer os outros.
Quando a pessoa está estudando os outros, não para ver como os outros são, mas para ver que efeito está produzindo nos outros; se os outros estão considerando que a pessoa é prestigiosa, que ela é fina, que ela é inteligente, que ela é não sei o quê… a cavalgata das vaidades! E então fala preocupada em saber só qual é essa repercussão, ou dando a essa preocupação um mínimo que seja de importância, a pessoa desce um véu, a pessoa começa a olhar para si e não olha para o outro e não conhece ninguém.
É preciso amar as almas desinteressadamente, é preciso conhecê-las como reflexo de Deus. Acabar com o “eu, eu, eu”, com a ideia fixa de si mesmo. E esse maravilhoso mundo das almas, da qual Santo Ampélio ferreiro foi muito presumivelmente um modelo, e é o ensinamento, é o tema, ou o assunto de meditação do “Santo do Dia” de hoje.
Nota: Consulte também o “Santo do Dia”: O que é a sede de almas – Desinfetando conceitos de qualquer odor de uma “piedade” meramente sentimental e dulçurosa. Exemplificando com Santa Teresinha do Menino Jesus.

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