Legionário, N.º 793, 19 de outubro de 1947
Há poucas semanas, os maometanos alcançaram um triunfo indiscutível na Índia, com o reconhecimento oficial do Estado do Paquistão. As comunidades islamitas daquela região, que viviam sob direção inglesa, coarctadas a todo momento em sua liberdade de movimentos pelo incomodo convívio com os braamistas, se viram finalmente independentes daqueles, e dissociados destes. Uma nova unidade política maometana surgiu no concerto das nações, representando um povo rejuvenescido, pujante, rico e colocado em situação geográfica e política de indiscutível importância.
Enquanto este fato se dá no extremo oriente da Ásia, o mundo maometano se mobiliza inteiro na orla do Mediterrâneo para nova empresa, em favor da qual vibram todos os adeptos do Profeta, desde o Ganges até o Marrocos. É a “guerra santa” – sim, uma verdadeira guerra santa – pela posse dos Lugares Sagrados.
Já temos tratado por vezes do problema da Terra Santa. Voltaremos a ele hoje, porque, se bem que o Ocidente e especialmente o mundo católico pareça dormir, há dois motivos de ordem religiosa, ambos transcendentais, que nos forçam a não perder de vista esta questão. Em primeiro lugar não nos podemos esquecer de que a Terra Santa, na qual se passou toda a História Sagrada, na qual sobretudo nasceu, viveu, ensinou, padeceu e morreu Nosso Senhor Jesus Cristo, é para nós, depois da Eucaristia e da Sé Romana, o que há de mais sagrado no mundo. Tanto isto é verdade, que nossos maiores empenharam os esforços mais extremos e ousados para que a Terra Santa não ficasse em poder dos infiéis. Somos do sangue dos cruzados, e não nos podemos esquecer de que o ideal da libertação do Santo Sepulcro empolgou e levou até o sacrifício do sangue e da vida várias gerações de mártires cristãos. Em segundo lugar, a propósito da posse da Terra Santa, os maometanos estão revelando uma solidariedade, uma energia, um brio que mostra claramente que tudo caminha para a formação de um formidável super-Estado maometano afro-asiático. No próprio momento em que URSS, com suas nações satélites ou escravas, ameaça o Ocidente, o aparecimento de mais este inimigo só pode ser indiferente aos políticos imediatistas, e de vistas curtas. Por tudo isto, a questão maometana, que, se não é ainda inteiramente uma questão de hoje, já é indiscutivelmente uma grave questão de amanhã, nos interessa e nos preocupa. Vejamos, pois, de que forma ela está evoluindo.
Não o faremos, porém, sem afirmar previamente que, na luta entre judeus e maometanos, absolutamente não temos preferências nem simpatias. Somos do tipo de católicos que se recusam obstinadamente a escolher entre [uns e outros]; e que, postos nesta alternativa, só têm uma resposta que dar: viva Cristo-Rei!
* * *
A Terra Santa é Terra Santa para a Santa Igreja, e para todas as seitas e igrejolas na Europa, da Ásia Ocidental e da África Setentrional, a títulos aliás bem diversos. Lá se passaram os fatos relevantes do Antigo Testamento, de onde o interesse dos judeus. Lá se passaram também os fatos do Novo Testamento: motivo a mais para o interesse dos católicos, dos protestantes, dos cismáticos. Lá se passaram, ainda, muitos dos fatos da história religiosa dos maometanos: de onde o interesse do seguidores do “Profeta”. Estes motivos religiosos, que dão tanta importância à Terra Santa, são conhecidos, antigos, e fundamentais. Ele interessa os cristãos, judeus e muçulmanos do mundo inteiro, ou seja a maior parte dos habitantes do globo. Ao lado deles, há uma questão étnica e política muito menor, mas irritante. Os judeus se julgam no direito de voltar à Palestina. Sobretudo agora, devido à possibilidade de novo conflito mundial, eles se precipitam para lá, um pouco de todos os pontos do universo. Ora, o super povoamento judaico da Palestina colocará em inferioridade numérica e política (sem falar da inferioridade econômica, já se vê), os muçulmanos, religiosa e racialmente inimigos dos judeus. De onde uma reação árabe contra este fato. No meio disto, tratados como bagaço, estão os cristãos da Palestina e Síria. Os católicos do resto do mundo pouco se interessam por eles. Eles mesmos parecem ter uma visão muito confusa dos riscos que correm, quer com o predomínio dos árabes, quer com o dos judeus. São quantité négligeable neste jogo confuso e temível.
Diga-se, para completar este quadro, que a imigração judaica na Palestina deu maior atualidade ao problema, mas que ele já é velho. De há muito, os judeus estão afluindo para a Terra Santa, onde já construíram uma cidade monumental e moderníssima, Tel-Aviv. O protesto árabe contra este fato também é velho. O que no problema não é velho é que, até há algum tempo atrás, os árabes da África ou mesmo da Ásia meridional se mostravam totalmente desinteressados do problema. Vivendo sob a ação de um torpor secular, não se preocupavam com o aspecto religioso do caso. Politicamente falando, seus problemas eram inteiramente independentes dos da Palestina. Assim, assistiam indiferentes ao desenrolar dos fatos, limitando-se quando muito a alguma atitude puramente platônica, de solidariedade para com os árabes da Palestina. Politicamente, o problema palestiniano continua igualmente desinteressante para as potências maometanas. Mas todas elas passam por um renascimento nacionalista e religioso verdadeiramente assombroso. O sopro desse renascimento percorre toda a imensa faixa que vai do litoral atlântico do Marrocos até o Paquistão. E, em virtude do renascimento religioso do que poderíamos chamar a “islamidade”, o problema palestino passou a interessar todo o mundo maometano. Por isto, o “caso” judaico-árabe da Terra Santa se transformou no ponto álgido da política norte-africana e asiática. Tivemos uma amostra disto na violência das manifestações anti-brasileiras ocorridas no Egito pelo simples motivo de que nosso representante na ONU votou contra os elementos árabes da Palestina. A luta está concorrendo por sua vez para estimular ainda mais o renascimento pan-árabe e pan-maometano. E, assim, os acontecimentos vão dando aos muçulmanos do mundo inteiro uma consciência cada vez mais nítida, mais vigorosa, de sua unidade, de seu poder, de seus interesses religiosos e políticos comuns.
De há muito, tudo caminha neste sentido. Alguns fatos do noticiário político desta semana, que motivaram mais proximamente este artigo, mostram que o movimento para a formação de um mundo pan-islâmico se está acelerando cada vez mais.
Com efeito, de há muito os estados Árabes constituíram uma Liga que é uma pequena ONU maometana. Ou antes – quanta é nossa dor ao dize-lo – um Sacro Império, não Romano Alemão, mas maometano anticristão. Já não se pode falar mais de uma Cristandade em nossos dias, e aí está diante de nós, pujante e agressiva, a Islamidade. A isto chegamos. Choramos aos pés da Cristandade quase arrasada, como os judeus junto ao muro das lamentações…
Esta Islamidade, funcionando como outrora funcionava a Cristandade, reuniu-se em Beirute, em sessão plenária da Liga Árabe, e decretou uma espécie de cruzada: pela unanimidade dos presentes, foi resolvido que todos os Estados maometanos mobilizassem seus recursos militares em defesa dos árabes da Terra Santa. As tropas do Egito e da Síria já estão aptas a marchar a qualquer momento.
O eco desta mobilização geral já chegou até Tanger, no outro extremo da África. O delegado do Partido Nacionalista Reformista da zona espanhola do Marrocos já declarou que todos os partidos muçulmanos da África do Norte atenderão à ordem de mobilização da Liga Árabe, por meio de um ou alguns corpos expedicionários, que participarão de todas as operações de “libertação”.
Não se tenha a ilusão de que os motivos religiosos são secundários em tudo isto. Um telegrama de Damasco já vem declarando que naquela cidade “se anuncia que a Guerra Santa será proclamada entre os dias 24 e 28 do corrente, durante as comemorações árabes da festa do sacrifício no Iraque. Essa resolução talvez seja tomada durante a reunião de chefes árabes na Síria”. Acrescenta o telegrama que “as capitais dos Estados árabes estão em constante comunicação discutindo-se as últimas medidas e fixando-se a ordem do dia para a próxima reunião dos chefes. Anuncia-se também que os líderes árabes discutem a questão do comando do exército árabe, que talvez seja confiado ao general reformado Tahan Hachimi, do Iraque, que é pessoa de confiança daqueles chefes”. É possível que estes rumores não se realizem inteiramente. Em todo o caso, o simples fato de que eles tenham tomado tal corpo que as agências telegráficas o tenham difundido pelo mundo inteiro, prova bem em que direção se orientam os espíritos, e qual lhes parece a natureza profunda do problema, e o rumo que normalmente ele deverá tomar.
Discursando em Argel na semana passada, o general De Gaulle aludiu de certa forma a todos estes fatos, quando mostrou que a África Setentrional Francesa está imergindo no caos, na agitação, na anarquia, e censurou por isto a debilidade manifesta do atual gabinete. O problema entrou, pois, de cheio, na esfera da grande política.
Mas os católicos continuam a dormir. No Horto das Oliveiras, eles dormiram também…