Catolicismo, N. 393, Setembro de 1983, Ano XXXIII, pág. 1 (www.catolicismo.com.br)
Jumbo sul-coreano: raio que mata, mas esclarece!
A SOCIEDADE norte-americana de Defesa da Tradição, Família e Propriedade — TFP está dando seu contributo entusiasmado ao coro de vozes que se levantaram na América do Norte condenando o bárbaro crime praticado por um avião de caça russo, contra o Jumbo da Korean Air Lines, fato amplamente noticiado pela imprensa internacional.
Assim, sócios e cooperadores daquela entidade percorreram a 5ª. Avenida, a mundialmente conhecida artéria de Nova York, desde a confluência com a Rua 42 até a Rua 50, em frente à Catedral de St. Patrick, e nas imediações do Hotel Plaza, centro de convergência de personalidades do mundo inteiro. Portando seus característicos estandartes e capas rubros, fizeram a distribuição, entre os transeuntes, de 50 mil folhetos contendo um manifesto da TFP norte-americana intitulado: “Jumbo sul-coreano: raio que mata, mas esclarece!” A opinião pública mostrou-se muito receptiva à campanha da entidade, de tal modo que era grande o número de pessoas que tomavam a iniciativa de solicitar os folhetos. “Catolicismo” publica neste número, para conhecimento de nossos leitores, o magnífico documento da TFP norte-americana.
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O CRIME perpetrado há poucos dias por um avião de caça soviético contra o jumbo sul-coreano produziu no povo norte-americano o efeito de um raio noturno: matou infelizmente a vários, mas — precisamente como fazem tais raios — iluminou com uma claridade terrível um panorama então coberto de densas trevas.
Densas trevas, sim, que há anos vêm toldando progressivamente os horizontes de nossa política externa, com óbvios reflexos sobre nossa política interna. E com prejuízo inestimável para toda a Nação.
Convém que a realidade assim posta em evidência com o fulgor irresistível, mas tão transitório, de um raio, não seja esquecida pela nossa opinião pública. Lembrem-se sempre da tragédia do jumbo sul-coreano, é o conselho que a Sociedade norte-americana de Defesa da Tradição, Família e Propriedade —TFP oferece hoje a todos os norte-americanos. O fato tragicamente noticiado pelos meios de comunicação social no dia 2 do corrente contém para nós uma lição esclarecedora, a indicar por muitos anos o rumo de nossas cogitações e de nossas atitudes políticas.
Bem ao certo, o que vimos? O que pouco antes de 1971 — data do anúncio da ida de Nixon à China — começamos a deixar de ver. O que já em 1945 — por ocasião da conferência de Yalta — teríamos lucrado muito em ver mais claro.
Sim, a doutrina comunista, e a história do regime comunista na Rússia, não poderiam deixar em nosso espírito a menor dúvida de que o governo de Moscou, animado em todas as suas ações por um imperialismo ideológico implacável, visa impor o pensamento, o sistema de governo e de economia, a forma de cultura e o sistema de vida comunista ao mundo inteiro. Meta esta fundamentalmente atéia, materialista, aniquiladora de todas as nações independentes, de uma civilização que, por certos aspectos, é a mais alta jamais atingida pelos povos ao longo da História. Meta repudiável não só a este título, mas em razão dos métodos sem cujo concurso ela não poderia ser alcançada: a força bruta, a agressão às nações mais fracas, a espionagem, a promoção contínua da agitação e da subversão em todos os povos e, por fim, essa obra-prima de perfídia e de habilidade que é a guerra psicológica revolucionária.
Em conseqüência da queda do regime czarista, algumas nações, anteriormente integrantes do Império Russo, haviam alcançado sua independência. Mas esta foi de duração curta, em alguns casos até efêmera, pois a bota soviética as esmagou de modo inexorável. Foram elas notadamente a Ucrânia, a Armênia, a Geórgia, a Lituânia e a Estônia. Posteriormente, em Yalta, a Rússia soviética se tornou senhora de seis nações da Europa central: Polônia, Alemanha do Leste, Checoslováquia, Hungria, Romênia e Bulgária. Igualmente o poderio russo exerceu um papel de significativa importância para que o regime comunista se implantasse também na Iugoslávia e na Albânia.
Posteriormente a Yalta, a União Soviética impôs o jugo comunista ao Vietnã do Norte, Coréia do Norte, Cuba, Iêmen do Sul, Congo, Benin, Etiópia, Vietnã do Sul, Cambodge, Laos, Angola, Moçambique, Granada, Nicarágua.
Todos os países até aqui nomeados passaram a ficar sujeitos à União Soviética — sem embargo da aparente independência de alguns deles, que a ninguém ilude — em uma situação ferreamente colonial.
Bem entendido, não se podem qualificar pura e simplesmente de colônias soviéticas a China comunista, a Iugoslávia e a Albânia.
Entretanto, a lista das nações vulneradas pelo imperialismo soviético ainda é muito mais ampla. Ela inclui também Estados que, dotados outrora de estável independência, foram sujeitos a uma situação análoga à dos protetorados clássicos, com as ambigüidades e as mutabilidades tantas vezes inerentes a certos aspectos do regime de protetorado: Iraque, Síria, Líbia, Guiné, Guiné-Bissau, Cabo Verde, São Tomé e Príncipe, Tanzânia, Zâmbia, Seychelles, Guiana, Surinã.
Numa instável zona de penumbra entre a condição de protetorado soviético e a de independência, se encontram ainda outras nações que, se em alguma medida são independentes — e esta medida varia de nação para nação, e por vezes de ano para ano — sobretudo não dispõem de uma independência inteira. E os pontos em que sua independência está coarctada são sempre determinados pela preponderância do interesse russo. São essas nações: Argélia, Zimbawe, Madagascar, Malta, Finlândia (a “finlandizada” Finlândia…).
Talvez em nenhuma nação dessa zona de penumbra, o contraste entre as afirmações de independência e a subsistência de alguns traços de dependência é tão acentuado quanto na Argélia.
Bem entendido, nenhum desses países se reconhece como integrante da “zona de penumbra” a que acabamos de aludir: tal não lhes conviria, nem à União Soviética, sempre empenhada em disfarçar o mais possível sua expansão imperialista. Mas essa zona de penumbra existe. E todo mundo o sabe.
Estão enfrentando presentemente duras guerrilhas para não se deixarem abarcar pela União Soviética em algumas dessas infelizes categorias: El Salvador, Guatemala, Honduras, Colômbia, Peru, Filipinas.
Bem entendido, os ingênuos, os inocentes-úteis farão objeções a um ou outro ponto desta imensa lista. Alegarão por certo que um ou outro dos povos aqui mencionados é independente. Este não é o momento de discutir com ingênuos nem com inocentes-úteis! Para tranqüilizá-los, concedamos que essa independência exista: tão autêntica quanto a liberdade de movimento do rato sobre o qual o gato deitou a pata… E passemos adiante.
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Enquanto esse império — tão acabrunhadoramente vasto que, em face dele, os de César e de Napoleão parecem pequenos — se ia constituindo, a União Soviética conseguiu, com os recursos polimórficos e subtis da guerra psicológica revolucionária, um resultado quiçá ainda mais espantoso. Ou seja, o de ir persuadindo sempre mais os povos do Ocidente, de que se passava na mente dos chefes e dos pensadores dela um aliás bastante enigmático processo de dulcificação mental e moral. Assim conseguiu incutir Moscou, em numerosas correntes da opinião da América e da Europa, a convicção de que, se tratada a União Soviética com desprevenção, e favorecida pelo suprimento de recursos financeiros, econômicos e técnicos de múltiplas ordens, o imperialismo comunista se transformaria em líricos propósitos de paz.
A História jamais compreenderá como tal ilusão pôde ganhar pé no momento mesmo em que a Rússia comunista ia estendendo suas garras em todos os continentes. Mais ainda, no próprio momento em que, no interior das nações sobre as quais soprava essa tépida e fatal ilusão, o proselitismo ideológico, a agitação e, por vezes, até a subversão, iam fazendo progressos sem conta.
Essa ilusão teve seu peso para levar o povo norte-americano a aceitar a presença insolente e agressiva da garra soviética a dois passos de nossas costas, na desditosa Cuba. Ela concorreu sensivelmente para que o Presidente Nixon, visitando a China vermelha em 1972, abrisse a era fatal da détente com o mundo comunista. A “política da mão estendida”, de há muito lançada por Moscou, triunfava assim. A coexistência pacífica se apresentava como a única via razoável. A Ostpolitik de Bonn, como a do Vaticano, se desenvolviam em toda a sua envergadura. O esquerdismo começou a infiltrar-se celeremente em todas as religiões. O que posteriormente veio a ser definido como a “queda das barreiras ideológicas” — mas que data de muitos anos antes dessa definição — não se operou apenas nas relações internacionais, mas abriu as portas das mais respeitáveis instituições do Ocidente, das mais ilustres ou influentes, aos comunistas.
Mediante autorização, dada por Moscou, para que uma delegação de eclesiásticos da igreja grego-cismática, de obediência soviética, estivesse presente ao Concilio Vaticano II, com funções de observação, a ilustre Assembléia se absteve de condenar o comunismo. E sob a influência do Sr. Henry Kissinger, durante as presidências dos Srs. Richard Nixon e Gerald Ford, e, posteriormente, no período presidencial do Sr. Jimmy Carter, tudo isto produziu no âmbito de ação de nosso País, os frutos trágicos bem conhecidos, entre os quais são sobretudo memoráveis as quedas do Vietnã e do Cambodge, e a perda, para nós, do Canal do Panamá.
A miragem da “dulcificação” da psicologia soviética não apenas esteve presente em tudo isso, mas ela tem considerável parte de responsabilidade pelo fato de que os países do Ocidente — e o nosso mais do que todos os outros — se puseram a fornecer, em profusão crescente, à União Soviética, às suas “colônias”, e a seus “protetorados”, bem como aos países da “zona de penumbra”, recursos de toda ordem. De sorte que o Ocidente passou a ser, em boa medida, o financiador do inimigo que dia a dia ia tomando, face a ele, as proporções de um Leviatã. Com o que se vem prolongando o cativeiro das nações cuja libertação tanto desejamos.
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Nada disto, porém, abriu os olhos dos obstinados. E mais recentemente, nem sequer a agressão ao valente e já glorioso Afeganistão serviu para mostrar a inconsistência da apregoada “dulcificação” mental e moral dos déspotas do Cremlin.
Há pouco, os setores previdentes da opinião pública se sobressaltaram com o ato do Presidente Reagan confiando a direção de uma alta comissão encarregada de estudar a nossa política para a América Central ao homem sobre quem pesa a responsabilidade da queda do Vietnã.
Entretanto, em nenhum campo o mito da “dulcificação” do espírito soviético produziu efeito mais aberrante do que no tocante ao desarmamento nuclear unilateral dos Estados Unidos.
O mais elementar patriotismo leva o homem a preferir sua morte à destruição de seu país. Com que adjetivos os grandes patriotas de nosso passado qualificariam o emprego da fórmula “melhor vermelhos do que mortos”, que enuncia, no fundo, o propósito de muitos americanos de entregarem a nação ao imperialismo soviético, contanto que salvem a própria pele?
Mais. E pior. Com que qualificativo os grandes gigantes da Fé, dos quais nos falam o Antigo e o Novo Testamento, ou cujos feitos nos narra a História eclesiástica, haveriam de classificar os norte-americanos que, alegando princípios cristãos, ainda há pouco pleiteavam o desarmamento nuclear unilateral da América do Norte, para salvar — como se fossem valores supremos — as vidas de homens mortais, e sem embargo de entregarem assim à fera do ateísmo comunista os poucos restos preciosos que ainda existem da civilização cristã? O que diriam eles ao saberem que entre os líderes de tais norte-americanos figuram não poucos Bispos da Santa Igreja Católica Apostólica Romana quando nada em sua doutrina e em sua tradição histórica dá fundamento a tal atitude? Sem embargo de já ter alcançado alguns expressivos resultados, a atuação desses norte-americanos declinou de momento, mas está pronta a erguer a cabeça na primeira ocasião. E teria todo propósito que, se tal se der, se lhes erguesse no caminho Matatias exclamando: “Eis que tudo quanto nós tínhamos de santo, de ilustre e de glorioso, está devastado e foi profanado pelos povos. De que nos adianta pois, viver ainda?” (1°. livro dos Macabeus, cap. II, versículos 12 e 13). Ou, então, Judas Macabeu bradando: “É melhor para nós morrer na guerra, do que ver os males de nosso povo e de nossos lugares santos” (1º. 1ivro dos Macabeus, cap. III, versículo 59).
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O crime contra o Jumbo da Korean Air Lines, como um raio mortífero mas esclarecedor, nos faz ver o que há de falacioso no mito da “psicodulcificação” dos soviéticos. Ficou claro que os homens que tenham preferido ficar vermelhos a morrer, cairão nas mãos dos verdugos opressores do Vietnã, dos artífices, no Cambodge, de uma das mais espantosas tragédias de todos os tempos, dos promotores da construção na Sibéria de um gasoduto feito por trabalho escravo. Esses mesmos homens, entretanto, pregam por vezes, no Ocidente, a derrubada dos regimes vigentes, sob pretexto de que estes não são suficientemente liberais!
A esses norte-americanos sirva de lição a tragédia do jumbo sul-coreano!
Tanto mais quanto negamos que o mundo esteja reduzido à opção entre a capitulação ante o comunismo e a tragédia atômica. Esta tragédia, pode-se esperar que Deus omnipotente a poupe aos povos que saibam amá-lO mais do que à vida. Como pode ser que não a poupe aos que amam a vida mais do que a Ele.
[Para aprofundar o tema vide: ”Um homem, uma obra, uma gesta – Homenagem das TFPs a Plinio Corrêa de Oliveira”, seção II, 15]