Catolicismo, Nº 76 – Abril de 1957, págs. 1 e 2
Duas notícias bem diversas, de natureza muito alheia aos temas de piedade, servirão de ponto de partida para nosso artigo de Semana Santa. A primeira diz respeito ao “rock and roll” na Suécia. E outra é sobre uma Pastoral Coletiva do Episcopado Suíço, relativa ao alto teor a que chegou a prosperidade na República helvética.
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A revista francesa “La Vie Catholique Illustrée” publicou em sua edição de 20 de janeiro p.p., a seguinte nota, sujeita ao título de “Mocidade em blusão de couro”:
“A Suécia – paraíso do bem-estar e do conforto – está inquieta. Sua mocidade lhe causa preocupação. Uma mocidade em blusão de couro, posta em delírio pelo ‘Rock and roll’, pronta para o motim, a destruição, e a crueldade gratuitas. De que se queixa esta mocidade? Que lhe falta? Precisamente no plano material nada lhe falta. Mas, por isto mesmo, ela não tem diante de si nenhuma expectativa, nenhuma esperança, nada mais, enfim, por que combater.
“E, principalmente, no plano espiritual isto é o vácuo: não há mais fé, nem esperança. É sobretudo em sua alma que a mocidade sueca está atingida“.
Esta nota faz pensar. Muitos sociólogos procuram explicar a crise religiosa e moral de nossos dias pela miséria, pela insegurança, pelas repercussões psíquicas profundas de toda esta situação caótica, em personalidades depauperadas pelo excesso de trabalho e minadas por sofrimento de toda espécie.
Agora nos vem a notícia desconcertante de que a crise moral da mocidade sueca – que em nada de essencial difere da de outros países neste nosso mundo padronizado, estandardizado, homogeneificado – tem por causa, não a penúria, mas a fartura. Onde, então, estamos?
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O Prof. José de Azeredo Santos comentou em seu rodapé do último número de “Catolicismo”, uma Pastoral do Episcopado Suíço, publicada por ocasião da Festa Federal de Ação de Graças de 16 de setembro p.p., e reproduzida pela excelente revista francesa “Marchons”, dos RR.PP. Cooperadores Paroquiais de Cristo-Rei (outubro de 1956). É sobre este importantíssimo documento que também nós gostaríamos de tecer algumas considerações.
Como o “Dia de Ação de Graças” se destina a exprimir a Deus nosso reconhecimento por todos os benefícios recebidos, é compreensível que ele atraia nossa atenção principalmente para os aspectos favoráveis da situação em que nos encontramos.
O Episcopado Suíço deu mostra de uma seriedade de espírito edificante, não se detendo apenas em agradecer à Providência as muitas mercês com que cumulou aquela nação, mas tratando com rara coragem dos perigos que dessa mesma prosperidade podem advir, e estão advindo, para seus fiéis.
E nada mais lógico. A manifestação autêntica de nosso reconhecimento para com Deus consiste precisamente em fazer um uso reto de seus dons. Agradecer os seus favores, sem cuidar de servir-se destes para a sua maior glória, seria farisaísmo típico e assinalado!
A situação florescente da Suíça é descrita pelos Prelados nestes termos: “Em nosso país, tudo corre de bem a melhor; a prosperidade se desenvolve constantemente graças à alta conjuntura que parece haver se instalado a título permanente entre nós; a ordem reina por toda parte, e não estamos longe de crer que nosso Estado é dos mais sábios e dos mais bem governados do mundo; as festas e as manifestações de regozijo, que se sucedem em ritmo quase ininterrupto, refletem um bem-estar mais ou menos geral, são índice indiscutível de um standard de vida relativamente elevado“. Certamente um quadro que nenhum de nós ousaria afirmar que se aplica também à realidade brasileira!
Deixemos entretanto o Brasil, e continuemos com os olhos postos na Suíça.
Nesta mesma Pastoral, o Venerando Episcopado Helvético afirma: “Há um pensamento que volta muitas vezes nos discursos e escritos do Santo Padre: a situação trágica do mundo moderno! Ainda recentemente, em começos de julho, dirigindo-se a um auditório de 25.000 peregrinos reunidos na Basílica de São Pedro, reafirmou ele com vigor: Advertimos várias vezes ao mundo, que se detenha à beira do abismo. É preciso que este perigo seja particularmente grave para que o Santo Padre fale com tanta força. Não nos é permitido ver neste brado de alarme uma simples figura de retórica”.
Confrontando estas palavras do augusto Vigário de Jesus Cristo com a situação da Suíça, os Prelados perguntam: “No seio da comunidade helvética, o Santo Padre, com suas advertências severas, não seria senão um desmancha-prazeres?“
Eis um problema enunciado de frente, com força e coragem…
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A solução proposta é igualmente lúcida e forte. Os Bispos helvéticos começam por reconhecer que a situação de sua pátria é excepcionalmente próspera, e vêem nisto um dom de Deus, já que a prosperidade material não é, em si mesma, e necessariamente, uma armadilha do demônio. Entretanto, lembram eles que haveria algumas reservas a fazer, especialmente no tocante à concentração das riquezas. Porém, este tema em que tantos se engolfam, se perdem e se põem a delirar, não lhes tolda a visão de “algo de muito mais importante”. E é o seguinte: “o bem-estar nos aproxima de Deus?“
Assim, de uma questão nasce outra, e estamos no âmago do assunto.
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Não podemos, infelizmente, acompanhar a Hierarquia Suíça em todo o magnífico desenvolvimento que dá ao tema. Fixemos, entretanto, alguns dos fatos e princípios que ela lembra:
1) – “Enquanto certa largueza deveria concorrer para que vivêssemos virtuosamente, na realidade o bem-estar de que gozamos nos conduz diretamente ao materialismo. Eis o perigo! Não o reconhecer importaria para nós em adormecer em uma falsa segurança, e assim correr ao abismo”.
2) – “Entre nós ninguém ousaria negar abertamente Deus, e afirmar como realidade única a existência da matéria”. Mas “a crença em um Deus remunerador, juiz dos vivos e dos mortos, continua a ser o alicerce de nossa vida, a mola propulsora de nossa atividade?” O temor de Deus “inspira ainda nossa vida pública e privada?” O Episcopado, com manifesto pesar, o põe em dúvida.
3) – “O pensamento máximo do homem moderno é o de se estabelecer tão confortavelmente quanto possível, em sua morada terrena; ele a desejaria abundantemente provida, não só do necessário, mas também do supérfluo, de tudo quanto faz o encanto e o prazer da vida“.
4) – É de se “condenar vigorosamente esta tendência moderna, nitidamente materialista, que leva o homem a procurar os bens terrenos com exclusão dos bens eternos. Esta tendência está na raiz da desordem profunda de que padece nossa geração sem norte e infeliz”.
5) – O Episcopado, com estas palavras, “pensa especialmente na corrida em pós do dinheiro, que se transformou para muitos no fim supremo da vida, o deus a que tudo se sacrifica e que, por si só, justifica tudo”.
6) – Os Bispos se referem igualmente “à sede de prazeres e deleites, que cega literalmente tantos infelizes“, “a tantas transgressões dos Mandamentos de Deus”, tão numerosas “que se seria por vezes tentado a crer que, a despeito de aparências brilhantes, a vida cristã estará em breve reduzida a mera fachada“.
Infelizmente, repetimos, não podemos reproduzir todo o magnífico documento, e nem sequer a parte esplêndida em que indica os Exercícios Espirituais, e os outros meios para resolver o problema.
Detenhamo-nos no quadro que o Episcopado Suíço pinta. Uma crise moral gerada precisamente de uma prosperidade da qual os homens abusaram, voltando seus olhos para a terra, e ficando, em conseqüência, com um terrível vazio na alma. É bem o caso sueco… e está sendo cada vez mais o caso brasileiro.
Pois este nosso pobre país, cheio de misérias, mazelas e crises, padece espiritualmente do mal dos prósperos! Não somos ricos, mas nosso perigo moral é exatamente o da Suíça e da Suécia. Pusemos – feitas as exceções raras, honrosas, etc. – o dinheiro como nosso deus. Só nos preocupamos com prazeres e deleites. Vivemos como se a terra fosse nossa única morada. E por isto estamos prontos para o “rock and roll” e todas as desordens psíquicas ou morais de que ele é símbolo. Ou, por outra, o “rock and roll” é para nós um pouco atrasado. Por isto, nem sequer encontrou ele no Brasil a explosão de entusiasmo de mil instintos perversos postos em estado de desabafo, que suscitou em outros países. É que de há muito foi ele precedido pelo frevo, pelo candomblé, pela macumba.
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O que tem isto que ver com a Semana Santa? Tudo. Vamos ao fato concreto. O homem contemporâneo se encontra diante do quadro de uma civilização material que o deslumbra. Os arranha-céus, as grandes avenidas asfaltadas, os anúncios luminosos cintilantes, as vitrinas, os grandes cinemas, as salas de baile, as boites, os automóveis, os aviões, tudo o fascina, o atrai, e lota inteiramente suas apetências.
É certo que, dentro de todo este esplendor, há misérias sem conta, fervem desesperos, espumam revoltas. Mas tudo isto fica na linha da chamada marginalidade. São situações excepcionais, numerosas é certo, mas que de nenhum modo representam a atitude mental da maioria. Mal nutridos, mal dormidos, mal agasalhados, imperfeitamente medicados, os habitantes das grandes cidades insistem em ficar nelas, para viver no esplendor quotidiano de sua existência brilhante. A prova disto é o desgosto com que aceitam qualquer transferência para o interior, onde entretanto o ritmo de vida é tão mais tranqüilo e saudável. De outro lado, os do interior em geral deploram sua situação, e invejam os das megalópolis. E os moradores do campo migram em quantidade para a cidade.
Em uma palavra, o esplendor material de nossa civilização desperta no homem moderno um tal desejo de gozar a vida, que qualquer esforço para o desapegar desta atitude parece vão.
Ora, trata-se precisamente de o desapegar. E isto, não só porque esse tipo de felicidade terrena para a grande maioria dos povos é inatingível, mas porque, se realizado, gera bárbaros. A dor é necessária no panorama mental do homem, e isto sob todos os aspectos. Dor moral, dor física, insegurança, pobreza, morte, tudo enfim que faça o homem gemer ou chorar. Não é que achemos que a vida é só dor. Mas sem ela a vida não é vida. É vulgaridade, é egoísmo, é baixeza de alma, é infâmia.
Não se trata, pois, na organização de uma sociedade, exclusivamente de criar condições de existência benignas e suportáveis. Trata-se, principalmente, de fazer ver aos homens que apesar de tudo a dor existirá. Que ela tem em nossa vida um papel central. E que nossa vida não vale pelo muito que tenhamos gozado, mas pelo muito que tenhamos sofrido. Pelo alto teor moral inerente ao modo pelo qual tenhamos sofrido.
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SEM A GRAÇA TORNA-SE INCOMPREENSÍVEL A UTILIDADE DO SOFRIMENTO
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Tudo isto posto, se de uma parte temos a persuasão de ter dito coisas de maior importância, de outro lado não podemos fugir à sensação de que tudo é palavreado oco, uma coleção de lugares comuns mais do que sabidos, mas que não arrastam, não convencem, não servem para coisa alguma.
E é bem exato. Nunca a humanidade, por si mesma, abraçará estas verdades. E a de nossa época menos do que outra qualquer.
Como sem esta verdade a nossa geração se perde, e se perde mesmo no plano temporal, não se vê para ela remédio nem salvação. O círculo de ferro está fechado. A civilização gera o desejo do gozo, e este, satisfazendo-se, produz a barbárie. Logo, ou o homem fica na barbárie, ou sai dela. Se sai, é para civilizar-se. E se se civiliza, volta à barbárie. E que barbárie! A do “rock and roll” e da bomba de hidrogênio!
Como fugir disto?
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Senhor Jesus, todas estas considerações me levam aos pés de vossa Cruz. Homem das dores, em vossa Alma e em vosso Corpo sofrestes tudo quanto é dado a um homem sofrer.
Contemplo vosso cadáver descido do patíbulo, vossa humanidade como que aniquilada, e vosso Sangue infinitamente precioso derramado ao longo da Paixão.
Enquanto o mundo for mundo, representareis a dor no horizonte de nossas almas. A dor, com tudo quanto ela tem de nobre, de forte, de grave, de doce e de sublime. A dor elevada do simples âmbito das considerações filosóficas para o firmamento infinito da Fé. A dor compreendida em sua significação teológica, como expiação necessária, e como meio indispensável de santificação.
Pelo mérito infinito de vosso preciosíssimo Sangue, dai à nossa inteligência a clareza necessária para compreender o papel da dor, e à nossa vontade a força necessária para amá-la com todas as veras.
É só pela compreensão do papel da dor e do mistério da Cruz que a humanidade pode salvar-se da crise tremenda em que está afundando, e das penas eternas que aguardam os que até o último momento permaneceram fechados ao vosso convite para trilharmos convosco a via dolorosa.
Maria Santíssima, Mãe das Dores, multiplicai sobre a terra as almas que amam a Cruz.
É a graça de valor incalculável, que Vos pedimos, no crepúsculo de nossa civilização, nesta Semana Santa.