O exemplo dos russos brancos – Legionário, 22 de janeiro de 1939
Legionário, 22 de janeiro de 1939, N° 332
As críticas polidas, se bem que desassombradas, que o “Legionário” tem feito ao fascismo provocaram uma certa reação, manifestada através de algumas reclamações que recebemos.
A esse propósito, julgamos conveniente lembrar o belo exemplo de outra colônia estrangeira aqui residente: a dos russos brancos.
Em torno deste tema desenvolveremos, sem intuitos polêmicos, algumas reflexões, ditadas igualmente por nosso grande amor à Igreja e pela sincera simpatia que dedicamos à Itália.
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Chamamos correntemente russos brancos os russos anticomunistas que aqui vieram ter, depois da formidável tragédia que derrubou o trono dos Romanov, e reduziu a escombros a civilização russa cristã, apoiada sobre o frágil alicerce de uma igreja cismática.
Ninguém ignora que, quando se proclamou a república na Rússia, o movimento esquerdista tomou um imenso desenvolvimento, e que os elementos sadios, agrupando-se em torno de alguns núcleos de resistência, procuraram debalde, com as armas na mão, preservar sua terra do domínio vermelho. Como se sabe, postas em debandada as forças reacionárias, as pessoas vitimadas pelos comunistas foram sem conta. E as que conseguiram escapar espalharam-se pela Europa, chegaram até os Estados Unidos e finalmente vieram ter ao Brasil. Esses gloriosos fugitivos, muitos dos quais traziam ainda as cicatrizes recebidas no campo da luta, estavam reduzidos à mais negra miséria, e foram obrigados por isto a se sujeitar aos mais humildes afazeres. Príncipes transformados em engraxates, duques copeiros, milionários lixeiros, artistas ou intelectuais faxineiros, tudo isto se viu então, pelas grandes cidades onde os emigrados russos arrastavam suas feridas de guerra, sua miséria e seu imenso infortúnio.
É conhecida a linha de suprema distinção com que estes elementos souberam enfrentar a catástrofe que sobre eles desabara. A todo o momento, a propaganda comunista rondava em torno deles, a fim de ver se se aproveitava de sua miséria para, subornando-os fartamente, transformá-los em agentes comunistas. Que glória, para os soviets, exibir perante as massas ingênuas e embasbacadas, nos “meetings” de propaganda, algum antigo aristocrata, algum ex-general ou ex-professor universitário da Rússia imperial, pregando hoje, denodadamente, a revolução social!
Com as mãos cheias daqueles dinheiros que tanto seduziram a Judas, os propagandistas soviéticos bateram a inúmeras portas de mansardas onde russos brancos devoravam alguma bolorenta crosta de pão, obtida por um trabalho insano ou até pela esmola, em algum bairro popular de Londres, Paris ou Nova York. Era um meio fácil de escapar à miséria. Quanta mãe não via neste dinheiro um meio de salvar a vida de alguma filha doente! Quanto pai angustiado não teria com esses rublos os recursos necessários para arrancar a família à indigência! Entretanto, foi notavelmente pequeno o número de pessoas que se deixaram peitar. Nas suas linhas gerais, os elementos anticomunistas resistiram com uma admirável energia.
Tanta miséria, subseqüente a um passado freqüentemente tão glorioso e tão opulento, e ilustrada não raras vezes por terríveis cicatrizes, constitui um inegável atestado de patriotismo e de grandeza de alma. Quem fala, munido de tais credenciais, tem certamente o direito de falar…
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Poderiam esses, empolgados por seu ardente e heróico patriotismo, sentir o desejo de ocultar os horrores que haviam presenciado em sua pátria, a fim de diminuir aos olhos do mundo o imenso manto de opróbrio e de vergonha que o comunismo estendeu sobre a Rússia. (…)
Entretanto, os russos brancos não se deixaram iludir pelas solicitações de um falso patriotismo. Em primeiro lugar, consideraram que o amor à humanidade em geral se deveria sobrepor, neste caso, ao próprio amor da pátria.
Em segundo lugar, refletiram com muito acerto que um povo não pode ser julgado exclusivamente pelos erros de seus filhos culpados, mas também pela elevação de procedimento de seus filhos dignos. Se existia a nódoa do comunismo na Rússia, bastaria a epopéia desse exílio digno e cruciante que sofriam os russos brancos, para lavá-la largamente. E, por estas e por outras razões, os russos brancos se transformaram, por toda a parte, nos mais ardentes inimigos do comunismo.
Assim, em todos os lugares, narravam eles minuciosamente os horrores sofridos, as bestialidades assistidas, os saques, os incêndios e os morticínios perpetrados. Se aparecia algum livro contando o que de ruim se passava na Rússia, eram os russos brancos os primeiros a adquiri-los, a despeito de sua pobreza e, depois, eram seus melhores propagandistas.
E assim, se pela dignidade de seu infortúnio se recomendaram à simpatia do mundo inteiro, pelo valor de seu trabalho se impuseram à admiração e ao reconhecimento de todos os povos da terra.
Haveria melhor modo de ilustrar a Rússia branca, a Rússia verdadeira, a Rússia autêntica, do que mostrar o quanto esta Rússia reprovava a Rússia falsificada, desvairada, enlouquecida pela propaganda comunista?
Foi assim que aqueles heróis de mil combates materiais e morais lavaram a nódoa que ensangüentou seu desditoso, conquanto belo e grande país.
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Volto agora meus olhos para a Itália. Nenhum italiano católico, tendo lido a alocução pontificial de Natal, pode, sem indisciplina criminosa, deixar de reconhecer que o governo fascista anda gravemente transviado, e se tem tornado réu de censuráveis ações contra o Papado.
Qual a verdadeira conduta do bom italiano nesta emergência? Dizer que aqueles que ultrajam a dignidade sagrada do Papa e seus cabelos brancos de venerável ancião encarnam a verdadeira Itália, e portanto são intangíveis? Mas não é isto reconhecer que a Itália se identifica com tais erros? Não é isto, pois, assacar uma grave e injusta ofensa contra a Itália, aquela Itália tão gloriosa que seu patrimônio moral deve ser amado por todos os católicos?
Por que, em lugar disto, não adotar a tática dos russos brancos? Por que não proclamar, alto e bom som, que, em nome da Itália autêntica, que é católica, os verdadeiros italianos condenam tais erros? Por que não dizer que o governo fascista errou, mas que, nestes erros, se divorcia do povo? Não é este o verdadeiro modo de defender a reputação italiana na Cristandade inteira?
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Poder-se-ia talvez objetar que os erros do comunismo são imensamente mais graves que os do fascismo, e que portanto meu argumento não colhe.
Pelo contrário, está aí uma poderosa confirmação para minha tese. Se os russos agiram bem quando denunciaram até os maiores opróbrios de sua terra, por que não hão de os italianos cumprir o mesmo dever, quando ele se lhes apresenta muito menos penoso, pois que consiste em denunciar erros muito menos funestos?
Outro argumento que se apresenta é que o “Legionário” deveria atacar o fascismo e não Mussolini.
Não sei porque. Ou Mussolini é o homem que encarna o fascismo, o autor de todas as grandes realizações deste, o diretor supremo de tudo que se faz na Itália em matéria política e administrativa, ou não. No primeiro caso, a responsabilidade lhe toca plenamente, e portanto deve ele ter parte em nossa censura. No segundo caso, não é ele o grande homem que todos imaginam, mas um indivíduo que, colocado à teste do governo, deixa que outros magoem atrozmente o Papa, enquanto ele cruza os braços. É uma figura de proa.
“O Duce tem sempre razão”, diz o famoso decálogo fascista. Se assim é, e se o Duce não evita os ataques ao Papa, de duas, uma: ou ele não quer, ou ele não pode. Se não quer, merece censura. Se não pode, os nossos ardentes reclamantes não têm razão para se entusiasmar tanto com ele. Cumpre aliás acrescentar que nossas críticas ao Duce, se afetaram a sua obra política, nunca se dirigiram à sua vida privada, para o quê não nos teria faltado pretexto, com o escandaloso episódio da jornalista Marta Fontagnes, com ou sem fundamento explorado pela imprensa do mundo inteiro.
Nunca saímos, pois, do terreno em que nos competia ficar.
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Seria louvável que nossos reclamantes se espelhassem na atitude modelarmente discreta da grande maioria da benemérita colônia italiana no Brasil, e que seguissem o exemplo dos muitos e muitos italianos aqui residentes, que, com simpatia geral, seguem a orientação do Papa. É este o verdadeiro caminho a seguir.
O “Legionário” estará sempre ao lado do Papa. Por isto mesmo, nunca estará contra a Itália. Porque a causa da Itália autêntica, da Itália de Dante, de São Francisco de Assis e de São Tomás nunca poderá ser dissociada da causa do Papado.