O Grande Hotel Castro – Folha de S. Paulo, 15 de janeiro de 1969

Plinio Corrêa de Oliveira

Sonhei. Sonhei que meu secretário me entregava, trazida pelo correio, uma carta de propaganda comercial cujo envelope levava o timbre, aliás muito pouco imaginativo, de Grande Hotel Castro.

Tratava-se, como é bem de ver, de missiva enumerando, para o deleite de eventuais turistas, os altos predicados do tal hotel. À medida que eu percorria o texto, os lugares e as cenas descritas tomavam cor, forma e vida diante de meus olhos encantados. Em uma ilha toda rodeada por um mar alto e azul, se erguia, bem no cume de um morro, uma mansão espaçosa, dotada daquela particular nota de estabilidade e gosto que faz pressentir, já de fora, o conforto, o asseio e a opulência que por dentro reinam. As encostas do morro desciam para a praia, recobertas de bosques e jardins. Os salões, de uma correção perfeita – com móveis macios e grandes que convidavam ao repouso – eram rasgados por janelões dos quais se viam diretamente os veleiros tocados pelo vento: sensação de alto mar aliada ao frescor e aos aromas da cordilheira. Uma criadagem abundante, discreta, solícita, servia hóspedes simpáticos e educados. Na sala de jantar, moderadamente cheia, flutuava o bom odor indefinido mas aliciante, provindo da coexistência não só pacífica como positivamente harmônica de toda a sorte de iguarias. Na portaria, um funcionário graduado e solícito conduzia os hóspedes que quisessem, para um subsolo com caixas fortes individuais reconfortantes, para a guarda de jóias e dinheiro. Boutiques, uma livraria, salão de barbeiro, penteador, duchas, até uma discreta pequena farmácia para os hóspedes a quem o excesso de quitutes pudesse perturbar: nada faltava, tudo demonstrava gosto, categoria, alto senso do que sejam férias.

Vinham logo depois, na circular, os preços das passagens, dos apartamentos, das suites etc. Que preços, e que descontos!

No fim, como de estilo, o dono do Grande Hotel Castro afirmava a persuasão de que ter-me-ia, e aos meus amigos, ainda para estas férias. E acrescentava toda a espécie de fórmulas-chapa para me persuadir de sua estima, sua simpatia, sua admiração etc., etc.

* * *

Sonhar é fácil. Com o papel na mão, me pus a imaginar que meus amigos e eu singrávamos para o hotel maravilhoso da ilha encantada. Em breve, o azul do mar se adornava com mais de uma centena de veleiros vindos de toda a parte onde existem sócios, amigos ou militantes das várias TFPs da América Latina. Vindos de Manaus e de Belém do Pará através do caudaloso Amazonas, saídos da Argentina pelo majestoso rio da Prata, provenientes do Chile pelo épico estreito de Magalhães, baixados de São Paulo pela Anchieta até o Oceano, saídos de Campos pelo Paraíba, vindos das Minas Gerais pelo litoral encantado do Espírito Santo, oriundos de Curitiba e de Florianópolis e Blumenau, da linda Bahia, dos rijos e poéticos arrecifes pernambucanos, de Niterói e da Guanabara incomparável, do Montevidéu risonho, da prestigiosa Porto Alegre e da próspera Caracas, de Medellin e de Bogotá, de Lima e de São Luís do Maranhão, do mar límpido e bravio de Fortaleza, da Brasília extravagante e da Goiânia movimentada, de dezenas de outros lugares enfim, lá vínhamos todos em nossos barcos, com imensas velas rubras marcadas pelo áureo leão rompante. Eu sorria comprazido e entusiasmado. Apenas, uma pontinha de mal-estar me incomodava, proveniente da conjunção de algumas impressões cujo nexo fugidio me escapava: não sei como eu sabia que os de Caracas eram os que de mais perto vinham… uma ilha… Castro… algo não estava certo!

Ainda com o papel na mão, desviei os olhos da rutilante armada da TFP para acabar de ler a circular. Com efeito, abaixo da assinatura do diretor-proprietário, um tal sr. F. Castro, vinha o seguinte:

“P.S. – Os serviços de vigilância do Grande Hotel Castro são exímios. O fato noticiado pela imprensa, na semana passada, de que alguns srs. hóspedes conseguiram fugir apesar da ação de nossos cães de caça e de nossos guardas-atiradores, foi absolutamente excepcional”.

Sobressaltado pela inopinada comunicação, acordei. Em minha mão estava realmente uma folha de papel: uma página de jornal com anúncios de turismo e a notícia de que a polícia de Fidel Castro perseguira com cães de caça e disparos de armas de fogo um grupo de quase 200 infelizes – entre eles mulheres e crianças – que fugiam do “paraíso” comunista para penetrar na base norte-americana de Guantanamo, meu permanente enlevo com o imenso florescer das TFPs, tudo se misturara em meu espírito e dera no sonho que acabo de narrar.

Lembro-me de que, quando eu “li” o post-scriptum, raciocinei: toda esta propaganda não é senão balela, pois como pode o Grande Hotel Castro ser tão delicioso e ter ao mesmo tempo hóspedes que dele queiram fugir com risco de vida? Cárcere Castro, campo de concentração Castro, inferno Castro, isto sim… E para lá não vou.

* * *

Acordado, tudo se desfez para mim. Mas o raciocínio ficou. Como acreditar nos benefícios paradisíacos de um regime que se arma como um campo de concentração, para obrigar a permanecer sob suas garras uma população espavorida?

Raciocínio gerado no sonho, mas simples, límpido, irrecusável como tudo quanto se baseia no bom senso elementar. Desta seção o envio para uso do Pe. Comblin em Recife, e dos admiradores de batina, de mini-saia, de beca ou de custosas camisas-esporte que ele tem pelo Brasil. Em suma, envio-o para esse punhado de homens de sacristia, de universidades e de boate que brandem a bandeira da revolução social abusando o nome das multidões rurais e urbanas. Sim. De nossas boas multidões pacíficas, honestas e operosas… as quais teimam em não se deixar “conscientizar” pelos tais “comblinistas”.

P.S. – Não é só o F. Castro de meu sonho que tem um P.S. a fazer. Também eu. Bem sei que nada é mais anacrônico que um “comblinista” de batina. Ninguém antipatiza mais com a batina – tão santa, venerável e simpática – do que o comblinista-tipo. Bem sei. Como milhões de brasileiros, estou até farto de saber.

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