O que Santo Ambrósio deveria fazer hoje? – Discurso do Bem-aventurado Cardeal Alfredo Ildefonso Schuster (7-12-1950)

blank

Santo Ambrósio, representado com o chicote com o qual castigava a heresia (Carlo di Braccesco – 1495)

 

Da obra contendo alguns sermões e escritos do Cardeal de Milão Alfredo Ildefonso Schuster, “Al dilettissimo popolo” (Ao amado povo), Ed. San Paolo, Milão, 1996, pp. 340-350)

 

O QUE SANTO AMBRÓSIO DEVERIA FAZER HOJE?

Discurso proferido na basílica de Santo Ambrósio (Milão), 7 de dezembro de 1950

 

[Introdução do próprio livro em italiano]

É a vigésima segunda vez que Schuster prega na antiga basílica por ocasião da festa do padroeiro da diocese de Milão; em vez de apresentar a figura de Ambrósio como de costume no contexto dos acontecimentos do século IV, ele procura atualizá-la.

A história só pode se tornar uma mestra permanente da vida se “o olhar para o passado orientar sabiamente o futuro”. O cardeal observa que acabou o tempo em que os Estados “auxiliavam a obra reformadora da Igreja”, enquanto atualmente a maioria das nações é laica e, em alguns casos, até mesmo perseguidora. Não se trata, portanto, apenas dos governos, mas também das populações: “grandes massas vivem agora à margem da vida cristã”. Pode-se até dizer que se abriu um abismo entre a Igreja e a sociedade atual.

Diante dessa distância, ele adverte que não basta o ativismo com o qual se tenta perseguir o povo com os mesmos meios usados por outras ideologias, mas é preciso basear-se diretamente em Cristo. Neste ponto, ele oferece três indicações para devolver esse sentido profundo à ação pastoral: “para mim, o mundo deve ser aproximado de Cristo com a santidade sacerdotal, com a Ação Católica [nota do nosso site: como se verá mais adiante, o bem-aventurado cardeal usa “Ação Católica” em um sentido lato], e talvez também com o sacrifício da perseguição”.

 

blank

Santo Ambrósio expulsa os arianos (Giovanni Ambrogio Figino, 1590)

Há vinte anos que, na boa e na má sorte, em paz e em guerra, costumamos repetir neste dia o panegírico de Santo Ambrósio.

Este ano mudamos um pouco o tema; e em vez de dizer o quanto o Santo fez em seu tempo pela Igreja, estudemos antes para determinar o quanto ele deveria fazer hoje, se vivesse em nossos tempos.

(…) A história é a mestra da vida, desde que o olhar para o passado nos oriente sabiamente para o futuro. Sem isso, a simples notícia dos tempos que foram assemelha-se a uma horrível estatística de mortes, redigida para uso dos moribundos.

Há um perigo ao qual os eclesiásticos, especialmente as famílias religiosas, não escapam facilmente. É o culto estático das glórias dos antepassados, sem que os sucessores se deem conta de que os tempos e os homens caminham, e quem fica parado no caminho acaba se isolando da caravana.

Igreja e Estado em outros tempos

(…) A Igreja do Renascimento, como herdeira das riquezas espirituais e políticas da Idade Média, se deparava com uma sociedade essencialmente cristã, mesmo que grandes e pequenos nem sempre demonstrassem muita coerência entre a doutrina da fé e a prática da vida.

* * *

Também os Estados do século XVI colaboravam na obra reformadora da Igreja; e era necessário, aliás, contê-los para que não fossem longe demais e não se substituíssem às funções da sagrada Hierarquia.

Ai daqueles que não santificassem os dias de festa, não celebrassem a Páscoa, atentassem contra os bons costumes! O Podestà ou o Governador providenciavam imediatamente, distribuindo generosamente aos pecadores editais e até mesmo forcas e fogueiras.

Com governos assim, sem imprensa corruptora ou espetáculos escandalosos, sem facilidade de comunicação, sem maçonaria, (…) ou quintas colunas, era relativamente fácil para um pastor de almas da estatura de um São Carlos Borromeu manter a fé em seu rebanho.

O mundo secular

Hoje, porém, a situação da Igreja na sociedade não só mudou, mas, eu diria, se inverteu.

O Estado, na maioria das nações, se proclamou laico, ou seja, areligioso, ou até mesmo, pelo contrário, perseguidor. Entre as populações, existem, de fato, grupos imponentes que mantém muito bem sua fé católica ante outros que são católicos apenas por tradição e hábito.

Atualmente, no entanto, em diferentes nações, as grandes massas vivem fora dos limites da vida cristã e da zona de influência da Igreja, absolutamente ignorantes de qualquer instrução catequética. Para muitos, o ideal de vida está se tornando predominantemente hedonista. O século das máquinas também engoliu o homem em suas engrenagens, desconhecendo antes de tudo o seu espírito, para ver apenas a carne e a matéria.

Quando continuamos a pregar a essas pessoas sobre o Papa, sobre o Sagrado Coração e sua grande promessa, sobre Nossa Senhora do Carmo ou sobre os estigmas de São Francisco etc., desperdiçamos a maior parte de nossas palavras.

As pessoas não nos entendem mais, porque falamos uma linguagem de outros tempos e expressamos conceitos até mesmo inatingíveis.

Entre a Igreja, guardiã vigilante de suas tradições divinas, e a sociedade atual, abriu-se um vasto abismo. Enquanto a Cidade de Deus permaneceu fechada em suas muralhas inexpugnáveis, os povos seguiram seu caminho; tanto que hoje o pensamento e o espírito evangélico estão ausentes de todas as formas da vida moderna, da ciência, da arte, da política, das leis.

O mundo pensa da Igreja o que os comunistas daqui dizem do Vaticano: é um Estado estrangeiro, que não nos diz respeito.

Por um lado, é preciso compadecer esses homens, como fazia também São Paulo, quando observava que Satanás, príncipe deste mundo, cegou seus adeptos, de modo que aos seus olhos não brilha mais o esplendor do Evangelho de Cristo. Fazer teorias sobre a gama de cores do arco-íris diante de cegos é uma perda de tempo, quando não parece quase uma zombaria da sua infelicidade.

Sair ou voltar?

O que fazer, então? Sair ou voltar? Nas primícias da Idade Média, apesar de todos os esforços dos Padres da Igreja para galvanizar o mundo romano que se dissolvia por causa da senilidade, prevaleceu entre os mais ardentes a tendência à fuga. E eis o êxodo dos Antonios, dos Pacômios e dos Beneditos para os eremitérios e mosteiros, onde reconstruíram em miniatura a polis cristã, em substituição à outra que estava sendo devastada pela fúria guerreira dos invasores bárbaros.

Hoje, esse abandono do mundo secular por parte da Igreja não é mais aconselhável; aliás, nem mesmo é possível. É preciso, portanto, ir até às massas para recristianizá-las. Mas como? Eis a difícil questão.

Não poucos jovens com o coração inflamado de zelo acreditaram que deviam competir com o demônio na mesma pista. E eis-los nas paróquias para atribuir a primazia das atividades assistenciais e recreativas, para erguer Colônias Alpinas, Cooperativas, para abrir cinemas, ampliar campos esportivos, etc.

As intenções certamente são boas, mas o resultado até agora tem sido escasso; o que não é de se admirar, pois o fruto da vida cristã amadurece somente na árvore sobrenatural de Cristo.

Muito diferente era a técnica da – por assim dizer – Ação Católica nos primeiros séculos da Igreja, quando aos recrutas da Fé se oferecia o espetáculo de seus irmãos expostos por Cristo às feras no Circo, e as competições no estádio eram aquelas que, por exemplo, S. Ágata suportou quando foi até mesmo mutilada. No entanto, justamente naquela época Tertuliano escrevia: “Semen est sanguis Christianorum”, o sangue dos mártires é semente de novos cristãos.

Volto à minha primeira pergunta: o que fazer hoje, que o mundo, seguindo o exemplo do filho pródigo, se foi para a “Regionem longinquam” e se tornou em grande parte pagão? O problema é sem dúvida muito grave e talvez devesse ser aprofundado numa assembleia plenária do Episcopado católico.

Atrevo-me a fazer três observações: para mim, o mundo deve ser reconduzido a Cristo com a santidade sacerdotal, com a Ação Católica e talvez também com o sacrifício na perseguição.

blank

Santo Ambrósio proíbe o imperador Teodósio de entrar na Catedral de Milão (Antonio van Dycj – 1619)

Atrair as almas para Deus por meio de Cristo é obra exclusiva da graça do Espírito Santo, conforme o Evangelho:

«Nemo venit ad me nisi Pater qui misit me traxerit eum», Ninguém vem a mim, a menos que o atraia o Pai que me enviou. O Divino Salvador sempre insistiu neste caráter sobrenatural da vocação cristã, atribuindo constantemente ao Pai o dom das almas que Ele lhe concedia, para que lhes desse a vida eterna. «Omne quod dat mihi Pater ad me veniet» . Vem a mim todo aquele que me foi dado pelo Pai. Mas o Pai, ao fazer tais dons, o que exige do filho? Ouvimos a mesma voz paterna no segundo Salmo, quando diz: «Postula a me et dabo tibi gentes haereditatem tuam». Pede-me, e eu te darei todas as nações como herança.

O divino Pai não diz: ordene aos seus discípulos que ampliem os campos esportivos, que formem times de futebol ou coisas semelhantes, mas simplesmente declara: ore, e essa ordem passa evidentemente para a Igreja, e eu te darei os povos em herança.

Levantar as massas

Como segunda condição do apostolado, enunciei a Ação Católica. Fui levado a isso pela parábola do Evangelho, onde se descreve a boa dona de casa que amassa seu fermento em três medidas de farinha. À noite ela vai dormir, mas pela manhã descobre que toda a massa já está bem levedada.

A obra da Hierarquia eclesiástica se desenvolve necessariamente acima e fora do laicato. São Gregório Magno escreveu com perspicácia que a vida do sacerdote está tão distante da dos simples fiéis quanto o pastor de ovelhas na campina romana se diferencia do rebanho.

O Evangelho, pelo contrário, fala-nos de um fermento que deve ser amassado com a farinha pela boa dona de casa; e isso só pode ser feito pela Ação Católica, que implica precisamente a colaboração dos leigos no apostolado hierárquico. Mas cuidado para não inverter os termos! Estou alertado, porque esse perigo na Itália seria muito grave.

Os padres façam o papel de padres

É preciso permear com o espírito de Cristo as famílias, as escolas, os municípios, os parlamentos, os escritórios, as grandes fábricas e os bancos.

Nós, padres, não podemos, porém, penetrar em todos esses ambientes. A um senhor que há alguns anos me perguntou por que nós também não vestíamos macacão e íamos trabalhar, respondi simplesmente: estou aqui na Igreja para não deixar sua avó morrer sem os sacramentos; para dar à sua mãe a consolação de assistir à Santa Missa e ao sermão, para acolher a qualquer hora os pobres e socorrê-los da melhor maneira possível; estou aqui para receber agora também você e para esclarecer suas objeções. “O Sr. está certo”, ele me disse, e se despediu com respeito.

Admitindo, portanto, que o clero deve permanecer em seu posto de trabalho, no templo sagrado, sem se disfarçar para simular outra atividade, quem levará, como dizia São Paulo, o suave perfume de Cristo pelas múltiplas vias da polis terrena, nas universidades, por exemplo, nas gigantescas fábricas, nos inúmeros gânglios do organismo social atual? Eis o vasto campo da Ação Católica, que Deus suscitou na Igreja na hora undécima, quando precisamente a ação da Hierarquia se tornou insuficiente.

É sempre a Igreja a boa dona de casa evangélica, aquela que amassa o fermento; o qual, então, exerce sua ação nas três medidas de farinha de maneira quase imperceptível, até que a massa esteja toda levedada e bem fermentada.

O Reino de Deus está entre vós

A parábola não poderia descrever melhor as diferentes fases da evangelização do Orbe. O fermento é o espírito do Santo Evangelho; a dona de casa é a Igreja, que amassa, ou melhor, «abscondit in farinae stadiis tribus» [Esconde na farinha três medidas (de fermento)].

Os resultados da propaganda cristã na sociedade geralmente não são espetaculares, nem taumatúrgicos. A transformação dos espíritos ocorre de forma imponderável: abscondit mulier.

Não nos deixemos, portanto, levar pela ansiedade das reuniões oceânicas e das revistas espetaculares. Nem mesmo o corpo humano cresce à vista; quanto mais o Corpo Místico de Cristo!

O Reino de Deus está no meio de vós, semelhante àquela aura de que o Salvador falava com Nicodemos, aura indescritível, porque vós não sabem de onde vem e para onde vai.

O grão caído no sulco

Chega finalmente à terceira condição para o desenvolvimento orgânico do Corpo Místico do Salvador para que a grande massa se aproxime dele, Paulo diria melhor: “para que seja enxertada nele”.

Digo isso com o coração apertado de angústia, mas devo dizê-lo com o Evangelho. Se o grão de trigo que é semeado no sulco não morrer primeiro, amolecer e se abrir no “humus”, permanece estéril e solitário. Se, ao contrário, morrer, torna-se fecundo e dá frutos abundantes.

Quanto custa a Roma cristã?

Quando reflito naqueles milhares de mártires que, na antiguidade, santificaram o nosso solo de Roma, encharcando-o com o seu sangue, então compreendo os sucessivos triunfos do Papa Silvestre sob Constantino.

O mesmo está acontecendo agora; e quando vejo o angelical Pio XII atravessando a praça de São Pedro em sua sedia gestatória, fervilhando de multidões que o aclamam, penso nos outros dois Pios, VI e VII, que por essas mesmas ruas foram arrastados para fora de Roma e levados para a prisão na França.

Hoje, as associações da Ação Católica, ao dirigirem-se ao Vaticano através da Ponte Sant’Angelo, aclamam o Romano Pontífice. Mas quanto custaram à Igreja essas aclamações! Eu ainda era criança quando, na noite de 12 de julho de 1881, minha mãe me levou para ver o corpo de Pio IX passar pela Ponte Sant’Angelo, onde a Juventude Católica mal conseguiu impedir que o cadáver fosse jogado no rio Tibre! “A carcaça do Papa no rio”.

Não são episódios do século X, na época do Papa Formoso, mas episódios de ontem, que podem se repetir amanhã.

Para o Oriente cristão

Quando, num futuro que esperamos não muito distante, os Estados Orientais firmarem um bom acordo com a Sé Apostólica, então, ó fiéis amados, lembrem-se daquele cardeal, daqueles arcebispos, padres, religiosas e fiéis que agora, com a prisão, com os trabalhos forçados, com o exílio na Sibéria, com as crucificações, estão merecendo os futuros triunfos da religião. A esse preço, e não menos, Cristo e a Igreja costumam resgatar as almas.

O que devemos fazer?

Chegamos agora às conclusões.

Perguntei: o que São Ambrósio deveria fazer agora?

Creio ter demonstrado que, hoje, o pior erro que a sagrada Hierarquia poderia cometer seria deixar aberta a voragem que agora a separa do mundo, que caiu no neopaganismo.

A Encarnação perene

Seguindo o exemplo do Divino Salvador, é necessário que agora também a Igreja se encarne, se humanize e vá ao encontro dos homens, revestindo-se de modos e linguagens contemporâneos, «Et habito inventus est homo» [E com a forma seja encontrado o homem] salvando, no entanto, sempre a sua divindade.

O Santo Sacerdócio

Quando digo Igreja, não me refiro a uma abstração metafísica: Igreja somos nós, cristãos, nós, sacerdotes ou bispos que Deus chama mais uma vez à redenção do mundo.

Podemos fazê-lo, mas com uma condição essencial: precisamos, acima de tudo, de um clero santo e de uma Ação Católica bem formada e organizada.

O sacrifício perpétuo

Este clero e esta Ação Católica devem, no entanto, preparar-se para sofrer muito, pois continuamos a ser cordeiros indefesos no meio de lobos furiosos.

A técnica de trabalho não deve ser outra senão a indicada pelo Evangelho na parábola da dona de casa que amassa o pão.

Se hoje a Igreja conseguir novamente levedar com o espírito evangélico a sociedade contemporânea, penetrando-a por completo, o prodígio se realizará infalivelmente. Está prometido pelo Divino Redentor: donec fermentatum est totum [Até que tudo esteja levedado].

A plenitude do Corpo místico de Cristo

O mundo, infelizmente, permanecerá sempre mundo: mas nós, pelo menos, teremos cumprido bem nossa missão, conferindo ao Corpo místico de Cristo aquela plenitude de desenvolvimento preordenada pelo Pai.

A Ele, juntamente com o Filho e com o Espírito Santo, seja dada honra pelos séculos. Amém.

Nota: Tradução livre, feita por um dos colaboradores de nosso site.

Contato