O sentido do maravilhoso na infância espiritual


A D V E R T Ê N C I A

O presente texto é adaptação de transcrição de exposição verbal do Prof. Plinio Corrêa de Oliveira, e não passou por revisão do autor.

Se o Prof. Plinio Corrêa de Oliveira estivesse entre nós, certamente pediria que se colocasse explícita menção a sua filial disposição de retificar qualquer discrepância em relação ao Magistério da Igreja. É o que fazemos aqui constar, com suas próprias palavras, como homenagem a tão belo e constante estado de espírito:

“Católico apostólico romano, o autor deste texto  se submete com filial ardor ao ensinamento tradicional da Santa Igreja. Se, no entanto,  por lapso, algo nele ocorra que não esteja conforme àquele ensinamento, desde já e categoricamente o rejeita”.

As palavras “Revolução” e “Contra-Revolução”, são aqui empregadas no sentido que lhes dá o Prof. Plínio Corrêa de Oliveira em seu livro “Revolução e Contra-Revolução“, cuja primeira edição foi publicada no Nº 100 de “Catolicismo“, em abril de 1959.

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“Santo do Dia”, 28 de junho de 1969

 

A criança tem uma propensão a crer e uma facilidade para admitir o maravilhoso, e uma tendência para conceber as coisas sob a égide do maravilhoso que o adulto depois vai perdendo * Quando Nosso Senhor elogiou os pequeninos, aquele elogio se entende não da imbecilidade própria à criança e que é um efeito do pecado original, mas desses valores de alma que a criança tem enquanto criança, e que a vida conspurca * Nós somos do Grupo porque Nossa Senhora não permitiu que se extinguisse inteiramente essa chama

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Entre as características da espiritualidade e da mentalidade de Santa Terezinha,  existe esta:  [de] que o espírito da criança – nós vemos isso muito em Santa Terezinha – não é fanado por certas coisas que fanam o espírito do adulto.

Em geral, a criança – em primeiro lugar porque não se corrompeu ainda com a vida; em segundo lugar pelo efeito do batismo que é mais importante do que não se ter corrompido com a vida – tem uma propensão a crer e uma facilidade para admitir o maravilhoso, e uma tendência para conceber as coisas sob a égide do maravilhoso que o adulto depois vai perdendo, [até] chegar, depois, ao tipo do velho desabusado, completamente céptico, materialista etc., que representa o ocaso do espírito humano.

Assim, vamos dizer, o espírito da criança pede árvore de Natal; ora, o que é que é árvore do Natal? É uma coisa que imerge para o mundo do maravilhoso. A criança tem uma apetência para contos de fadas; ora o que é o conto de fadas? É o mundo do maravilhoso. A criança tem uma grande aptidão para a fé; ela acredita e não pergunta as razões de crer, ela vai logo crendo. Ora, o que que é isto? É uma espécie de senso e um senso virginal que tem a criança de um mundo além deste mundo, de uma realidade existente para além desta realidade que nós vemos e que é mais bela e que sacia os anseios do espírito humano que o homem adulto depois já não tem.

Agora, à medida que a pessoa vai vivendo, a pessoa vai se apegando a essas coisas terrenas, e, à medida que ela se apega, ela vai perdendo o senso do extra terreno, que é o senso do metafísico; quer dizer, de uma realidade que existe além do físico. E o senso do sobrenatural, do maravilhoso, do sublime, etc., etc., tudo isto vai minguando na pessoa na medida em que ela vai ficando adulta.

O resultado é que faz parte daquele elogio que Nosso Senhor fez das crianças exatamente isto, é aquela abertura de alma, aquela elevação de alma que o adulto perde.

Não sei se os senhores tiveram esta reação que eu tive muito em criança. Mas eu via os homens mais velhos que eu em minha família, e eu tinha uma impressão a respeito deles que era uma coisa curiosa: eu os achava homens muito mais possantes do que eu, muito mais capazes, com muito mais prestígio, [prestígio] que eu receava nunca ter em minha vida, etc., etc.; toda sensação que a criança tem diante dos mais velhos de sua família. Mas, por outro lado, eu achava que eles tinham uma alma crestada, uma alma terra-terra, uma alma vazia, [de tal modo] que eu ficava com medo de ficar homem,  medo de ter aquela alma.

Eu tinha a impressão de que era mais ou menos forçoso ficar assim à medida que a gente ficasse mais velho; mas, de outro lado eu tinha horror de ficar assim. E tinha uma tendência de pedir a Deus que me levasse antes de eu ficar como eles. Mas, de outro lado, eu tinha uma noção confusa de que eu devia viver, que eu não devia morrer; e que, portanto, havia uma espécie de quadratura do circulo para resolver: que era de ficar adulto sem tomar um espírito que me parecia o corolário do espírito do adulto.

Também, perante os problemas da pureza, a criança tem muito naturalmente o pudor. Já o homem maduro é tendente a olhar a coisa pelo lado fisiológico, pelo lado racional, por essas coisas, exclusivamente; com preterição de todos os aspectos morais, de todos os aspectos sobrenaturais e imponderáveis do pudor.

E quando Nosso Senhor elogiou os pequeninos dizendo que esses é que deveriam aproximar-se dEle, aquele elogio se entende não da imbecilidade própria à criança e que é um efeito do pecado original, mas se entende desses valores de alma que a criança tem enquanto criança, e que a vida conspurca.

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Santa Teresinha ao entrar no Carmelo.

E é o que nós encontramos na vida de Santa Teresinha. A alma dela está toda impregnada, desde os primeiros lampejos da razão, de um senso do metafísico, senso sobrenatural, senso do maravilhoso, senso do admirável e uma espécie de subestima de uma porção de valores que se opõem a isto. Bem.

O século vinte é oposto da infância espiritual neste sentido, porque é o século terra-terra que nega todos esses valores e que se aferra apenas às coisas materiais, e que não acredita numa realidade que não seja física; e que, no fundo, é portanto materialista e ateu. Porque essas primeiras posições de alma de que eu falei são, no fundo, posições que implicam na existência de Deus. Não importam numa profissão explícita de fé em Deus, mas implicam na existência de Deus; ou porque derivam, pressupõem a existência de Deus ou porque conduzem à existência de Deus, mas são corolários necessários da existência de Deus.

Por exemplo, vamos dizer, a árvore de Natal. A árvore de Natal é acusada furibundamente por muita gente, de ser uma coisa laica; e, realmente tem algo de verdade esta impostação. Mas, ela, no fundo, não é laica. Ela traduz a aspiração da criança para uma ordem ontologicamente mais perfeita do que a nossa, em que tudo seja de maravilhas.

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E de maravilhas que não são só bens para o corpo mas bens para a alma. Não é a árvore de Natal onde se penduram balas, por exemplo, para se comer; não é isto. Mas é a árvore de Natal que contém brinquedos inúteis, inúteis até para brincar. Porque aquelas bolas coloridas que, ao menos no meu tempo, se punha na árvore Natal, estrela e outras coisas desse gênero, são coisas que são inúteis para brincar; são feitas para contemplar.

Para contemplar o quê? No fundo, a hipótese, ou a quimera, se quiserem, de uma ordem de coisas maravilhosas existente – a criança o sabe – fora da realidade palpável; porque a criança sabe que aquela árvore não é assim, que aquilo não são frutos daquela árvore.

Mas o que há por detrás? É um desejo do extra terreno, confuso mas ardente, que se exprime naquilo. É claro que há, portanto, ali, a nutrição de um desejo de alma de uma coisa que é trans-física; e, portanto, há um impulso que, em si, pede a Deus, é um ponto da partida para pedir a Deus.

Aquele menino que nós vimos, por exemplo, contemplando a Rainha da Inglaterra entrar no “coche”, ele está encantado com aquele maravilhoso, está admirado com aquilo. Mas é por quê? Porque é uma pontinha da vida concreta que se apresenta como transcendendo inteiramente todas as outras vidas concretas, e constituindo um bem do espírito para ele.

 

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Cena publicada em uma revista italiana que representa a Rainha da Inglaterra em uma carruagem, portando a insígnia da Ordem da Jarreteira

Com um monarquista, eu tive ocasião de dizer uma vez que – em função daquela fotografia – que há duas espécies de monarquistas: há o monarquista que se compraz em ver essas cenas por se imaginar centro delas: este não tem infância espiritual. Há um outro monarquista que se compraz em ver essas cenas, indiferente a estar dentro delas ou fora delas e talvez até preferindo estar fora para poder contemplar: este tem a infância espiritual. Porque, o primeiro quer ter é uma posição  para si; o segundo não, tem uma atitude desinteressada do espírito. Aquilo existe. E ele se regala com aquilo; não é? Por quê? Porque lhe dá consideração de um maravilhoso concreto, que lhe satisfaz em algo por causa do desejo de um maravilhoso ontológico, metafísico, que não existe concretamente; quer dizer, é um pequeno passo para isto. Então. Aqui está o valor do espírito da criança.

Aquela criança que vendo um militante em campanha, com a capa, gritou: “Mamãe, vem logo, porque o Rei está aqui!”, ela revelou, na reação dela, vários desses lampejos. A primeira reação é a naturalidade: “O rei está aqui”, há um rei. Quer dizer, ela ouviu falar várias vezes de rei, e ela não realizou bem que este rei não existia na cidade dela.

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Viaduto do Chá, São Paulo, dezembro de 1970 – Abertura da campanha de coleta de donativos para os pobres das Damas da Companhia das Filhas  da Caridade de São Vicente de Paulo – os cooperadores da TFP portando suas capas características

(Aparte: É um rei transcendente; não é?)

É um rei transcendente que, em determinado momento, se corporifica e vai visitar a mãe dela.

Outro lado muito bonito é uma espécie de intimidade que ela acha que o rei tem com a mãe – é natural que o rei que ocupa tal lugar na cabeça dela vá à casa dela. Quer dizer, é uma espécie de conexão com o maravilhoso que tem uma conduta encantadora. Essa criança mereceria a visita de um rei. Mas essa idéia tão natural que a mãe vá falar; e, depois, o respeito: “Mamãe, vem logo”.

Agora, para os senhores verem o que é a perda dessa idade para idade da juventude: muitos que usam capa, entre nós, não compreendem essa capa como aquela criança compreendeu. Mas muitos! Algo se desgastou, não é?

Não me venham logo com o assunto de pureza; porque é claro que pureza diz respeito a isso. A resignação à impureza traz a renúncia a uma porção de coisas, mas não vamos confundir isso com a questão da pureza, pois é uma questão mais alta, é uma questão propriamente de retidão de espírito. A retidão do espírito não é uma coisa horizontal, é uma coisa vertical. Quando se tem espírito reto não se vê assim, vê-se assim. E isto é o que eu chamaria, então, elemento integrante da infância espiritual.

Quando eu me lembro do meu tempo de menino, quanta, quanta, quanta coisa me ia na cabeça a esse respeito. E eu me lembro de ver os meus companheiros rejeitando isto gradualmente; como quem tem uma cristaleira com cristais preciosos e vai quebrando cristal por cristal e, depois, faz uma “noite de São Bartolomeu” com a cristaleira. Eu posso reconstituir bem o que seja este pecado.

A Idade Média era cheia disto. E o Reino de Maria tem que ser mais cheio disto ainda. Exatamente é uma exposição que, para o futuro, eu pretenderia fazer aos senhores.

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La Virerge à l’oiseau (Nossa Senhora com o Menino Jesus e este com um pequeno pássaro), no exterior da igreja de Nossa Senhora de Marthuret em Riom (França). A inocência que se nota nesta imagem ilustra muito bem o sentido das palavras do Prof. Plinio sobre a Idade Média [para mais detalhes sobre esta imagem ver aquí].
E deste conjunto de atitudes de alma que supõem a crença em Deus ou são um movimento da alma para terminar em algo que é a crença em Deus eu chamaria senso do maravilhoso na infância espiritual.

Depois, isto se dá, nos adultos, dum outro modo. Os senhores tomem por exemplo um norte-americano comendo, um francês de antes da Revolução Francesa comendo, e um homem da Idade Média comendo: são coisas completamente diferentes.

Por quê? Porque, o homem – vamos dizer – da Idade Média, ele come – o “pater família” – sentado numa poltrona que é quase um trono; a esposa dele, ao lado dele, numa cadeira um pouco menor, é uma espécie de rainha co-reinante; e aquela reunião de comer é, apenas secundariamente, comer. É um convício que tem  [algo de] solenidade porque a família em comum está reunida. E a família é uma entidade que é mais do que a soma de seus membros: é uma conjugação de seus membros que, de algum modo, é mais do que a soma dos seus membros.

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Família de camponeses à mesa – Jozef Israëls, 1882 – Van Gogh Museum, Amsterdam

E esta reunião da família, com a união que ela realiza, vagamente, induz o espírito a ideias de união entre as criaturas, e das criaturas com o Criador, a união com o vínculo de mil coisas existentes no universo. E vínculo inclusive sobrenatural, na ordem da graça instituída por Jesus Cristo. Razão pela qual se come como quem realiza uma função; mas uma função de caráter espiritual. Eu não estou falando do modo de interpretar os alimentos, não; eu estou falando do modo das pessoas se terem à mesa.

Vão a uma casa hollywoodiana: não é isso. Precisa por televisão. Então, eu poderia dizer que há um modo ateu de jantar e de almoçar, e um modo teísta, que são modos completamente diferentes; e a consciência de que aquela coisa material que está sendo feita lá é um símbolo de mil coisas espirituais que a pessoa entrevê. E não é por outra razão, creio eu, que Nosso Senhor instituiu o Santíssimo Sacramento na ceia, não é?

Esta continua noção de um significado metafísico do que a gente está fazendo, e a comunicação, exatamente à vida, de um sentido de quem está fazendo uma espécie de exercício metafísico, um exercício que repercute na ordem metafísica e na ordem sobrenatural; isto, é o membro do Grupo. Porque os senhores não tenham ilusão: nós somos membros do Grupo porque Nossa Senhora não permitiu que se extinguisse inteiramente essa nossa chama em pequenos. E grande parte desta luta que é o drama da meia fidelidade do Grupo, é a luta entre o que resta dessa chama reacendido pela vocação e a chama preta, que é o terra-terra, o positivo, o categórico com negação completa do sobrenatural.

Está tão vago o que eu estou dizendo que eu estou mais me expandido do que fazendo qualquer outra coisa. Mas eu creio que os senhores, nos imponderáveis, pegam mais do que o que eu estou dizendo de preciso. E que aqui fica um “trailer” der uma conferência a ser feita num momento oportuno.

(Aparte: Aqueles meninos que se referem à capa e o estandarte na rua como se fosse “trem” de guerra.)

É, também, isto. A criança tem o senso do maravilhoso. Por isso, tem o senso do militar. E o menino é militarista, naturalmente; porque ele compreende a beleza da guerra, ele compreende a beleza do infortúnio que a guerra pode trazer, ele compreende o maravilhoso de dar a vida por uma causa. À medida que ele vai ficando adulto, o caráter despesa na guerra, orçamento, epidemias, amputações e outras coisas vão se avolumando no espírito dele e o senso do maravilhoso vai passando. O espírito da ONU vai nascendo nele. A ONU é essencialmente o contrário da infância espiritual.

 

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Santa Joana d’Arc à frente de uma carga de cavalaria  contra os ingleses

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