Os problemas existenciais próprios ou grandes questões doutrinárias: ao que dar mais atenção?

“Jasna Gora”, Reunião de Recortes, 17 de abril de 1982, sábado

A D V E R T Ê N C I A

O presente texto é adaptação de transcrição de gravação de conferência do Prof. Plinio Corrêa de Oliveira a sócios e cooperadores da TFP, mantendo portanto o estilo verbal, e não foi revisto pelo autor.

Se o Prof. Plinio Corrêa de Oliveira estivesse entre nós, certamente pediria que se colocasse explícita menção a sua filial disposição de retificar qualquer discrepância em relação ao Magistério da Igreja. É o que fazemos aqui constar, com suas próprias palavras, como homenagem a tão belo e constante estado de espírito:

“Católico apostólico romano, o autor deste texto  se submete com filial ardor ao ensinamento tradicional da Santa Igreja. Se, no entanto,  por lapso, algo nele ocorra que não esteja conforme àquele ensinamento, desde já e categoricamente o rejeita”.

As palavras “Revolução” e “Contra-Revolução”, são aqui empregadas no sentido que lhes dá o Prof. Plínio Corrêa de Oliveira em seu livro “Revolução e Contra-Revolução“, cuja primeira edição foi publicada no Nº 100 de “Catolicismo”, em abril de 1959.

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Os jornais?

(Dr. P. Xavier: Sr. L., os recortes?)

(Sr. L.: Acho que houve incidente e a pasta [com as notícias] tenha ficado lá.)

Ficou em São Paulo a pasta?

(Sr. L.: Eu pensei que o Sr. A. teria descido com ela, mas não veio.)

Bem, então lhes anuncio uma grande satisfação: não temos reunião!…

(Nããaoo!).

Reunião sobre o quê? Eu estou mais ou menos, prosaicamente comparando, estou como um dono de restaurante a quem se informa à última hora que a porta da cozinha está trancada e que não há…

O que eu poderia falar de um modo geral, para conversarmos um pouco, eu poderia falar de um modo geral é a respeito da Reunião de Recortes considerada como todas as realidades ricas têm muitos aspectos, e a Reunião de Recortes, enquanto um aspecto da vida da TFP, é uma realidade rica. Não enquanto feita por mim, mas enquanto um aspecto da vida da TFP, e se presta sempre a esse ou aquele comentário. E eu queria tratar de um aspecto da Reunião de Recortes que eu trataria agora aqui. Vamos então entrar por aí para satisfazer, em alguma medida, o desejo dos senhores.

Acontece também que há uma espécie de compromisso, mais ou menos meu, que me leva a estar em São Paulo um pouco mais cedo hoje. Tudo isto se alia para fazer então uma coisa mais leve e tocarmos o barco.

* O professor Lipmann: o interesse da juventude passava da sociologia para a psicologia

Conversando há muito tempo atrás – mas há muito tempo atrás, uns 15 anos talvez, 20 anos, uma coisa assim – com uma pessoa que hoje é morta, que é o Professor Lipmann, que era professor da Universidade Católica de Petrópolis e professor de psicologia, ele me disse uma coisa que me deixou com uma interrogação posta e de lá para cá eu sempre tenho estado para tratar da questão e não tem havido ocasião.

Os senhores estão vendo que é um fato velho, é um tema velho. Mas esse tema me veio ao espírito – os temas bons são assim: aqueles que podem estar longamente guardados no espírito e sempre adquirem mais algum aspeto, mais algum dado etc., até chegar o momento de se tratar deles. Veio-me ao espírito recentemente, evidentemente, a respeito de fatos recentes. E então eu queria tratar desse assunto aqui.

Me disse o professor Lipmann, eu volto a dizer, professor de psicologia, e portanto levado pelo próprio “métier” a dar à psicologia toda a importância possível, o seguinte… Ele disse: para as pessoas que vivem, que estudam em função da opinião pública e do modo pelo qual vai evoluindo o espírito público – e essas são muitas – para essas pessoas nas quais se inscreve a maior parte dos homens de cultura grande ou de meia cultura – e ele tem razão, a cultura ou a meia cultura a maior parte das vezes versa sobre temas relacionados com isso direta ou indiretamente.

No tempo em que o senhor era moço – dizia ele – a grande matéria nova que estava sendo descoberta e que atraía todas as atenções, e para as quais havia previamente à descoberta uma apetência, de maneira que a descoberta veio encontrar uma apetência preparada: era a sociologia.

* Anteriormente à sociologia, o que preocupava os espíritos era a política

Realmente, é isto mesmo. No meu tempo de moço estava sendo, para o público em geral, havia décadas que havia especialistas sociólogos, mas para o público em geral estava florescendo, como conhecimento para o público, a sociologia. E, portanto, a história sociológica, a arte sociológica, enfim, a sociologia em todas as suas variantes, em todos os seus aspetos.

Diz ele: mais atrás, anteriormente, tinha sido a política. E durante todo o século XIX e boa parte do século XX a política tinha interessado todos os espíritos. O que tem de próprio a essas duas cogitações, diz ele – e ele fazia o comentário dele de psicólogo sobre isso – o que tem de próprio a esses dois campos de cogitação é que eles são campos de cogitação do homem a respeito dos outros. O homem deita o melhor de seu interesse em saber como corre o espírito dos outros, e não é tanto deste outro, daquele outro ou daquele outro ainda – isto a literatura do século XIX teve, eram uns românticos – mas é a respeito de seu próprio eu.

Não, digo mal, me distraí. Não é a respeito dos outros tomados enquanto indivíduos, mas é dos outros tomados enquanto coletividades.

O estudo da política e das coisas que se relacionam com a política é da coletividade, do Estado, entidade super eminentemente política, e do que sucede o Estado nas suas atividades próprias. O século XIX foi o século das reformas políticas.

Agora, o século XX haveria de ser mais o século das reformas sociais. A curiosidade pública estava dirigida para o campo social, e a sociologia eclodiu, veio à tona no momento em que para ela se voltava a curiosidade pública. E nós tivemos as reformas sociais.

Nós devemos ter agora um campo inebriantemente mais importante e que vai chamando a atenção de toda a juventude hoje – há 20 anos atrás – e é a psicologia. E o homem se despolitiza, a sociologia perde o interesse para ele, e o grande problema para ele é a própria psicologia. A psicologia dele, a psicologia do gênero humano como podendo explicar o caso dele, mas a preocupação dele consigo próprio é a nota dominante dos espíritos quem vêm.

Ele não me disse, mas o curso dos acontecimentos levaria a completar o pensamento dele da seguinte maneira: nós teríamos que passar por uma imensa reforma, não mais apenas do Estado – esta está mais ou menos feita, é a República democrática, representativa, quando for o caso, em territórios grandes, federativa, municipalista etc., etc., como o Brasil – nem a reforma social. A ilusão, a utopia socialista é apresentada como uma conquista definitiva, para a qual caminha mais ou menos laboriosamente a humanidade. Mas é agora uma reforma do homem.

* Hoje o homem volta-se, primordialmente, para o problema de seu naufrágio interior

E esta reforma do homem cada um a sente no campo individual. E no naufrágio do homem, dentro de toda a complexidade da vida contemporânea, o naufrágio do homem, nesse naufrágio do homem o homem se volta para o problema de seu naufrágio mais do que para qualquer outra coisa.

Então, eu faço a comparação clássica e surrada de um naufrágio em que um navio, que seria mais uma caravela porque os navios de hoje não tem mais pedaços de madeira que se desprendem, os pedaços ficam boiando pelo mar e um homem pega um pedaço de madeira.

Ele depois de ter conseguido aquilo respira um pouco, e diz: Bem, eu estou protegido no momento contra o desaparecimento dentro da água, mas agora eu e esse pau para onde é que vamos? Eu vou ter sede, eu vou ter fome, eu vou ter cansaço, o sol vai me torrar, a noite vai me enregelar, eu consegui uma pequena sobrevida, para onde é que eu vou?

Se de um homem desse se aproximasse alguém com uma lancha, e dissesse: Meu caro, vamos conversar sobre um tema que o envolve de todos os lados, a oceanografia… o senhor está a tal altitude, a tal longitude etc., e a composição química das águas nessa zona etc., etc…

O que diria esse homem? Ele diria: O senhor não percebe que eu estou com fome, com sede, cansado, que o mar que leve à breca, eu quero ficar dentro de sua lancha? Eu quero comer: o senhor não trouxe viveres, não trouxe bebida? Eu quero ir para onde o senhor vai, algum rumo, eu quero me ver livre desse pedaço de pau que eu solto por aí e quero entrar dentro da sua lancha, isso que eu quero!

Seria uma reação pelo menos muito explicável. O mínimo que se pode dizer dessa reação é que ela seria muito explicável.

Bem, assim também – sou eu que estou falando agora – assim também o homem às voltas com a crise de si mesmo, no século XX, a crise do homem – daí a geração nova, daí a geração dos enjolras, daí quanta coisa que veio se seguindo – são formas de uma mesma crise cada vez mais aguda, bem, esse homem fica hipnotizado pelos problemas pessoais e realmente muito voltado para a psicologia ou para o que com a psicologia se pareça.

* Esta característica do homem de hoje cria um problema em face das perspectivas diante das quais a Reunião de Recortes foi concebida

E isto cria um problema em face das perspectivas diante das quais a Reunião de Recortes foi concebida… (risos)

A trombada é de frente… é esse o caso!

Com efeito, a Reunião de Recortes tem como vista a globalidade da sociedade humana. No campo político, no campo social, algum tantinho – umas incursões afoitas e, entretanto, tímidas – no campo econômico. Essa é a nossa temática.

De repente, também a Reunião de Recortes desemboca para uma transformação. A partir do momento em que nós começamos a tratar da cibernética, da biologia, da transpsicologia, nós começamos a tratar da grande transformação do homem. E, nós damos de cheio com o caso quem vêm engrossando, desde aquela remota conversa minha com o professor Lipmann – que ficou também nisso, foi um episodiozinho, ainda na Sede do Reino de Maria da rua Pará, uma coisa, eu acho que ele perdeu completamente a memória dessa conversa…

…eu deixei esse caldo ir engrossando, ir engrossando. E quando ele tomou uma grossura apocalíptica, tremenda, com a conjunção das reformas nesses três pontos, em que a gente vê que o desenvolvimento dessas três ciências conduz a uma reforma do homem, e é diretamente a reforma do homem visada pelo Mitterrand, a reforma do homem para fazer do homem tudo quanto nós vimos na última reunião. Bem, que nós então passamos de cheio para o campo indicado pelo Lipmann.

E, não creio que eu tenha perdido o tempo fazendo assim, porque uma porção de etapas intermediárias, laboriosas, pouco interessantes, foram sendo queimadas durante esse tempo. E quando a refeição esteve pronta, eu a sirvo, a coisa ia de chegar no que chegou. Nós pegamos agora e tratarmos dela.

Não sei se está bem claro o assunto, se a apresentação do tema está bem clara ou não. Hoje, eu ia retomar, eu escrevi algum tempo atrás um artigo na “Folha de S. Paulo” cujo título era mais ou menos assim: “Ontem, há tanto tempo”.

Eu sinto muito esta sensação quanto falta uma Reunião de Recortes na sequência. Na minha cabeça a última reunião fica longe, eu preciso perguntar o que se tratou, como foi o negócio etc., etc., pela saraivada, pelo galope maluco dos outros temas no intervalo das reuniões. Eu então digo há 15 dias atrás, há tanto tempo!…

* Cibernética: começa a manipulação do homem pela máquina, no intuito de reformá-lo

Bem, então há 15 dias atrás, eu dei aqui alguma coisa a respeito do material apresentado pelo Dr. José Lúcio, e era a respeito de um desses aspectos dessa tríplice reforma. Mas eu volto agora à reforma energética, e sobre isso eu queria dizer alguma coisa que era o seguinte: eu estive relendo, hoje no barbeiro, foi o último tempo que eu tive, a parte já marcada – aliás nós tínhamos isso aqui mimeografado, não temos? Do relatório do senhor Dufaur?

(Sr. M. V.: Está sim senhor.)

Então deixa um pouquinho porque eu agora entrei noutra pista, deixa acabar de dizer o que eu quero e depois vamos tratar disso. Então eu estava dizendo que já não me lembrava bem de alguns aspectos da matéria tratada, então recomecei a ler no barbeiro a parte grifada e tratada da matéria dada. E percebi, naquelas páginas, uma subtileza de subentendidos etc., maior do que a primeira leitura sempre apressada me tinha feito ver. E eu grifei especialmente para trazer aqui. E eu vi bem com toda a clareza até que ponto, sob formas veladas de segunda classe, se contém intenções e pensamentos que vão fundo na linha da tal reforma do homem.

Basta dizer aos senhores que uma das teses que, apresentada assim com naturalidade que a cibernética deve ser considerada com um prolongamento dos vários sentidos no homem, acaba dando a entender que a cibernética em virtude da ação, dita assim, de um ser, de uma mente que ela tem ou parece ter, cria horizontes mais vastos para os sentidos do homem, empurrando portanto o homem para muito mais longe e plasmando a alma, esculpindo a alma de um modo diferente, de maneira que dará seres de uma outra natureza – ela é evolucionista, a escola é evolucionista, e para os evolucionistas os caracteres adquiridos se herdam – então por causa disso uma hereditariedade disso se estabelece e o gênero humano irá mudando nesta manipulação do homem pela máquina, e não só pela máquina porque existe a transpsicologia.

* A Revolução cria uma apetência no homem e já apresenta a falsa doutrina para atender essa apetência. Ela criou o naufrágio em que estamos

Então, eu vendo isso eu me dei ainda mais conta do seguinte, que o que há propriamente no fundo de todas as coisas é: preparam uma apetênciaquando também já tem preparadas as disciplinas, naturalmente falseadas, truncadas, que devem atender a essa apetência.

Quando a apetência subconscientemente eclodiu – e há meios de preparar essas apetências, de cozinhar as almas para nascerem nelas essas apetências, há meio – então, quando eclodiu essa apetência, eles dão a público o que eles prepararam a respeito de determinado tema. Aquilo é entregue ao público para o público devorar aquele tema.

E que a apetência dos problemas psicológicos pelo naufrágio do homem, veio da época anterior, da época da sociologia, da época mais anterior ainda, da época política, foi formando um depósito para criar essa apetência do homem. E que essas apetências assim criadas desembocaram na época em que eles já tinham todo um misto de mentiradas e descobertas para apresentar para fazer engolir pelo homem, e que isso aí é a cibernética e é a transpsicologia e tudo o mais.

Bem, e eu me dou conta de que, é curioso, mas em função disso, por causa dessa apetência em gestação, há dois modos de considerar a Reunião de Recortes, também assim mais ou menos subjacente, mais ou menos subsolo.

* Os dois modos incompletos de considerar as Reuniões de Recortes

Um modo é eminentemente sócio-político antigo, e consiste em querer saber como vai o mundo para saber como vai a Bagarre. Em última análise, para saber quanto tempo vai durar – são dois modos errados; [agora] não dou o modo certo – quanto tempo vai durar esta espécie de enxovia aberta na qual nós vivemos e quando é que nós veremos livres disso e poderemos levar uma vida normal.

Uma pergunta assim: quando é que isso acaba? quando é que isso acaba? faz parte das ansiedades sócio-políticas do que eu chamaria o veio sócio-político da Reunião de Recortes.

Mas que há um outro veio de almas que é o contrário: fica procurando – para efeitos psicológicos próprios – ocasiões, fatos, acontecimentos em que o comentário propicie uma manifestação intensa do que é a mentalidade do Grupo, do que é o espírito do Grupo. E o desejo de, à vista disso, se beneficiar da inalação que isto pode dar, para efeitos psicológicos próprios, para robustecimento próprio, para gáudio próprio.

E que há dois modos de ver, portanto, a Contra-Revolução. Um modo não exclui o outro, não há uma contradição entre uns e outros. Para uns a tônica consiste na vitória sócio-política; para outros a vitória consiste em que a mentalidade completamente católica “éclate” [brilhe] inteiramente, com a ideia mais ou menos subjacente, mais ou menos vaga, de que a luta entre Nossa Senhora e o demônio no mundo, hoje, consiste menos nesses manejos do que numa confrontação de manifestação de mentalidades e de espíritos. Desde que uma mentalidade se manifeste com toda a intensidade, ela empurra para trás a outra. E desde que a mentalidade “B” se manifeste com uma intensidade, uma autenticidade redobrada, ela empurra para trás, e que a grande luta da Revolução e da Contra-Revolução são essas manifestações de mentalidade.

Eu sei que eu estou tocando num assunto delicado… Eu nunca toquei nessa questão. Mas na ilusão de que eu não teria material de recortes a tratar, eu resolvi tratar disso. E eu conheço bem, sobretudo os meus caros brasileiros, como são: engajado numa coisa dessas, precisa sair do outro lado, porque não há remédio. Mandar distribuir agora os papéis…

Nosso povo tem seu modo de ser intransigente. É um modo cordato, mas é um modo inflexível.

Se eu mandasse distribuir agora os papeis aqui, não havia protestos nem nada disso, todo o mundo ia acompanhado, mas com um corpo mole que era um protesto… E a inutilidade da reunião seria a manifestação da intransigência. Quer dizer, eu ficava querendo aquele outro tema, aquele outro tema, aquele outro tema… De maneira que eu agora tenho que sair do outro lado, não tem remédio.

* O processo revolucionário fica reduzido ao papel de arma convencional, numa guerra, em que já se vislumbra o uso da bomba atômica

Então nós teríamos a seguinte ideia: o processo revolucionário importa, como pode importar por exemplo, pode importar na luta de hoje, na guerra de hoje, as armas convencionais. Todos os países as têm, todos os países fazem treinamentos, organizam exércitos etc., etc., na base das armas convencionais. Mas sabe-se que se bem que essas armas continuem a ter um papel militar, que a ciência militar baseada na natureza dessas armas, na experiência militar acumulada pelo uso dessas armas nos séculos anteriores e nesse século, que isto tudo continua válido, sabe-se também que a bomba atômica e a guerra química, a guerra bacteriológica transpõe todo o problema das armas para outro terreno. De maneira tal que fica pairando no ar como provável, uma super guerra perto da qual esta é convencional.

E para o sul-americano, em geral – mas para o brasileiro em particular – adestrar-se para a guerra de hoje com a ideia de que ela já não é bem de hoje e que a de amanhã está perto, é uma provação tremenda, porque o brasileiro é muito curioso, fica louco para saber como é a guerra de amanhã. Louco! Eu vejo várias reações fisionômicas em estrita consonância com isso.

Bem, que constitui o que seria o processo revolucionário, está para esta confrontação, esse “éclat” recíproco de mentalidades, está mais ou menos como a guerra convencional está para a guerra atômica.

Os senhores mais antigos estão vendo a era do professor Lipmann como se manifesta a respeito disso aí, e percebem que “il y a du vrai là-dedans” [tem algo de verdadeiro nisso].

Eu não sei se depois dessa longa introdução a matéria está pronta para entramos nela. Eu pergunto se está clara, se alguém queria me perguntar alguma coisa, eu estou à disposição.

(Sr. G.D.: As duas vertentes ficaram muito claras.)

E o senhor está meio aderente à segunda. Bem, diga lá.

(Sr. G. D.: Mas o senhor disse que tanto uma quanto outra, não sei se entendi bem, teria algo para ser melhor ajustado. Agora, ao lado disso eu perguntaria o seguinte: por que o senhor desde muito cedo o senhor considerava que a política guardava uma certa simetria com o sacerdócio. Que depois do sacerdócio, que é a mais alta condição a que um homem pode se entregar na vida, a política seria a segunda.)

O político fica abaixo do sacerdote, logo depois.

(Sr. G. D.:  Então, por que para as gerações que foram formadas em todo esse plano político, naquela ocasião o Sr. comentou isso. E se o senhor pudesse comentar um pouco isso, e depois a relação desse comentário anterior com toda a questão de mentalidade.)

Eu compreendo.

(Sr. G. D.:  Eu pergunto se o senhor queria tratar também.)

Eu posso, eu posso até tratar disso logo. Se eu entendi bem a sua pergunta, ela acaba sendo o seguinte: em face dessa transformação, esta preeminência governativa dos destinos do mundo pelo sacerdote, e secundariamente pelo político, no que fica? Uma vez que as coisas mudam para lá?

* A Igreja – e os políticos – se desatualiza se não levar em conta o atual fenômeno psicológico

A ser verdade o que está sendo dado assim – porque o senhor percebe bem que eu estou dando todas as cartas a favor do jogo novo, e que depois eu vou entrar com o jogo antigo.

Eu não vou fazer uma luta de classes entre novos e antigos –  graças a Nossa Senhora não se trata disso –  mas eu quero pôr todas as cartas sobre a mesa porque me importa muito, importa muito à nossa boa formação.

Bem, este fato está se produzindo e ele tem muito de verdade. Ou o sacerdote e o político tomam isso em consideração, e entra aqui a delicada matéria de saber como é que – e eu não vou entrar nela, mesmo porque tenho a alegria e a honra de ter “mestres em Israel” aqui sobre o assunto [referindo-se aos sacerdotes ali presentes, n.d.c.] – mas uma vez que isto constitui uma especialidade, como é que se faz essa especialidade? O sacerdote recorre ao especialista ou os sacerdotes, alguns se especializam para isso? Mas é preciso tomar isso em consideração porque isto vem. No terreno da pastoral essa transformação tem que ser considerada.

E o político também. O vazio dos atuais partidos políticos, o seco, o murcho, o desinteresse, a coisa terrível que faz com que os partidos políticos pareçam árvores que levaram um raio e ficam assim, aquele esqueleto… vem do fato que eles não atinaram com isso, não puseram na direção dos partidos nem na militância homens que procurem pôr ao serviço do partido esses conhecimentos e eles ficam parlapateando aquelas coisas que só – aquilo é um clube hoje em dia, de pessoas que brincam com uma coisa que é o poder público, e que vão fazendo brinquedo da democracia, como fariam da ditadura em outras ocasiões, e fizeram, indiferentes às coisas, mas a vida corre ao lado deles…

Como é que deveria ser o político? Os homens entendendo do fato novo seriam os políticos de amanhã? Ou os políticos deveriam, além de política, entender do fato novo?

Mas isso vai mais longe, porque atinge os artistas, por exemplo. A arte como é que diante desse fato novo, se situa? E atinge quanta outra coisa possa haver. É um fato muito delicado, mas esse fato se põe assim. Não sei se minha resposta responde a sua pergunta.

Bem, então vamos voltar às coisas. É muito de propósito que não estou dando a resposta a respeito dos políticos porque se o senhor me lembrar pelo fim da reunião ela entrará melhor. Bem, então vamos voltar ao nosso caso.

Nós temos esse fato que se põe assim: duas mentalidades, nesse sentido da palavra dois espíritos, que se chocam um contra o outro, por confrontação, e que constituem o elemento dinâmico e vivo da história. O resto não é isto.

* As grandes transformações que a História sofreu foram condicionadas por choques de mentalidades opostas. O sol do cristianismo x trevas do paganismo

Quando a gente toma esse estado para o qual cada vez mais a geração dos meus enjolras vai caminhado, na qual já está caminhando com passo resoluto, quando os senhores tomam esse estado de espírito, os senhores são levados inevitavelmente a fazer uma recapitulação histórica. E a se perguntarem se as grandes transformações que a história sofreu não foram precedidas, e na primeira fase pelo menos, condicionadas por duas explosões de espírito opostas, e se não há algo disso em todas as grandes fases de mudança histórica. E se os historiadores não têm sido muito superficiais, consagrando a isso algumas linhas vagas e mais literárias do que propriamente históricas e meditativas.

Mas, por exemplo, para tomar alguns dos grandes “tournents de l’histoire” [viradas de página da História]. Pode-se dizer o que se disser a respeito da expansão da religião católica no mundo mediterrâneo antigo e da vitória que ela acabou alcançando sobre o paganismo, mas a ideia de fundo que fica vem da leitura dos Evangelhos, e depois dos Atos dos Apóstolos.

A gente nota ali que se manifestou de um modo tão magnífico, com tanta riqueza, com tanta abundância, com uma superioridade da qual não há meio de dizer senão que foi tão divina, o espírito de Nosso Senhor Jesus Cristo, que aqueles mesmos que tinham uma mentalidade crustácea oposta –  os judeus por exemplo, ou depois os romanos, o mundo pagão, do Império Romano, jugulado pelo Império Romano, que tinha também a sua mentalidade crustácea oposta –  isso se levantou como uma manhã que nasce, como um sol que nasce no ocaso do sol velho e começa a brilhar do outro lado, que não dá importância para o sol velho.

Pode haver uma batalha dos sóis, mas não… o sol velho some e o sol novo se impõe, e brilha de todos os modos!

Bem, e que em última, última, última análise aqueles deuses pagãos todos implodiram e caíram de podres com um peteleco de Constantino porque aquela primeira manifestação foi tal que ela minou, anquilosou e acabou salvando, para o bem, todo o mundo antigo!

Depois ela conquistou o mundo bárbaro, porque veio também aquele pessoal das selvas com os tacapes, batuques e aquilo tudo e diante daquilo eles paravam, e iam amolecendo. Era um certo espírito que se manifestava e que brilhava “au-delà de toute mesure” [para além de toda medida] aquilo brilhava e que dava o primeiro empurrão, o primeiro tranco na história. O resto era meio consequência.

* Assim decaiu também a Idade Média. O “pecado imenso” inaugurou a era das Revoluções

Os senhores tomam a decadência da Idade Média, é uma coisa assim. E a doutrina do “pecado imenso”, que teve enriquecimentos nas reuniões do MNF dessa semana, a doutrina do pecado imenso é muito relacionada com isso.

É um homem, hipotético, que pecou, e que dispunha de um certo império de prestígio, de ascendência sobre uma determinada época. E levou todos os espíritos para uma posição na qual entrava em ocaso o mundo medieval e começava a surgir um sol de sujeira, um sol de lama, um sol de degradação, mas que começava a se levantar e a espalhar confusão e a poluir o ar no qual o sol verdadeiro brilhava, cada vez menos visto pelos homens. Foi o que se deu. Veio a era das Revoluções.

Agora, que essa Revolução está chegando ao auge, os que esperam porque estão convictas que o único sol verdadeiro, sol de justiça é Nosso Senhor Jesus Cristo, e que Ele brilha por detrás de todas as nuvens  –  eles estão convictos de que na hora em que Ele pareça rejeitado pela humanidade, Ele intervêm e brilha mais do que nunca.

E sentem o contraste, novamente um contraste dessa ordem como fenômeno de fundo de tudo quanto está se passando hoje. Fenômeno de fundo em face do qual o processo revolucionário, enquanto estudado na sua linha Revolução “B”, social e econômica, fica pobre. Mesmo nas suas linhas mais exploradas da Revolução “A”, fica um pouco empobrecido, e a respeito do qual haveria alguma coisa a dizer.

Eu creio que muitas das nossas melhores esperanças do Reino de Maria e da Bagarre, são relacionadas com cogitações assim, que ficam meio difusas, mas que eu dizendo aqui eu tenho impressão de que encontram sonoridade e ecos em pessoas de todas as idades. Eu não sei se eu continuo a ser claro ou não continuo ou como é que isso…

* Os “aggiornati” de ontem, sem perceber, eram os arautos entusiasmados de algo que tinha entrado em crepúsculo

Bem, isto posto, parece mais ou menos patente que há dentro dessa impostação algo de legítimo, algo de verdadeiro, e até uma verdade profunda, uma verdade subtil que os espíritos mais… – eu me dispenso de qualquer adjetivo – mais “aggiornati” [atualizados] com o dia de ontem tinham eliminado de suas cogitações para serem os homens práticos, para serem os homens realizadores, os homens positivos, os homens que correm, os homens que fazem, os homens que acontecem. Eles não percebiam que eles estavam no anoitecer do acontecer, que eles estavam no anoitecer do fazer, que eles eram os arautos entusiasmados de uma coisa que tinha entrado em crepúsculo, e que eles eram os oportunistas de uma oportunidade que estava deixando de ser oportuna

Meus olhos caíram incidentemente sobre os dois sacerdotes, mas eu imagino isso, os senhores imaginem isso.

Um sacerdote que foi muito “aggiornato” há vinte anos atrás poderia ser chamado o “padre de lambreta”: ativo, que tem uma motocicleta que sai roncando pela cidade de um lado para o outro, que entende seu tantinho de negócios, que ficou ufano de poder pegar o dinheiro que está no tronco da imagem do Santo Antônio, no tronco da imagem da Santa Rita e levar à agência do banco para depositar, e receber o pequeno ágio porque ele dá troco para fazer circulação da moeda bancária, e que combina com o padre do banco – o padre! (risos …) “padre” de outro ídolo, “padre” de um ídolo, nossos padres são padres do Deus vivo e verdadeiro.

Combina com o sacerdote do ídolo Mamon que lhe faça circular assim o dinheiro, e assado, lhe dê tal garantia creditícia para a torre que ele quer construir etc., etc. que depois consulta ufano o seu relógio pulseira –  novidade naquele tempo para os padres, há 20 anos atrás; um padre de relógio pulseira era novidade, indicava uma certa esportividade – e depois vai saber na lotaria esportiva como é que está dando tal coisa assim, e que depois volta de motocicleta para a casa e almoça abrindo uma lata de cerveja e comendo alguma coisa de lataria também… Um homem “realizado”!…

O que é esse homem? Esse homem, nos restos da mocidade daquele tempo, ele podia ter simpatias. O que é esse homem hoje? Para um homem que vá assim para o meio dos moços de hoje… banal. Se aparecer um padre no bom sentido da palavra, verdadeiramente místico, verdadeiramente recolhido, interior e que lhes diga com calor palavras de Deus, pode impressionar muito mais. Quer dizer, o padre que diga o que o antecessor do padre de lambreta dizia. O padre de lambreta ficou entre parêntese e congelado na fugacidade da hora histórica que ele procurou seguir…

* Como a Reunião de Recortes é voltada para o acontecer futuro, deve tomar em consideração esse fenômeno, sob pena de ficar à margem do acontecer

Bem, isto posto, visto que há uma certa autenticidade disso, então se pode perguntar, e não só de que há uma certa autenticidade nisso, mas que a Reunião de Recortes sendo voltada para o acontecer futuro deve tomar em consideração isso, porque do contrário ela está à margem do acontecer. Alguns acharão que há tempos podia ter tomado em consideração, eu acho que não. Os senhores estão vendo que há muito tempo o assunto está na alça de mira. Mas essas coisas têm sua hora de entrar.

Então, a Reunião de Recortes o que é? É uma reunião que cuida sobretudo disso, para conhecer isto e operar isto? ou cuida para dar isto e intensificar isto? Uma coisa é estudar uma fogueira e outra coisa é dar lenha para ela. O que é a Reunião de Recortes nessa ordem de coisas? Uma pergunta.

Outra pergunta que se poderia fazer é: o processo [revolucionário] não interessa à Reunião de Recortes? E nós devemos nos despreocupar do processo? Ele morreu, ou ele está tão anacrônico que ele não pesa mais na ordem dos acontecimentos? O que é o processo?

É legítimo que os que têm a atenção voltada para esses fenômenos novos se julguem particularmente bem inseridos na realidade, por que eles desviam os olhos do processo? Ou dormitam enquanto se trata do processo, o que é uma outra maneira de desviar os olhos? Essa pergunta está clara ou não?

Os senhores talvez percebam que a pergunta é eminentemente atual para uma Reunião de Recortes, e que, portanto, eu de algum modo não perco o tempo dos senhores tratando disto na reunião de hoje.

Eu acho o seguinte: que a metáfora com que eu iniciei essa minha reunião serve inteiramente para pôr em ordem as coisas. De um homem que está num naufrágio, agarrado a um tronco de árvore e que encontra uma lancha, compreende-se que ele não queira ouvir falar de oceanografia.

Se dirá: É um homem equilibrado. Ele será o mais rebarbativo dos “ploc-plocs” [mentalidade geométrica] se dizendo: “Ah! Vem aqui uma oportunidade de eu aumentar o meu cabedal científico! Me conte logo!” e ele continuar flutuando com o seu pedaço de pau…

Eu teria vontade, se não fosse pecado, de rumar com a lancha… e dizer ao “ploc-ploc”: Adeus… arrume-se com sua ciência! Eu não tenho vontade de reintroduzir você no conjunto dos homens!

* O que é concebível para um homem em estado de emergência, não é o perfeito equilíbrio de espírito para um homem em estado normal

Mas aquilo que é uma “tournure” [feitio] do espírito concebível para um homem em estado de emergência, não é o perfeito equilíbrio de espírito para um homem que não está em estado de emergência.

[…] ainda que eles sejam apenas pessoais e subjetivos e psicológicos – e não fenômenos de caráter material, ainda que seja isto, o que em todo o caso é um pouco mais nobre, ainda que seja isto, diga: Eu não me incomodo com a sociedade, eu não me incomodo com o Estado, eu não me incomodo com as coletividades humanas, não tenho olhos para ver isto porque a única realidade é o entrechoque dessas magníficas convulsões que decidem a História.

A ele eu diria: Tenha a paciência, mas você está caindo na unilateralidade dos maus poetas, dos pintores vesgos, dos bardos gagos e errados!

É uma outra coisa.

Por quê? Porque é fato que o Gênesis nos aponta, Deus criado o homem, Deus não criou nenhum Estado nem criou nenhuma sociedade, e nós vemos o homem sair da mão de Deus com sua psicologia, com sua natureza –  nós não vemos sociedades saírem da mão de Deus como sua psicologia e sua natureza. Mas Ele disse: Crescei e multiplicai-vos e enchei toda a terra.

Quer dizer, a intenção dEle é que da progênie dos homens nascessem as sociedades humanas. E Ele quis que essas sociedades – porque está na ordem instituída por Ele – formassem Estados, e Ele quis que as realidades chamadas Sociedade e Estado, que são realidades com uma menor carga de ser do que cada indivíduo que a constitui, essas sociedades, entretanto, por algum lado fossem mais nobres do que os indivíduos.

E que a fisionomia de um Estado, a fisionomia de uma sociedade, aquilo que nós chamamos a “alma de um Estado” ou a “alma de uma sociedade” – alma aqui vai como metáfora, mas como metáfora a expressão está consagrada como legítima pelo uso corrente – que isto por vários lados espelhasse melhor a Deus, e as perfeições de Deus do que os indivíduos pessoalmente.

* A sociedade e o Estado são, a um certo título, mais dignos e mais nobres do que o homem

Porque se é verdade que Deus criou cada coisa, contemplou e considerou que o conjunto era melhor do que cada coisa, a sociedade e o Estado que são conjuntos de homens, são coleções de homens, são a um certo título melhores do que o homem, mais dignos e mais nobres do que o homem.

E que, portanto, imaginar uma época que vivesse só de fenômenos psicológicos e depois individuais, é imaginar a época anarquista para onde os autogestionários querem nos empurrar.

Eu vejo alguns assim preocupados, assim como quem acha o horizonte vasto demais para capitular… Eu estou resumindo, simplificando o mais possível para capitular, não sei se querem que eu pare e repita um pouco ou se eu vou para frente, como é que é.

Bem, e que é preciso ter a alma bastante grande para fazer tudo, e englobar num mesmo horizonte aquilo que preocupava os homens na era da política, na era da sociologia, como o que preocupa os homens nesta era.

E ver as inter-relações entre as coisas, como um todo, porque todos os todos excelentemente refletem a Deus Nosso Senhor e por isso dão glória a Deus. E que é preciso ter a alma posta para este equilíbrio e para esse todo para ter o espírito bem feito.

E que, portanto – para voltar às nossas Reuniões de Recortes – a Reunião de Recortes deve ser aberta a considerações dessa natureza. Eu estou preparando o terreno, para quando for oportuno, entrar com essas considerações; quando houver fatos que nos permitam tratar disso de um modo real, com os pés no chão e de modo positivo e objetivo, sem fantasia, entrar nisso. Acho uma necessidade, tanto é que estou falando, podia não ter falado, estou falando porque quero.

* As transformações no homem só atingem a plenitude de sua força quando passarem a ser explosões que envolvem e arrastam a sociedade

Bem, mas acho que sem perdemos de vista o seguinte: que como a sociedade e o Estado fazem parte do horizonte mental do homem, como a natureza humana reconhece a super eminência da sociedade e do Estado sobre cada homem, a sociedade e o Estado têm uma influência enorme sobre o homem, e que essas explosões enormes de que eu falava, elas de fato só atingem a plenitude de sua força quando elas passarem a ser explosões que envolvem e arrastam a sociedade como tal e o Estado como tal.

Não sei se está claro isso ou não?

É um dos erros da separação da Igreja, da ilusão dos católicos que pensam viver bem no regime da separação da Igreja e do Estado, é imaginar que eles podem viver catolicamente num Estado leigo. A carantonha do Estado leigo os laiciza ainda que eles não queiram, os deseduca ainda que eles não queiram.

Eu compreendo que um sacerdote formando num seminário etc., etc., conservando-se muito fervoroso, possa não se contagiar com a mentalidade do Estado leigo e que ele possa formar 8, 10, 15 paroquianos que não sofram nenhuma infiltração da mentalidade laicista do Estado.

Mas, basta isso: haver uma procissão do Santíssimo Sacramento, e na cidade se sabe que existe uma tropa armada, uma tropa do Exército, da Política Militar, e que essa tropa não está, enquanto tal, prestando continência ao Santíssimo Sacramento, basta achar isto natural que em algo o espírito se laicizou.

É evidente! De maneira que não pode haver na Igreja, vivendo num Estado leigo, senão uma alternativa: ou Ela vai “deslaicizando” o Estado, ou ele vai penetrando nela até laicizá-la. E, portanto, não adianta falar apenas dessas grandes explosões sem tomar em consideração a sociedade e o Estado.

A plenitude dessas “explosões” é quando elas arrastam os indivíduos, mas arrastam as sociedades enquanto tal. A sociedade enquanto tal professa aquilo. E depois o Estado enquanto tal professa aquilo também. Isto é o que deve ser, é o normal. E nós temos que ter os olhos abertos para tudo junto.

* Considerado o que há de cabível e até de precioso na visualização nova, eu entro na reivindicação da perenidade das visualizações antigas

Agora, aqui eu portanto, depois de ter mostrado o que há de cabível e até de precioso nesta visualização nova, eu entro na reivindicação da perenidade das visualizações antigas. Mas, eu quero fazer agora – já tratei disso um pouco, quero ser um pouco mais claro – a respeito da inter-relação entre uma coisa e outra.

Há tempo para tomar água, ao contrário de outras reuniões…

Acontece que o mal dos que se preocupavam com sociologia ou política, anteriormente, não consistia tanto em que eles não tomavam a outra ordem de realidades em consideração. O que já seria uma lacuna muito grave, é toda uma fatia da realidade que fica de fora. Mas não seria tanto isto, seria uma outra coisa que se acrescenta a isto. E que é que eles silenciando, negavam. E queriam apresentar a realidade como toda ela capitulada nos meros temas que eles incluem na sociologia ou que incluem na política, e com isso mentiam. Não sei se isto está claro.

E que eu compreendo o superficial, o frouxo de toda concepção social e política que não tenha por detrás, não tenha no fundo aquilo que eu estou dizendo a respeito do que interessa sobretudo aos novos. Não sei se eu continuo claro.

E que, portanto, se é verdade que a concepção nova tratada sem cuidado dá em pintores estrábicos, em bardos gagos, em guias cegos, é verdade que a outra dá em “ploc-ploquismo” do outro mundo! E que se veem coisas nesse sentido de arrepiar, que podem tornar extremamente árido e árduo estudar as disciplinas antigas segundo a escola antiga.

E por causa disso mesmo, na RCR, está feito um lugar para essas considerações. Quando é falado da Revolução e da Contra-Revolução tendencial, está aberto o lugar amplo para isso. E, muitas e muitas vezes as minhas referências a uma e outra coisa, tendem um pouco para esse lado de “chamarada”, de fogo etc., etc. em que eu rejubilo certas almas… E depois, almas que eu quero muitíssimo e que eu tenho empenho, em tanto quanto me seja possível, rejubilar.

Mas que depois, com um certo abatimento, uma certa tristeza delas, eu volto ao outro campo. É que eu acho que elas não sabem relacionar bem os dois campos e perceber a subjacência do campo delas em tudo quanto eu digo de social e político.

* A incompreensão procede de não se ver a intercoordenação dos assuntos, fazendo uma espécie de luta de classes

Bom, os sociais e políticos, quando entra a hora disso, me olham assim um pouquinho como, assim como quem diz: como é que de repente essa montanha se põe a tocar música? É que também não sabem ver a intercoordenação desses assuntos.

É da coordenação de um assunto com outro que a gente pega a Revolução e a Contra-Revolução inteira. E aí se pode ter a ideia do convite à harmonia e ao equilíbrio do espírito que eu teria o desejo que fosse a nossa Reunião de Recortes.

(Sr. R. D.: pediria um esclarecimento justamente sobre esse ponto aí. Queria perguntar o seguinte: se de fato o que aconteceu foi que as pessoas que vencem segundo o plano político abandonaram esse plano mais alto, ou dada a ordem das coisas um velho ditado que o senhor as vezes cita que o bicho começa apodrecer pela cabeça, foi nessa ordem espiritual, nessa ordem superior que se abandonou esse outro campo, e esse outro campo aí como reflexo disso se considerou ele, vamos dizer, como que independente e superior ao outro. Por exemplo, fazendo uma aplicação ao Estado leigo. Foi de fato o Estado que se leigo ou de fato as coisas do Estado e de política foram abandonados por esses que pensavam num plano superior, e posto que ele estava abandonado ele se sentindo leigo se proclamou leigo. Agora, como foi o começo disso? Eu não sei se…)

Sim, sim, eu respondo de bom grado.

Eu tenho impressão de que o começo foi a penetração no meio do clero, como do laicato, de um fermento de Revolução. Com um aparecimento, no clero, de certa corrente eclesiástica simpática ao Estado leigo, mas simpática não só considerando com otimismo a perspectiva da implantação e mais tarde a implantação efetiva do Estado leigo, uma espécie de resignação bem humorada à implantação do Estado leigo, mas eles mesmos fazendo uma espécie de laicismo “au rebours” [às avessas] e acantonando a cogitação eclesiástica a assuntos tão exclusivamente eclesiásticos que o Estado parecia indiferente às cogitações deles.

Isto eu acho que foi um fenômeno simultâneo da penetração da Revolução entre os leigos e os sacerdotes. Essa penetração não foi anteriormente uns e posteriormente outros, ganhou simultaneamente uns e outros e foi deformando uns e outros.

* Preocupação exclusivamente eclesiástica nas paroquias do meu tempo

Eu alcancei eclesiásticos que eram assim, e alcancei até paróquias que viviam assim. Eu já tive ocasião de descrever essas paróquias. O pároco com a paróquia cheia, igreja cheia, e muita gente confessando, comungando, assistindo missa etc., etc., e vivendo em torno do pároco, numa cidade na qual daria para se formar normalmente três, cinco paroquias.

O pároco de fato reunia em torno de si, e de um modo saudável –  estava-se antes da catástrofe conciliar, da catástrofe progressista – reunia de modo saudável, muito louvável, muito bom, ele reunia em torno de si os que queriam, e que estavam lá.

Mas como aquela igreja parecia cheia e como a vida daquela paroquia era uma vida borbulhante, ele perdia de vista que 2/3 da população da paróquia dele não frequentava a igreja e que formava uma coisa chamada a sociedade civil, da qual os paroquianos dele quando não estavam com ele também faziam parte, e que ali a Revolução ia mar alto. E se celebrava o triunfo do vigário por causa do movimento da igreja dele.

Então tudo quanto se passava fora do ambiente paroquial se ignorava, não se estudava, não se comentava, não se protegia os leigos da paroquia contra aquilo.

Eu fui congregado mariano numa congregação onde era tese para discurso – discurso ainda – nas reuniões de domingo, a refutação dos erros dos donatistas antes da queda do Império Romano do Ocidente. E isso era dado para rapazes dos quais um bom número, terminada a reunião da congregação, iam para clubes esportivos, iam para festas, iam para reuniões, onde iam encontrar outros perigos que não os dos donatistas.

E era “bonito”! Ah! uma conferência sobre os donatistas!…

Muito cômodo, porque os donatistas não iam protestar, e a gente podia tomar um ar de briga sem brigar com ninguém… Pisava em cima dos cadáveres… Era muito cômodo esse tipo de briga no cemitério, com ninguém.

Eu compreendo que uma vez ou outra se falasse a respeito dos erros do passado mostrando como também no passado erraram os que atacaram a Igreja. Eu compreendo. Mas como tema de “resistência” [principal] para uma reunião de congregação mariana no momento da grande batalha que era para os moços do meu tempo o sábado e o domingo, tenha paciência, é puxado!…

Bem, eu me lembro o pasmo – eu contei isso já aqui – na Academia da Congregação Mariana de que eu fazia parte, quando me convidaram para ser membro da Academia e tomar posse da minha cadeira, e que eu na inexperiência que eu ainda tinha de certas coisas eclesiásticas, fiz um discurso sobre Maria Antonieta

Depois eu, toda a vida muito resoluto, quando entro num tema entro com ênfase, e uma ênfase que torna mal à vontade para quem não queira brigar comigo, me frear. Eram pessoas excelentes, animadas de todas as intenções, menos a de brigar comigo, tomaram um ar desolado… “quem havia de pensar, o Plínio, objeto de tanta esperança, vai dar nessa catástrofe: falar daquela mundana que foi Maria Antonieta…!”

Eu ainda me lembro disso. Porque completamente fora de tudo. Se eu falasse a respeito da biografia de uma das senhoras provectas das Damas de Caridade da paroquia, eu seria muito mais compreendido do que se eu falasse de Maria Antonieta.

Bem, era o refluxo, eles faziam laicismo noutro sentido, eles viravam para dentro. A paróquia era uma caixa de bombons linda, fechada com tampa linda, então tem a doutrina, tem… a gente abre, tá-tá, depois os bombons dentro que seriam por exemplo as almas dos fiéis guardadinhos ali. Mas aquilo não se distribui, não se difunde, aquilo não tem circulação, não tem vida. Eles faziam um laicismo “au rebours”.

Mas, não é dizer que os leigos eram uns querubinsinhos e que se os sacerdotes não tivessem feito o laicismo, que eles teriam ficado fiéis à Igreja. Seria uma ilusão nem sei de que tamanho. Eles eram infectados pela Revolução paralelamente, e caíram uns e outros. E ora se deixaram guiar uns por outros, e ora outros por uns, e repetiram o caso do cego que guia outro cego: entraram no abismo

* Uso das metáforas: visa atender de algum modo a necessidade de produzir um equilíbrio entre as duas tendências

Bem, “pour en finir” [para encerrar]… é claro! A reunião já vai indo mar alto, 8 horas, 8 horas! Começou lá pelas seis e meia, uma coisa assim. Que horas começou? Dez para sete? Oh! pois são cinco para as oito, imagine!

Bom, o fato concreto é o seguinte: que o uso frequente e cada vez mais frequente de metáforas, por mim, visa atender de algum modo essa necessidade de produzir um equilíbrio entre as duas tendências. Porque, eu não quero abrir mão, por nenhum preço, da reunião raciocinada, lógica etc. Por nenhum preço deste mundo!

Mas eu compreendo bem que não basta a pura exposição, mas que é preciso alguma coisa que provoque além da convicção, o estado de espírito.

Há modos de, desenvolvendo a convicção, entretanto ajudar a formação de estados de espírito saudáveis. E que um dos modos é a metáfora. Usada a metáfora, ela ajuda a formação do estado de espírito, e, portanto, realmente em reuniões – como essa aqui, absolutamente improvisada para um auditório que é novo, em grande parte pelo menos, ao assunto. Evidentemente tem que ser uma reunião tomando as coisas muito pela rama, à procura de momento para ulteriores aprofundamentos.

Bem, a lógica esteve o tempo inteiro presente, o fio da reunião é lógico durante o tempo inteiro, mas que vários meios de que um conferencista ou alguém que está fazendo uma “causerie” [conferência conversada] pode se servir para indicar qual é a clave, qual é o estado de espírito que esta convicção deve produzir, são utilizados.

Um desses meios – e eu não utilizo isso porque eu tenha assim treze meios para fazer isso, quem tem treze meios não tem nenhum – é o hábito, é o manuseio das pessoas, é o aproveitamento de um ou outro minguado recurso que se tenha que a gente vai pondo em cena e vai andando assim.

* Outra forma de atender: as distinções que coruscam e que ajudam a formação do estado de espírito

Mas, por exemplo, uma coisa que eu notei que ao mesmo tempo afia para a lógica e ajuda a formação desse estado de espírito, são as distinções. Eu há pouco falei que não basta formar convicção, mas formar estado de espírito também. Eu notei que alguns “ooohs”. Por quê? Porque essa distinção que é ágil, porque distingue, corusca; e porque corusca, ajuda um pouco a formação do estado de espírito.

E que por exemplo “aperçus” [observações] desses eminentemente lógicos, entretanto formam um interesse pela matéria no qual por detrás, por detrás, por detrás aparece alguma coisa das grandes labaredas da História! E agora os senhores tiveram uma metáfora determinando estado de espírito

Isso me deixa muito na dúvida de como orientar as coisas. Eu fiz uma tentativa de terminar a reunião, achei que eu procurei aterrissar antes do aeroporto estar… e percebo que tenho que tomar voo de novo. Mas, estou com pouca gasolina no tanque… porque a matéria, “hoy por hoy”, a matéria está tratada, e uma matéria assim que é pelo menos em parte consistente em coisas deste gênero assim, bem, uma vez tratada ela não se espicha, ela não pode ser espichada.

De outro lado, eu sei que se eu agora mandar distribuir os papéis mimeografados, absolutamente não vai, com o modo de ser brasileiro não vai.

Os senhores me dirão: a reunião não é só para brasileiros. A minha experiência leva a achar, duas coisas. Em primeiro lugar que o hispano-americano é o brasileiro com tudo isso, apenas com um pouco menos de radicalidade do que o brasileiro nisso, mas que isto de algum modo se dá nos hispano-americanos também e não pouco. E de outro lado que é um dos lados por onde o Brasil “embrasileira”, é que as pessoas que vem parar aqui se habituam a isso prodigiosamente…

Eu vejo, por exemplo, que se eu agora desse a palavra a um excelente conferencista europeu – e os há aos borbotões – ou a um conferencista norte-americano ultra computadorizado e com dados de arrebentar, e os há também às toneladas – o que se passaria é que seria uma novidade interessante e que o pessoal aqui ia olhar para ele do ponto de visto do estado do espírito e procurar a mentalidade que ele tem, analisar a mentalidade e procurar formar ideias a respeito disso. Mas que sobre o tema não prestariam atenção.

E que, portanto, eu não posso me fazer de min um outro eu, para apresentar aqui, não me desdobro. Não tenho… isso gostariam muito: se eu fizesse entrar aqui agora um estrangeiro e dissesse, qualquer coisa: vai entrar aqui um romeno típico e vai fazer uma conferência no estilo romeno, os senhores poderiam dizer: Olha, eu não sei se não dá uma rapadura meio indigesta, mas já que está aqui vamos ver como é. Iria.

Eu não posso tirar de mim um romeno como eu tiro um lenço [e no momento Dr. Plinio pega um  lenço do bolso, n.d.c.]…

E enquanto eu vou dizendo essas coisas eu vou me dando a min mesmo um tempo para ver se encontro um modo de encompridar um, pouco a reunião. Julgo que encontrei, e agora continuo…

Eu faço assim isso – o que talvez um outro escondesse, eu faço assim a descoberto porque eu sou muito amigo da franqueza e da verdade. A verdade é a verdade, é assim que isso está se passando na minha cabeça, e é melhor que os senhores conheçam do que não conheçam. Por que fazer trejeitos, e ocultar? É isso.

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* Exemplo do Washington Luís: homem emblemático que vivia em função do Estado e da sociedade

Eu me reporto aos homens da era política. Os senhores não conheceram esses homens da era política.

Até onde foi a era política no Brasil? Para muitos dos senhores que são adultos – eu chamo adulto um “enjolras” [jovem] com 21, 22, 25 anos – na era de hoje em dia, em 1982, a Revolução de 1930 é mais ou menos como no meu tempo a guerra franco-prussiana, Bismark, Napoleão III, uma coisa que se confundia um pouco com Ramsés II, com Semíramis, essas coisas todas… Mas enfim, falemos um pouco disso.

Em parte, num dos muitos aspectos que teve a Revolução de 30, ela teve essa de que a equipe de estadistas que estava no poder, agarrada no poder, o velho Washington Luís de que os senhores devem ter visto fotografias com sua barbicha em forma de chifre, definido, entre outros e muito emblematicamente, eles eram homens para o qual existia o Estado e não existia a sociedade.

O Estado governa por meio de leis e de repartições públicas. Ele tem uma coisa chamada “estado de sítio” que segundo a Constituição ultra “ploc-ploc” de 1891, se decretava em caso de agressão externa ou grave comoção interna. E aí no estado de sítio o Estado “puxava as orelhas” da sociedade. Fazia censura à imprensa, prendia uns tantos indivíduos, mandava dar uma sova meio às escondidas, mas ai da imprensa se noticiasse, e aplacava a coisa, a sociedade era tranquila e o Estado podia fazer e que quisesse que a sociedade engolia.

E os do Partido Democrático, que eram da oposição, eram movidos, como eles percebiam que não podiam tomar conta do Estado assim “tout court” [inteiramente], eles eram movidos a preocupações de caráter social, julgando que se eles fizessem alguma agitação de opinião pública e alguma agitação social, que eles dariam ao Estado um certo mal-estar.

Seria mais ou menos como na casa de um bravo caçador de leões ou de tigres, alguém que quisesse o mal deste homem, soltar por exemplo um saco cheio de ratos na casa. O homem sabe caçar tigre, mas não sabe caçar rato, como é que ele vai fazer ordem na casa dele? Heroicos disparos contra ratos? Não funciona. E é só como ele sabe caçar. Os ratos lhe subiriam pelas calças, iam festejar em cima do ombro dele… como é que ele faria? Assim é o soltar debandado dos homens minúsculos da sociedade em desordem, contra o caçador de tigres que foi o velho Washington Luís. Era isso que se dava.

Nesta perspectiva, um homem como o Washington Luís – eu lamento não ter aqui a fotografia dele – mas os homens do tempo dele, todos… Quem era governador de São Paulo aqui nesse tempo era o presidente Carlos de Campos que – é bem a época – o Estado também quase não cuidava de economia, ele cuidava das suas próprias finanças, mas economia não, porque isso é a esfera dos particulares, ele não entrava nisso.

* Como uma peça de teatro pode influenciar a política

Tinha, portanto, lazer. A vida de Presidente de Estado era muito sossegada, a tal ponto que ele compôs uma ópera e entregou essa ópera à publicidade. Foi representada no Teatro Municipal com grande gala, com todo o Governo presente, corpo consular, e elementos políticos.

Como chamava a ópera? Dr. Paulo… “A Bela Adormecida”? Eu estava com isso na ideia, mas achava tão “outrée” [excessivo]. Então é isso,  “A Bela Adormecida”.

Aqui os senhores têm o conflito da sociologia com a política bem claro. O Carlos de Campos governando o Estado e tranquilo, porque por meio da polícia e por meio das repartições públicas ele tocava para frente a sociedade. Como lhe resta tempo, ele era um homem que tinha lá seus pendores artísticos, ele compõe uma ópera. O que acontece?

É que todas as repartições do Estado fazem a propaganda da ópera, tudo quanto é funcionário público compareceu, eles lotaram o teatro. A Força Pública foi em peso, usava naquele tempo um uniforme de gala muito bonito, copiado do uniforme do exército francês com “plumet” [penacho] vermelho muito bonito, era a missão francesa do velho general Nerelle. Eu me lembro ainda do general Nerelle que dirigia aqui a Força Pública. Eram muito decorativos, estavam presentes lá etc.

Foi também, infimamente, sorrateiramente, com todos os sorrisos do sarcasmo, a oposição… E tomou nota dos lados fracos da ópera. E tinha um jornal – como chamava o jornal do Partido Democrático? O Sr. se lembra, Dr. Paulo? O jornal do Partido, o “Democrata” Democrata, uma coisa assim qualquer.

Como?

(Dr. Arruda: “Diário Nacional”)

“Diário Nacional”! Bem, começa o “Diário Nacional” mobilizando uns críticos literários e uns artistazinhos provinciais para fazer o sarcasmo da ópera “A Bela Adormecida”; uns caricaturistas que faziam também o sarcasmo. E o público de plateia que não tinha engolido muito aquela ópera feita para ser aplaudida por funcionários públicos que iam de encomenda, começa a dar risada e comprar diários nacionais com as críticas, e baixar o prestígio político do presidente do Estado em função de um tema teatral e literário, em que ele não podia deitar a mão da repartição pública…

E eu me lembro, porque convivi com pessoas chegadas ao governo nesse tempo, o embaraço deles não podendo elogiar “A Bela Adormecida”… era feia, canhota, e mal adormecida, agitada, e percebendo que isto ia ter uma repercussão eleitoral, mas que eles não tinham – como o tema não era político, era um tema cultural próprio a agitar a sociedade e não agitar o Estado –  eles não sabiam como pegar o rato…

E o prestígio político dele baixou. Ele algum tempo depois morreu com uma espécie de derrame, que eu acho que não foi causa disso. Ele não morreria por isso, tanto quanto eu conservo ideia dele. Mas enfim, ele teve derrame, morreu e truncou o governo dele. Se ele tivesse que se expor a uma eleição, aquela aventura para fora do terreno político, mostrou a oposição mobilizada e disposta a movimentar a sociedade contra o Estado.

O Getúlio entrou… o Washington Luís era o homem do Estado: hirto, teso, eu creio que já contei aqui aos senhores as reminiscências de Dom Sebastião Leme a respeito de Washington Luís. Eu já contei isso aqui, na Revolução de 30?

Ele me contou uma parte da verdade a outra parte eu soube e não foi ele que me contou, mas eu vou contar a parte da verdade que ele me contou.

* Dom Leme contou o que se passou quando foi comunicar ao Washington Luís que estava deposto

Ele me contou que o Washington Luís estava cercado no palácio do Catete, os presidentes da República residiam no Catete naquele tempo, estava cercado no palácio do Catete – eles residiam e despachavam no Catete, ocupavam um andar ou dois no Catete – bem, estava cercado no Catete, com a família dele e alguns auxiliares mais íntimos, o palácio todo cercado. E pediam para ele renunciar e ele dizia que não renunciava. E era o gênero dele. Teso, hirto, muito duro.

Bem, então havia o que o brasileiro não quer: um derramamento de sangue em perspectiva. Isso os senhores sabem que não vai.

Então, era preciso apear o velho Washington Luís de qualquer maneira. Então convocaram o cardeal para derrubar o Washington Luís, e para fazer sentir ao Washington Luís que ele estava perdido, que ele não tinha mais solução e que o cardeal recomendava a ele que se entregasse. Ele não se entregaria à mão dos adversários, mas se entregaria às mãos, cheias de prestígio, de unção sagrada e de consideração da Igreja.

Então Dom Leme contava que o Washington – ele mandou pedir uma audiência ao Washington, com o palácio todo cercado, o telefone de baixo atendia: “Palácio do Catete” e transmitia, com todos os protocolos antigos, o telefonema para o gabinete de cima, atendia o oficial do gabinete, e atendeu o oficial do gabinete do Washington, ele disse: O cardeal Leme (ele mandou o secretário dele dizer) o cardeal Leme pede para ser recebido em audiência pelo Senhor Presidente Washington Luís.

O Washington marcou hora para bem tempo depois. E quando Dom Leme apareceu –  a guarda do palácio em parte ainda era fiel ao Washington e, portanto, prestava as continências aos visitantes que entravam como se o Washington estivesse no poder.

O Cardeal contou que ele se arrepiou quando ele aproximou-se – a distância entre o Catete e o Guanabara é muito pequena – quando ele se aproximou – ele foi de automóvel naturalmente – ouviu o som dos clarins da guarda tocando as honras de príncipe herdeiro de Casa real, que é a que tinha todo cardeal, de príncipe herdeiro de casa real, que tinha todo o cardeal. E que ele percebeu aquela vontade de continuar de existir, daquilo que ele ia acabar de derrubar.

Que ele entrou, havia áulicos embaixo que o receberam, ele tomou elevador – o trajeto dele era como se o palácio não estivesse ocupado – ele tomou o elevador e foi a um salão que era o grande salão de honra do Palácio do Catete, onde se recebiam os príncipes estrangeiros.

Ele encontrou na ponta, teso, em pé, o Washington Luís com a barba para a frente assim e olhando para ele. E ele tinha que percorrer uma distância grande da porta onde ele tinha entrado para o lugar onde estava o Washington, percorrer a sala de ponta a ponta. E era uma sala com parquet precioso e sem tapetes. Ele foi andando e ele me dizia que em cada passo que dava, ele sentia o passo reboar dentro da cabeça, tal era a sensação, no vazio da sala e no silêncio do Washington, olhando a ele e olhando aproximar-se.

* É possível um homem ter em vista a res política em função de chamaradas, de perspectivas que, em geral, estão ausentes do modo de comentar a política hoje

Ele chegou, e disse:

– Senhor Presidente, V. Excia, como vai?

– Bem e – o Washington era ateu, hein! – V. Eminência como vai?

– Tá-tá-tá, eu vim comunicar etc., etc., etc.

Ele disse:

– Obrigado por sua comunicação, pensarei.

Bem, o D. Leme… porque, como é agora? Puxado pela barba não sai, não vai, o que pode fazer?

– Quando V. Excia. tiver uma comunicação tenha a bondade de me avisar.

– Pois não. Lhe farei chegar a minha resolução.

Pronto, acabou. Cumprimento, pam, pam, pam, foi para fora e saiu… arfando.

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Alguns dos senhores aqui conheceram pessoalmente o Washington, porque numa semana de estudos que nós fizemos em Serra Negra – aliás eu conservo uma lembrança enorme dessa Semana de Estudos, foi sobre o IDOC e os Grupos Proféticos.

Bem, nessa Semana de Estudos – ele já como presidente deposto, estava lá como veranista – e nós fomos cumprimentá-lo e apresentar homenagens a ele etc. Ele foi muito gentil, conversamos um pouco etc. E os senhores puderam vê-lo, e o rijo do homem.

O que é meu Eduardo? Diga o que é?

(Dr. Luiz Nazareno: Pitoresco, foi em 1954.)

54, imaginem os senhores hein!

Isso para eles [aos mais jovens presentes nessa reunião, n.d.c.] já é Ramsés… não é só o Washington não, a Semana de Estudos de Serra Negra é Ramsés.

(Dr. LN: era um simpósio, no comecinho da década de 50).

Então, eu deixei o Washington, homem que só se preocupa pelo Estado e pela política, diante dos senhores.

Os senhores um pouco tiveram ideia de qual é a fisionomia desse homem. Mas não foi por uma digressão de mero mata-tempo que eu cuidei de tudo isso aqui. É que eu estava, por imponderáveis, dando a fisionomia moral desse homem, a psicologia desse homem.

Os senhores seguindo a psicologia desse homem, os senhores percebem uma coisa interessante: que ele, que vivia só para a política, um homem que procede assim nessa ocasião extrema, vê uma porção de coisas além do político.

E faça-se dele a impressão que se formar – e a maior parte dos senhores lhe será inteiramente indiferente, um ou outro ainda tem assim um resto de simpatia ou um resto de antipatia por ele – para esse um ou outro eu digo: qualquer que seja a sua posição, não se pode negar uma coisa: que esse homem na hora de cair, caiu como se ele tivesse em vista esses horizontes que ocupam os novíssimos [da TFP].

Há uma grandeza nessa queda que é uma grandeza inegável, e que ele soube conservar em todos os pequenos episódios do aprisionamento e da queda dele. Por exemplo, quando ele entra na fortaleza de Santa Cruz – notem que faltavam quinze dias ou um pouco mais, um mês, um mês e pouco para ele deixar o Governo hein, a expiração do mandato, portanto ele defendendo por princípio alguma coisa, e esse princípio tem um “lumen” [luz] próprio que vai além do “ploc-ploc”.

Ele foi conduzido à fortaleza de Santa Cruz de donde ele foi, dias depois, ele mandou reservar – da fortaleza – uma passagem no transatlântico que ele quis e seguiu para a Europa. Mas aqueles transatlânticos-palácios, ele era homem abastado, bem abastado. Os transatlânticos de antes da Segunda Guerra Mundial eram palácios. E de lá foi para Paris onde viveu largamente. Quer dizer, ele tinha uma vida muito longa que ele teve, e rica, abundante, e próspera diante de si. E prestigiosa!

Está bem, o oficial que o prendeu, levou até o quarto, e disse: Senhor Presidente, eu queria saber qual é o seu horário, qual é o seu menu.

Ele disse: Prisioneiro não tem horário nem menu e também não tem revólver. Toma lá meu revólver. Eu aqui não tenho vontade porque estou preso, façam o meu horário, façam o meu menu! Acabou-se.

Então, então, os senhores estão vendo que é possível um homem ter em vista a res política, a coisa política, mas em função de chamaradas, de pontos de vista, de perspectivas que, em geral, parecem ausentes do modo de comentar a política hoje, totalmente.

É esta política assim que nós devemos olhar, a polis vista assim, que nós devemos olhar. Isto se casa muito bem. Isto ilustra bem meu empenho numa visão harmônica, equilibrada e completa das coisas.

Com isto, o aeroporto está preparado e eu posso baixar o voo. E, são oito e vinte e eu tenho que chegar mesmo um pouco mais cedo a São Paulo hoje.

De maneira que, meus caros, eu faço notar – para não desedificar os nossos dois caros e reverendos visitantes – que nunca se riu tanto numa Reunião de Recortes, ao longo desses trinta anos ou quarenta de Reunião de Recortes tudo somado, nunca se riu tanto quanto hoje. De maneira que as reuniões não são essa gargalhada permanente que os senhores acabaram vendo. Mas, as circunstâncias pediam que ela fosse assim. Foi, e espero ter servido bem a Nossa Senhora.

Com isso, podemos terminar a nossa reunião.

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